Nos tempos pré-históricos, a pouca população que habitava o nosso planeta agrupava-se em pequenos núcleos espalhados e isolados por montanhas e florestas (os caçadores), depois pelas planícies (lavradores) e até pela orla marítima (pescadores). Constituíam assim pequenas sociedades, todas muito fechadas e quase sem comunicação entre si, que se defendiam umas das outras e se atacavam sempre que podiam. As culturas eram fechadas, as línguas locais faladas por poucos, as técnicas e outros bens não se trocavam, não havia leis…
Acontecia o mesmo com as religiões. Claramente locais, crenças e ritos decorriam da cultura dos lugares em que surgiam: a montanha, a floresta, a árvore mesmo, a terra, fértil e mãe, o rio, fonte de vida, o sol ou a lua, os antepassados, tudo era “sombra e imagem” de um Deus que o homem primitivo procurava mas não encontrava (LG 16), embora, “desde os tempos mais remotos… se encontre nos diversos povos uma certa perceção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos: encontra-se até por vezes o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai. Perceção e reconhecimento esses que penetra[va]m as suas vidas de um profundo sentido religioso” (NA 2).
Mas eram sempre pequenos os grupos humanos, pequenos e fechados, e pequenas as religiões.
Aconteceu então – os primeiros escritos cristãos falam da “plenitude do tempo” (Gl 4,4) – uma coisa que os historiadores e os estudiosos das religiões valorizam particularmente e que varreu o mundo: alguns homens religiosos – chamemos-lhe “profetas” – romperam com o “caseirismo” das suas religiões fechadas e pequenas, e provocaram uma espécie de onda que percorreu o planeta até então conhecido, a que se daria o nome de “revolução profética”: Europa, Ásia e Norte de África. Esta época da História humana surge por volta do ano 500 aC e processa-se até ao fim do séc. VI dC. Aconteceu aparecer o Taoísmo chinês (de Lao-Tsé), o Confucionismo (de Confúcio), depois o Budismo (de Siddarta), o Judaísmo (os Profetas que tão bem conhecemos), o Maniqueísmo (de Mani), o Zoroastrismo (de Zoroastro), e finalmente o Cristianismo (Jesus) e o Islamismo (Maomé)…
A revolução profética foi no fundo uma rutura, polémica e radical, uma crise salutar carregada de um imenso poder destruidor, fortemente crítica da tradição religiosa anterior paralisada em formas estáticas e incapazes de expansão. Mas as religiões que a sofreram logo se tornaram ricas em capacidades “missionárias”, digamos assim, criadoras e inventivas, apontando praticamente todas no sentido de um Deus único e capaz de congregar “todos os povos”.
Na religião de Israel, Isaías (nome que reúne num só três profetas com o mesmo nome) é o maior desta revolução: «Algo de novo está a aparecer, não vedes?» (43,19). O Livro dito com o seu nome abre logo, no 1º cap., com uma crítica dura e violenta à religião [antiga] de Israel, para se abrir todo ele a um Deus “novo” e diferente, mais rico e dito com toda uma capacidade de expressão até então impossível de se imaginar, Deus de “todos os povos”. O Deus que Isaías anuncia tem duas facetas: reúne crentes de todos os povos, rumo a um banquete final e escatológico.
“Eu sou Iavé. Não há outro Deus além de mim. Eu sou um Deus justo e Salvador. Para além de mim não há outro. Convertei-vos a mim e sereis salvos, todos vós, [mesmo] os que habitais os mais longínquos confins da terra. Todos os joelhos se dobrarão diante de mim e toda a língua jurará pelo meu nome” (Is 45,21-22). Esta reunião converge, portanto, para a assembleia final, a realizar “no monte Sião, [em que] o Senhor do universo preparará para todos os povos um banquete de boas carnes e vinhos finíssimos… Aí, ele arrancará o véu de luto que cobre todos os povos e encobre todas as nações. E então aniquilará a morte para sempre” (Is 25,6-7).
Jesus entrará também, clarissimamente e por maioria de razão, neste grande movimento universal, que poderíamos enriquecer visitando, ainda que rapidamente, todos os mais profetas de outras religiões, o que aqui se não pode fazer: “Ide por todo o mundo – dizia Jesus aos discípulos – anunciar a Boa Nova a todas as criaturas” (Mc 16,15).
Mas deixai-me ler um texto de Maomé:
“Alá! Não há nenhum deus inferior a Ele! Ele, é o Vivo, o Eterno. Não necessita nem de descanso nem de sono. É seu tudo aquilo que existe nos céus e na terra. Quem pode interceder junto dele sem o seu consentimento? Ele sabe o que existe nas suas mãos e atrás delas, o presente e o futuro. O seu trono ergue-se muito acima dos céus e da terra e não lhe custa vigiar nem esta (a terra) nem aqueles (os céus). Porque Ele é o Sublime, Ele é o Altíssimo” (Corão 2,256).
O nosso Deus libertou-nos de todas as amarras que o aprisionavam. Depois de Isaías e dos Profetas de Israel, depois de Jesus, o seu Enviado – “Apareceu entre nós um grande Profeta, Deus visitou o seu Povo!” (Lc 7,16) -, Deus não está mais ligado nem a uma raça (como pretendiam os Judeus) ou a uma nação (como se cantava em Portugal, “enquanto houver portugueses”), não está preso a qualquer tradição ou costume religioso, a uma moral ou a qualquer interesse (“Senhor, nós comemos e bebemos contigo à mesa…”! [Lc 13,26]).
O nosso Deus chama-nos a todos, do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e, por muito que a gente estranhe, sentar-nos-á a todos à mesa do Reino de Deus.
Esta imagem está carregada de simbólica religiosa, de Isaías a Jesus de Nazaré e chegando aqui à Comunidade que somos. Todos somos convidados para ela: para que nos não esqueçamos, cada semana comemos pão e bebemos vinho, fraternalmente, “mistério da fé”. Mas também aqui “há últimos que serão primeiros e primeiros que serão últimos”, porque “eu, o Senhor, digo e faço” (Ex 37,14).
Arlindo de Magalhães, 25 de agosto de 2019