Foi sempre muito difícil medir o tempo. Os povos antigos faziam-no, uns pela Lua e muitos mais pelo Sol: do nascer ou do pôr, a partir dos Solstícios (o sol no seu mínimo – Inverno, ou no seu máximo – Verão) ou dos Equinócios, os dois dias do ano em que a noite e o dia são iguais.
Foi sempre muito difícil medir o tempo. O tempo cósmico medido a partir dos astros, o tempo histórico contado a partir de um acontecimento: do nascimento de Jesus, por exemplo, fazemo-lo nós desde o séc. XIV, mas já se contou a partir de muitos outros acontecimentos, a fundação de Roma, o nascimento de Maomé, na Revolução Francesa…, houve na nossa Península a era hispânica (a conquista da Hispânia por César Augusto), a era da República Francesa (a partir de 1792), que durou pouco, há ainda a era judaica moderna, etc., etc.
Nunca foi muito fácil ao homem antigo contar os anos: em Roma o Solstício do Inverno era a 25 de dezembro, no Oriente a 6 de janeiro…!
Mas afinal o que é o tempo, coisa assim tão difícil de contar? Sempre que chego aqui, vou a Sto. Agostinho, que, sobre ele, escreveu uma daquelas páginas que se leem vezes atrás de vezes, é assim como uma Sonata de piano de Mozart ou uma Sinfonia de Beethoven, a gente ouve 1, 2, 3, 20, 30 e mais vezes, e nunca se cansa, tem sempre para ouvir o que nunca ouviu, e sempre que ouve dá graças a Deus e ao Homem.
Santo Agostinho dizia assim do tempo:
Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir, por palavras, o seu conceito? … Se ninguém mo perguntar, eu sei; mas se o quiser explicar a quem me faz a pergunta, já não sei. Mesmo assim, atrevo-me a dizer, sem receio de ser contestado, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro; e se agora nada houvesse, não existia tempo presente. De que modo podemos dizer que existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se ele fosse sempre presente e não passasse a passado, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar a pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual ele deixa de existir?
A reflexão de Santo Agostinho alonga-se ainda por mais páginas e páginas das suas Confissões, mas esse não é hoje o nosso assunto.
Nós, hoje, civilização urbana e técnica, não ligamos nada a estas coisas, mas antigamente eram muito importantes. Estes dias — solstícios e equinócios — carregavam-se de um profundíssimo sentido religioso: quem está por detrás disto tudo, desta regularidade temporal?
Por isso, em todas as religiões, eram dias de festas religiosas. O cristianismo nascente já as encontrou. E – inteligente! – em vez de as combater, cristianizou-as: no dia do Solstício de Inverno (de então!), colocou o nascimento de Jesus e, no do Verão, o de S. João, o precursor.
Porquê? Boa pergunta: não se sabe bem, mas tudo terá a ver com a dupla afirmação de Jesus (At 1,5) e de Pedro (11,16), segundo a qual João batizou com água, mas vós sereis batizados no [fogo do] Espírito Santo (Mt 3,11). E, de facto, em noite de S. João, o calor do Verão e da fogueira, e a frescura da orvalhada ou da água. Ainda hoje, em muitos casos, a noitada termina com um banho em qualquer fonte ou na praia da Foz. E não é só no Porto; estes rituais cumprem-se religiosamente em muitos lugares europeus.
Com toda esta simbólica, a festa de S. João carregou-se de um forte sentido utópico, como aliás a do Natal, que ambas vinham do paganismo. As festas dos Solstícios eram, nas primitivas culturas europeias, as grandes festas de uma fraternidade desejada, mas não possível. Em Roma, por exemplo, no Solstício de Inverno, os escravos passavam durante esse dia a senhores e vice-versa, os senhores a servos dos escravos, a quem serviam à mesa. É exatamente isto que se faz aqui no Porto, em Braga e em tantos lugares, na noite de S. João: todos com todos, em sã e alegre convivência, não há notícia de conflitos na noite em que a cidade se derrama nas ruas e, se vier o Presidente da República, não digo que não haja seguras, também leva com o alho-porro, ai não!, ele talvez o martelinho! Noite de uma fraternidade utópica, como desenhou Isaías para o tempo do Messias: o lobo será hóspede do cordeiro e a pantera deitar-se-á junto do cabrito… (11,6).
Em noite de S. João, a Utopia, anterior ao tempo cristão, como que antecipava a Boa Nova de Jesus: entendam-se e confraternizem com os todos os homens, as víboras e os touros, os leões e os ursos, com martelinho ou alho-porro, à volta de uma fogueira ou mergulhando num apreciado banho, todos, porque todos somos irmãos.
Isto mai-lo quando somos campeões, é verdadeiramente uma descarga de emoções contidas.
Arlindo de Magalhães, 24 de junho de 2018