Há várias semanas que a Liturgia anda à volta do sinal da multiplicação dos pães e do sequente discurso do pão da vida.
Já por aqui comentei várias vezes o amplo significado que têm, no conjunto dos evangelhos, as comidas de Jesus, entre as quais se insere, com especial significado, a da multiplicação dos pães. Chamando-o comedor e bebedor de vinho (Lc 7,34, etc), os seus contemporâneos acusavam Jesus de se sentar à mesa com toda gente, judeus e pagãos, justos e pecadores, contrariamente ao que o Judaísmo obrigava, sem condições prévias e legalismos, purismos e discriminações. De resto, nos muitos relatos evangélicos das comidas de Jesus, há claramente duas dimensões: a memória de gestos concretos de Jesus, e a prática das primeiras comunidades lhe copiavam as atitudes, assim antecipando o Reino dos Céus. Os nossos primeiros, reuniam-se, comiam em comum (como na última Ceia) e depois celebravam “a Ceia [do Senhor] — “em minha memória” (Mt 22,14-18 e 19-20).
Quando a Igreja abandonou a prática das comidas em comum, ficou apenas a eucaristia ritualizada. Mas nem por isso, na Igreja primitiva, a eucaristia deixou de ser, também ela, o sacramento da superação da pobreza, do acolhimento dos pobres e famintos, da vitória sobre toda a separação social e económica, por muito que hoje estejamos habituados a olhá-la apenas como o memorial da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
Para os primeiros cristãos, celebrar a Eucaristia era antecipar sacramental e realmente a comunhão dos irmãos entre si e com o Pai, o que só se alcançará definitivamente quando o Reino chegar à sua plenitude.
Ouçamos São João Crisóstomo:
“No velho mundo, o rico prepara uma mesa esplêndida e goza abundantemente dos seus deleites, enquanto que a pobreza impede o pobre de desfrutar luxos semelhantes. Entre nós, pelo contrário, quando celebramos a Eucaristia, as coisas são muito diferentes: há uma mesma mesa para o rico e para o pobre. Tanto o imperador como o mendigo que pede esmola têm posta a mesma mesa. Quando vires no interior da igreja, o pobre juntamente com o rico, o plebeu com o magnate, o que lá fora treme diante do príncipe sentado cá dentro, sem nenhum temor, ao lado dele, repara que começa a cumprir-se aquela profecia que diz: Então (quando chegar o Reino de Deus) apascentarão juntos o lobo e o cordeiro” (Is 11,6).
Certamente que todos ou muitos de nós temos participado em algumas celebrações tão autenticamente vividas que terão sido, em muitos casos, antecipações, embora pálidas, do Reino de Deus. Em todo o caso, antecipações. Orígenes imaginava o Reino como uma grandiosa Eucaristia celebrada com Cristo na glória. E os primeiros cristãos pensavam que a última vinda aconteceria durante uma celebração da Eucaristia.
A própria reforma litúrgica do Vaticano II afirma tudo isto quando recomenda que, na Liturgia, “não exista nenhuma aceção nem de pessoas nem de classe social, nem nas cerimónias nem nos ornamentos exteriores” (SC 32). É por isso é proibido reservar cadeiras especiais, ou mesmo pôr as mulheres a um lado e os homens a outro. E isto porque as formas exteriores da celebração litúrgica devem manifestar aquilo que ela deve ser: uma vivência antecipada da fraternidade do Reino. E tudo para isso deve contribuir: o universalismo das preces, o rito da paz, o pão partido e distribuído igualmente por todos, etc.
Por isso alguém disse que a Eucaristia é um tratado de teologia política: protestamos desse modo contra uma sociedade em que uns são mais homens que outros, afirmando uma comunidade nova que dessa maneira antecipamos e realizamos, embora reconhecendo que, muitas vezes, “ricos e pobres comungam juntos na mesma igreja mas excomungam-se mutuamente na fábrica”. Já S. Paulo condenava os Coríntios: “Não comeis o corpo de Cristo nem bebeis o seu sangue, mas sim a vossa própria condenação” (1 Cor 11,17-34). E a própria Didaké afirmava: “Todo aquele que tiver uma contenda com seu irmão, não se junte à Comunidade sem se ter reconciliado, a fim de que o vosso sacrifício não seja profanado”.
É verdade que, muitas vezes, à volta da Eucaristia as questões são falsas questões – que vestido, de pé ou de joelhos, quem pode ler, que cantar, comungar na mão ou na boca, – assim se evitando perguntas muito mais importantes sobre as condições necessárias para a celebração deste sacramento!
O imperador Teodósio, mandou uma vez matar uma pequena multidão de gente humilde da cidade de Tessalónica para vingar o assassinato de um funcionário. Santo Ambrósio, bispo de Milão, escreveu-lhe de imediato a comunicar que não mais presidiria à Eucaristia na sua presença. Claro que foi parar à cadeia!
Não podemos, é verdade, esperar que desapareça a última manifestação de injustiça para podermos celebrar a Eucaristia. Ela é um sacramento para nós cristãos, vivos e pecadores; os eleitos já não precisam destes sinais, porque já “veem Deus tal como ele é”. Para eles, os sacramentos já estão a mais. O que quero dizer é que uma comunidade só tem direito à Eucaristia se for verdadeiramente um sinal, e verdadeiro, do Reino. E isso tem a ver com o que a comunidade é fora do templo, e com as relações dos seus membros.
Arlindo de Magalhães, 26 de agosto de 2018