Às várias figuras do Antigo Testamento se dava o nome de servos de Iavé: Abraão, Moisés, David, um futuro rei ideal, etc.
Mas há quatro poemas do Segundo Isaías (o livro dito do profeta Isaías foi escrito por três pessoas diferentes) que falam particular e especialmente no Servo de Iavé. Acabámos de ouvir um bocadinho do último dos quatro: “Aprouve ao Senhor esmagar o seu servo pelo sofrimento para que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Mas terá uma posteridade duradoura, e viverá longos dias. E por isso, por causa dos seus sofrimentos, verá a luz” (Is 53,10-11). Nós conhecemos um outro bocado bem maior deste poema, que se lê todos os anos em 6ª feira Maior:
“Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto, pessoa desprezível e sem valor para nós. Ele suportou as nossas enfermidades e tomou sobre si as nossas dores. Mas nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas chagas fomos curados. Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes, cada qual seguia o seu caminho. E o Senhor fez cair sobre ele as faltas de todos nós” (Is 56,2a-6).
O servo de Iavé deste 3º Isaías entendeu-se que se referia ao Messias prometido que havia de vir, servo esmagado pelo sofrimento que haveria de pagar o pecado, mas também de salvar a humanidade, tomando sobre si as suas iniquidades. Assim se pensou, de facto, durante séculos, até ontem.
Como assim?
Estes poemas foram escritos num antigo e determinado tempo histórico, tempo de problemas reais e muito concretos: Israel esperava já a libertação da Babilónia a levar a cabo por Ciro, o rei persa, que a geraria. E isso aconteceu. Nessa altura, Israel aumentou o objetivo: esperar, não já a libertação, mas o reino messiânico. ”Te(re)mos o Emanuel, Deus connosco!” (Is 8,10).
Modernamente foi fácil perceber que Isaías, os Isaías, eram 3, não eram historiadores, eram poetas. Poetas que não perceberam que o tal servo de Iavé não era “um Emanuel, um Deus connosco” (Is 8,10). Percebeu-se que o Servo de Iavé não era um indivíduo, era o povo de Israel, destroçado pelo sofrimento causado pelo desterro para a Babilónia, um país estrangeiro que o amordaçou, depois de perdida a independência.
Os poemas do Servo de Iavé referiam-se ao sofrimento dum povo, Israel, que libertado do seu pecado, se converteu, de novo abrindo as portas do um futuro. E de facto, 70 anos depois do desterro para o exílio, o povo pôde voltar ao seu país, à sua terra. Claro que, mesmo depois de retornado, logo se viu outra vez confrontado com novas situações de sofrimento, perseguido por aqueles a quem a Bíblia chama muitas vezes os ímpios, os maus, mas a quem, mesmo assim, continuava a ser prometida a salvação e a glória.
Mais tarde ainda, o Novo Testamento pensou que o Servo de Iavé era Jesus, o Cristo. Embora o autor dos ditos poemas não tenha tido a intenção de adivinhar futuros — a paixão e morte de Jesus para a remissão dos pecados. Não foi para isso que Jesus apareceu na História! Por nós, homens, e para nossa salvação, desceu dos céus, e incarnou…, e se fez homem?
Mesmo assim, as perguntas não acabaram aqui. O mal, a morte, os maiores enigmas da vida do homem.
Os mestres da suspeita acusaram o cristianismo de montar negócio em cima da dor e do pecado.
E o sofrimento?, não é algo que existe mas não devia existir? Que Deus é este – perguntavam – se existe o sofrimento?
Praticamente no nosso tempo, durante e depois da 2ª Guerra Mundial, esta pergunta foi radicalizada sobretudo dos lados da fé (judeus e cristãos): há Auschwitz porque não há Deus, ou porquê Deus apesar de Auschwitz? Em qualquer dos casos, sempre a mesma pergunta: se há Deus porquê o sofrimento?
Só quem sofreu o sofrimento e o venceu, qualquer que ele tenha sido, o entende. Por isso me curvo sempre diante dos homens e mulheres curtidos ao peso de sofrimentos e dores: esses adquirem normalmente a têmpera dos fortes e inquebráveis. Os mais somos aço fraco, não temperado nem sujeito a prova de esforço, que quebra à primeira dificuldade, pois que vivemos hoje quase todos numa cultura de facilidade que ignora e esconde o sofrimento.
Sofrimento não quer dizer dor de dentes que se debela com uma ida ao médico ou uma simples pastilha, não quer dizer também andar um bocado mais fatigado psicologicamente, também há pastilhas e médicos para isso, sofrimento é mesmo dor, funda e pungente, de perda quase sempre, seja pelo que for, e esforço, trabalho e luta, pelo que se persegue e quer construir, de desespero às vezes, seja por não poder dar de comer aos filhos, por ver destruída a liberdade, por não poder construir a liberdade, a paz e a justiça ou ver simplesmente acometida a vida. Sofrimento é ver negado o futuro, é o desastre e a absoluta impossibilidade de ser homem. Sofrimento é o terrível da doença e da dor física.
Teremos de resignar-nos diante do sofrimento? As religiões da velha Índia, por exemplo, preocupam-se sobretudo com esta pergunta. E nós, meu Deus, temos de calar-nos perante a morte do nosso André?
Mas damos graças pelos que não cedem perante tudo aquilo que esmaga os homens e desfigura a sua humanidade: pelos que estão nas tarefas políticas entendidas como um serviço que se presta aos outros e à comunidade, pelos que trabalham sem desanimar na investigação científica; pelos que estão presentes em todos os momentos junto dos feridos da vida, por aqueles que simplesmente realizam o seu trabalho diário com abnegação, pois têm consciência de que são fios de uma malha que, se se romper, torna os pobres ainda mais pobres e os excluídos ainda mais excluídos, etc Paulo dizia que se alegrava com os sofrimentos que suportava porque assim completava na carne o que faltava à paixão de Cristo (Cl 2,4), consciente de que a dor faz parte do tempo presente (Rm 8,18); por isso, “até este momento, sofri fome e sede e nudez, fui esbofeteado, andei perdido e cansei-me a trabalhar com minhas próprias mãos. Amaldiçoado abençoei, perseguido aguentei, caluniado consolei. Tenho sido até hoje, verdadeiramente lixo do mundo e escória da humanidade” (1 Cor 4,11-12). Mas completava: “Mas estou convencido que a condição do tempo presente não tem comparação com a glória que há de revelar-se em nós” (Rm 8,18).
Meus irmãos: as vindimas acabaram, começa a cheirar a amanhã, a Advento!
Arlindo de Magalhães, 21 de outubro de 2018