No Antigo Testamento, julgava-se que os males de que o homem sofria eram um castigo de Deus pelos pecados que cometia.
Tanto as desgraças individuais (doenças, ruína económica, morte violenta, etc.) como as coletivas (fome, epidemias, etc.) eram consideradas como sinal de que Deus tinha virado as costas ao seu povo. Ao contrário, quando uma desgraça se convertia em alegria, quando se superava um desastre, quando a escravidão ou a opressão conhecia a liberdade…, então os acontecimentos entendiam-se como sinais de que Deus perdoara e estava de novo de acordo com o seu povo.
Segundo esta mentalidade, quando o profeta Isaías anunciou que o povo exilado na Babilónia ia alcançar a libertação, Deus volta a aproximar-se do seu povo e proclama que “os olhos dos cegos, tal como os ouvidos dos surdos, se abrirão, o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35, 4-7).
No Evangelho, a surdez é ainda entendida como consequência do pecado, mas não do pecado pessoal; consequência do pecado social. Isto é: as doenças que aparecem nos Evangelhos representam os males que os homens sofrem por culpa de uma sociedade injusta, organizada contra o plano de Deus. A surdez é um desses males.
Deus teria escolhido Israel para realizar um ensaio exemplar, tirando o povo da escravidão e dando-lhe normas de convivência. Se as cumprissem, não voltariam a reproduzir-se na sociedade as relações de opressão que tinham sofrido no Egito. A missão de Israel era mostrar que era possível a convivência humana pondo como base a justiça e oferecer depois esta prática, já treinada, como ideal para toda a humanidade. Mas os grandes de Israel foram-se corrompendo e, segundo o testemunho dos profetas, começaram a explorar o povo, distraindo-o dos seus verdadeiros problemas, alimentando o seu orgulho: “Somos o povo eleito por Deus, o mais importante da terra, Deus está connosco, mas só connooosco…!”.
E o povo acreditou. Surdo, verdadeiramente surdo, o povo não escutava a verdade dita pelos enviados de Iavé, os profetas.
Desta surdez sofria o povo do tempo de Jesus, representado neste texto de Mateus por um surdo-mudo. Por isso não receberam o que Jesus dizia: que todos os homens são iguais, independentemente da sua raça, das suas tradições religiosas ou de qualquer outra separação que os homens, ao longo da história, estabeleceram entre si. Não perceberam que o mais importante é que eram todos filhos de Deus. A surdez dos discípulos era, naquele tempo, provocada pelo nacionalismo excludente de Israel. Para eles, era mais importante serem israelitas que pessoas humanas. Não perceberam que o Reino de Deus que Jesus anunciava era para todos os homens, não aceitavam que Deus não era património exclusivo da sua nação, não entendiam que Deus — o verdadeiro Deus de Israel, Iavé — era o Pai de todos os homens.
Nos Evangelhos, como em Isaías, as curas e a saúde das pessoas anunciavam o começo de uma libertação mais profunda para todo o povo e para toda a humanidade. A cura do surdo-mudo significava que os discípulos de Jesus tinham ouvidos para ouvir uma Boa Notícia e língua para a anunciar a todos os homens, porque todos somos iguais diante de Deus.
Mas há surdos no nosso mundo e – o que é talvez mais doloroso – surdos que se dizem cristãos. São eles os que não compreenderam ainda que a cor da pele não divide, que levantar muralhas e cortinas de ferro ou de cimento armado não resolve problema nenhum, que dividir uma sociedade em ricos e pobres, cultos e incultos, cristãos ou muçulmanos, empregados e desempregados, etc., etc., é uma loucura total. O racismo, legalizado ou não, que existe ainda em muitos lugares do planeta, a começar pela periferia das maiores cidades do nosso país, é consequência de um mundo injusto em que a pessoa humana não é o principal valor.
Jesus abriu os ouvidos de muitos anunciando que a humanidade tem uma meta, histórica e meta-histórica, a fraternidade, e um caminho para a alcançar, a luta pela libertação.
Não só com o que se passa na Europa mediterrânica mas também no nosso meio, eu próprio sou surdo, mudo e surdo-mudo.
Arlindo de Magalhães, 6 de Setembro de 2015
(foto: VALDRIN XHEMAJ/Lusa)