Torrente de alegria

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Todos vêm ao teu encontro (Is 60,3);
Os gentios recebem a mesma herança que os judeus: pertencem ao mesmo corpo e participam da mesma promessa, em Cristo Jesus, por meio da Boa Nova (Ef 3,5-6);
A estrela que tinham visto no Oriente seguiu à sua frente e parou sobre o lugar onde estava o Menino (Mt 2.10).
Vêm todos! Até os gentios!

Em 1973, o então Bispo do Porto, D. António, disse na fundação da paróquia de Nossa Senhora da Ajuda (Porto) que:

«(…) uma Igreja que se sente missionária, que tem o mandato deste mundo de hoje como ele é, que se sente pequeno rebanho, assembleia convocada e convocante, com missão principalmente de converter e cristianizar os cristãos ou, na alternativa, de passar aos bárbaros [quer dizer, aos gentios do tempo presente], essa Igreja ensaia novos caminhos de acesso às inteligências e corações deste tempo, a nova linguagem no diálogo com o homem de hoje e os novos métodos de inserção da graça na natureza deste mundo que se quer personalizado e de dimensões humanas na socialização das estruturas e mentalidades. (…).

Ao inaugurar hoje em forma canónica definitiva esta paróquia de Nª Sª da Ajuda, … eu não posso furtar-me à impressão de que algo de novo se está processando no grande plano da Igreja e da sua pastoral. (…).

É tempo de pastoralmente mudar: e, agora, ou mudamos ou seremos os novos pagãos a caminho igualmente do fim. … Que na mutação se perca o menos possível; mas que assim seja, cada vez mais e melhor!…».

Tinha acabado o Concílio Vaticano II (1965), o Bispo chegado do exílio salazarento (1969), e já cheirava a “vila morena” (1974). Eu fora ordenado presbítero sete anos antes, em 1967. Parecia tudo “um mar de rosas”! Voltávamos todos aos Atos dos Apóstolos: “uma só alma” (2,46).

Mas não. Logo em 74, o barco virou o leme. Eu repito o que já paguei muito caro: “Se a reentrada do Bispo Ferreira Gomes abriu renovadas portas de esperança, a sua prática pastoral — D. António era um grande pensador, mas as suas capacidades de Pastor não se lhe podiam comparar — não foi muitas vezes capaz de compreender o que estava em questão”.

Não terão sido muitos os que entenderam que o que estava em causa era isto: Paróquia ou Comunidade? Esta pergunta surgiu no momento em que se manifestava a crise da paróquia, crise devida à explosão urbana, dizem os sociólogos, e — digo eu — à necessidade premente de rever a formação e escolha dos novos presbíteros.

E eu penso que tudo começou pelo Seminário Maior, pela formação dos novos presbíteros, alguns dos quais nós conhecemos.

 A Igreja — era “tempo de pastoralmente mudar”! — devia insistir no esquema paróquia ou abrir-se à “graça da comunidade, reunida à volta da Palavra e do Sacramento, antevisão do Reino” — dizia Bonhöeffer — e “comunidade que é uma graça”, nunca uma instituição ou coisa parecida, e “graça não acessível a todos”! Em 1977, em Ermesinde, era “tempo de pastoralmente mudar”, mas a paróquia bateu o pé, e acabou a conversa.

É verdade que, em 1975, Paulo VI, numa Exortação Apostólica, Evangelii nuntiandi, tinha apontado entre muitas outras coisas, estas duas: Evangelização (anúncio de Cristo àqueles que o desconhecem…) e Comunidade (pequenas comunidades … que nascem da necessidade de viver mais intensamente a vida da Igreja…, sobretudo nas grandes metrópoles urbanas contemporâneas…).

O barco virou o leme. Parte importante do clero diocesano que até aí dava e queria dar aulas (de Moral!) nas escolas do Estado começou a abandonar esse lugar e passou a criar e depois a gerir IPSSs. A par, matou o domingo e multiplicou as missas e as intenções (quanto menos padres, mais missas). Não sei se foi nesta altura que começou esta possibilidade de celebrar casamentos, batizados e sei lá mais quê fora da paróquia de referência (que também por aqui morria) — a paroquial ou a capela do vizinho era mais bonita! — ou em sítios que não lembravam nem ao diabo. E, ainda por cima, começaram a ser os restaurantes a marcar a festa!

Da Evangelização é que ninguém mais se lembrou, ou melhor, quase mais ninguém se lembrou, apesar da palavra de Paulo VI: “evangelizar não de maneira decorativa, mas em profundidade, até às raízes”, e apesar da palavra de Jesus: “Ide por todo o mundo e anunciai a Boa Nova a toda a criatura!” (Mc 16,15).

Quando, em 1982, João Paulo II veio pela primeira vez a Portugal, os senhores bispos desta terra apanharam um grande raspanete do Papa: “Desejo sublinhar uma função do pastor: a de guiar o rebanho. Guiar é ir à frente”. O episcopado reagiu bem, logo no ano seguinte: “Urge desencadear uma ação sistemática de grande envergadura no sentido de proporcionar a todos uma verdadeira iniciação cristã inspirada na pedagogia catecumenal da fé”.

A tarefa era grande e praticamente ninguém lhe pegou. Em 1990, João Paulo II insistiu sobre esta questão, com um documento à escala planetária, “A missão do Redentor”, e o episcopado português repetiu-a, nomeadamente em 1994, com uma importante afirmação: “A formação cristã dos adultos supõe a renovação pastoral das comunidades [e] é a partir da formação cristã dos adultos que podemos encontrar a base para a educação da fé dos mais novos”. Mas nunca se passou à prática.

O clero mais novo depressa optou por fazer obras na paróquia — a Torre dos Clérigos, por exemplo —, e começou a dizer que a religiosidade popular era muito rica e botaba muitas missas, com muitas intenções. Entretanto, começaram os anos — marianos, paulinos, e de: o ano da misericórdia, da alegria do Evangelho, da fé, … —, iniciativas de dimensão planetária, diocesana ou paroquial, umas em cima das outras, com espalhafato e alarde (a que muitos chamam folclore). Assim nasceu “um mal-estar muito vasto não só em relação ao tom e ao conteúdo fundamentalista das homilias dominicais, como acerca das desastradas atitudes no acolhimento aos pedidos de batismo e de casamento. Em certos casos, em vez de constituírem uma oportunidade de evangelização, resultam em afastamento e azedume contra a Igreja” (Fr. Bento).

Sim, é verdade. Mas há mais. Agora, importante é “o restauro das igrejas de S. Lourenço, das Almas, S. José das Taipas, S. Nicolau, capela da Senhora do Ó, S. João Novo e Santo Ildefonso. Entre várias outras iniciativas, o Porto [?] pretende recuperar algumas tradições religiosas, como o presépio vivo, a Via Sacra, o cortejo de Carnaval, a recriação da tragédia da Ponte das Barcas”! Agora, não são os dominicanos que o dizem, mas sim o JN.

Meus irmãos:

Muito se falou da 1ª Exortação Apostólica do Papa Francisco, que levava por título “A alegria do Evangelho”. Encheram tudo de bandeiras e painéis­ – fachadas de igrejas, cruzamentos de caminhos, casas comerciais — a proclamar “A alegria do Evangelho”. Mas não houve nem Evangelho nem alegria. Alegria houve na Samaria quando, ali anunciada a Boa Nova, rebentou “grande alegria na cidade” (At 8,4-8); alegres ficaram os pagãos de Antioquia quando ouviram a palavra do Senhor (At 13,48), ou em Listra, quando Paulo, anunciador, encheu de alegria os corações dos Listrenses (At 14,17).

E já antes, a Boa Nova convidava insistentemente à alegria: Alegra-te é a saudação do anjo a Maria (Lc 1,28). A visita de Maria a Isabel faz com que João salte de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1,41). No seu cântico, Maria proclama: O meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador (Lc 1,47). E, quando Jesus começou o seu ministério, João exclamou: Esta minha alegria! Estou felicíssimo! (Jo 3,29). O próprio Jesus estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo (Lc 10,21). A sua mensagem é fonte de alegria: Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa (Jo 15,11). A nossa alegria cristã brota da fonte do seu coração transbordante. Ele promete aos seus discípulos: Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há de converter-se em alegria (Jo 16,20). E insiste: Eu hei de ver-vos de novo! Então, o vosso coração há de alegrar-se e ninguém vos poderá tirar a vossa alegria (Jo 16,22). Depois, ao verem-no ressuscitado, encheram-se de alegria (Jo 20,20). O livro dos Atos dos Apóstolos conta que, na primitiva comunidade, tomavam o alimento com alegria (2,46). Que, por onde passavam os discípulos, havia grande alegria (8,8); e eles, mesmo no meio da perseguição, estavam cheios de alegria (13,52). Um eunuco, recém-batizado, seguiu o seu caminho cheio de alegria (8,39); e o carcereiro entregou-se, com a família, à alegria de ter acreditado em Deus (16,34).

Porque não havemos de entrar, nós também, nesta torrente de alegria?!

Levanta-te, Jerusalém, eis a tua Luz!…

A multidão vinha também das cidades próximas… (At 5,16) e muitos seguiam depois o seu caminho cheios de alegria — o eunuco da Etiópia (8, 39) ou Saulo caído do cavalo —, cheios de alegria e do Espírito Santo (13,52) ficaram também Paulo e Barnabé depois de procederem ao anúncio aos pagãos de Antioquia, ou Paulo e Barnabé em Listra (14,17), etc., etc…

Meus irmãos: “Caminhante! Não há caminho, / faz-se caminho ao andar. /A andar faz-se caminho, E ao olhar para trás / Vê-se a senda que jamais / se voltará a pisar. / Caminhante, não há caminho / somente sulcos no mar” (A. Machado).

A parada próxima é a Páscoa, 16 de abril!

Arlindo de Magalhães, 8 de Janeiro de 2017

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