Um mundo novo

Jenny Olsson

Acabámos de ouvir uma página difícil de Marcos, uma espécie de sande literária: pão por cima e pão por baixo (o relato da filha de Jairo partido ao meio) e, no meio, outra coisa, a mulher com fluxo de sangue (ou seja, um episódio metido dentro de outro).

Reunidos, os dois relatos têm coisas em comum. A filha de Jairo tinha 12 anos, e a mulher há outros tantos que tinha uma perdida de sangue. Mas, sobretudo, em ambos os casos, é fundamental a fé de Jairo que Jesus reconhece – “Não tenhas receio. Crê somente!” – e da mulher a quem diz – “Minha filha, foi a tua fé que te salvou”.

O Evangelho de Marcos começa com o anúncio do Reino: «O Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho» (1,15). Jesus explicava depois que o Reino estava a chegar e que, por isso, era uma realidade futura, embora acrescentasse que está aí «à mão» de semear (Mc 1,15), está mesmo «no meio de vós» (Lc 17,20), «já chegou» até (Mt 12,28), embora a sua presença esteja ainda oculta.

Logo de seguida, Marcos apresenta Jesus como um grande taumaturgo, um homem que faz milagres, sobretudo curas. Vamos ver: só hoje (5,21/43) cura a filha de Jairo e a mulher que sofre um derramamento de sangue; logo depois, em Genesaré (6,53), ocupa-se dos que ”acorreram àquela região… doentes nos seus catres…, [que] colocavam nas praças e que pediam que os deixassem tocar pelo menos as franjas das suas vestes”; curou depois a filha de uma mulher cananeia (7,24), um surdo-mudo (7,31), um cego em Betsaida (8,22, um jovem epilético (9,14) e outro cego em Jericó (10,46). Enquanto isto, fez alguns milagres mais: por duas vezes, multiplicou o pouco pão que por ali havia para dar de comer às multidões que o procuravam e seguiam (6,34 ss e 8,1 ss), caminhou depois sobre as águas (6,45 ss) e transfigurou-se (9,2 ss). Não se trata de curas a mais e de milagres a torto e a direito?

O que Marcos quer dizer é que está a despontar um mundo novo, estão a começar a aparecer os fundamentos do Reino. Por isso é que Jesus ocupa um lugar singular na história das religiões. Combina dois mundos que nunca haviam estado unidos: em todas as religiões a salvação é só uma questão de futuro; mas com Jesus ela realiza-se já neste mundo e neste tempo, é uma salvação atual. Não há, em nenhuma religião, um taumaturgo como Jesus, que traz ao homem uma salvação que é o fim de um mundo velho e o começo de um mundo novo. Os milagres de Jesus que acontecem na história temporal dos homens são já um mundo novo que começa e uma terra nova que nasce.

Os milagres de Jesus são, pois, antes de mais, um protesto contra a miséria humana. Eles não esquecem que há muita gente que passa fome, que para muitos doentes não há cura, que para muitos concidadãos não há trabalho. Mas não é verdade que um simples doente se vê já curado se tem quem o trate e medicamentos para se tratar? E um pobre a quem se garante comida e teto? E um desempregado que a assistência social ou o cuidado dos vizinhos não desconhece?

As palavras têm muitos sentidos. E a mesma palavra dita hoje e há 2.000 anos atrás tem conteúdos insuspeitados.

Vou ler um texto escrito entre os anos 105 e 110 por Tácito (55-120), historiador romano, no seu livro Histórias: conta ele como (9-79), aclamado imperador romano pela tropa, foi taumaturgo sem querer.

«Durante os meses de Verão em que Vespasiano aguardava em Alexandria os ventos propícios para uma navegação segura, aconteceram não poucos milagres (miracula) que indicavam o favor do céu e as preferências dos deuses por Vespasiano.

Um homem simples do povo, natural de Alexandria e muito conhecido por ser cego, foi ajoelhar-se diante de Vespasiano e, a chorar, pediu-lhe a cura do seu mal; que o fazia por ordem de Serapis, um deus venerado pelo povo com especial fervor. Suplicou a Vespasiano que lhe permitisse ungir as faces e as pálpebras com a saliva da sua boca. [Naquele tempo ninguém se lavava: até ou ouvidos ficavam tapados de lixo! E sobretudo os mais velhos pensavam ter perdido a audição!  Descobriram mais tarde que, com a saliva, às vezes —por milagre! — a recuperavam! E com saliva levada pela língua ao interior do ouvido, por vezes humedeciam o tampão do lixo e recuperavam a audição! Milagre!] Outro homem que tinha um aleijão na mão pediu-lhe também, por mandado do mesmo deus, que lha tocasse com a planta do pé.

A Vespasiano, pareciam-lhe ridículos estes pedidos, e por isso os recusou. Mas os homens insistiram e ele começou a titubear: tinha receio de falatórios caso nada pudesse fazer por eles. E, ante as súplicas repetidas dos dois homens e a instâncias dos seus aduladores, acabou por lhe parecer atrativa a proposta. Pediu um relatório médico sobre as hipóteses de cura daquela cegueira e do aleijão da mão. A resposta dos médicos foi ambígua: quanto ao primeiro caso, a cegueira não era total, disseram os médicos; quanto à mão, que o paciente tinha era os dedos deslocados e que, usando adequadamente os meios curativos, eles seriam recolocados na sua posição normal. Talvez os deuses estivessem até interessados em que o príncipe (Vespasiano) fosse escolhido como instrumento da divindade! E disseram mais os médicos: que se a aplicação dos medicamentos ou dos tratamentos tivesse êxito, este seria atribuído ao Príncipe, caso contrário, toda a gente se riria, mas dos dois infelizes doentes.

Então Vespasiano, acreditando na fortuna que há bastante tempo o acompanhava e que no futuro nada lhe resistiria, acedeu aos pedidos que lhe tinham sido feitos, e com cara alegre. E toda a gente esperava expectante o que aconteceria. E, de facto, a mão recuperou a normalidade e ao cego brilhou de novo a luz do dia.

Testemunhas oculares ainda hoje contam o que então aconteceu.»

 

Entre os milagres de Jesus e os de Vespasiano, seu contemporâneo, há enormes diferenças: no caso de Jesus, só os que tinham fé eram curados, primeiro; mas protestar contra um mundo velho – segundo – não chega, tem de ser o lançamento dos fundamentos de um mundo novo a que o próprio Jesus dava o nome de Reino de Deus.

Vejamos o que diz o Vaticano II:

«Ignoramos o tempo em que a terra e a humanidade atingirão a sua plenitude: Deus ensina-nos que se prepara uma nova habitação e uma nova terra na qual reina a justiça e cuja felicidade satisfará e superará todos os desejos de paz que se levantam no coração dos homens. (…) Todos estes bens da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, frutos da natureza e do nosso trabalho, … voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal (…). Sobre a terra, o Reino já está misteriosamente presente; mas só quando o Senhor vier atingirá a perfeição» (GS 39).

Arlindo de Magalhães, 1 de julho de 2018

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *