Atravessavam, Jesus mai-los discípulos, rumo a Jerusalém e a Samaria – que, como sabemos, era um território paganizado, cujos habitantes não se davam com os judeus-judeus —, e Jesus teve uma ideia, assim à maneira do papa Francisco: Vinde cá! Ide vós à frente e em “todas as cidades e lugares aonde havemos de passar” anunciai que “o Reino de Deus está próximo”.
Já uma vez, atrás, tinha acontecido uma coisa semelhante: mas então enviou só os Doze “a anunciar o Reino de Deus” (Lc 9, 2). Agora, despachou 12 mais 72.
A uns e a outros, aos 12 e aos 72, deu praticamente os mesmos conselhos: Não leveis nem bolsa, [nem bordão], nem mochila, [nem pão], nem dinheiro, [nem duas túnicas] (Lc 9,3 e 10,4). No contexto da Última Ceia, repetiria isto mesmo, mas então só aos 12 (Lc 22,35/36).
Isto quer, portanto, dizer que Jesus enviou discípulos por duas vezes: uma vez 12, outra 72. Nestas coisas, e no contexto bíblico, é sempre preciso reparar no simbolismo dos números. Enviou 12, numa clara alusão às 12 tribos de Israel, isto é, a todo o seu povo de Iavé. Agora enviou 72, numa clara alusão aos 72 povos que, no contexto da cultura judaica, existiam à face da terra: “Trarei os teus filhos do Oriente e do Ocidente” (Is 43,5).
Saliento, portanto, que Jesus enviou tudo o que tinha a evangelizar todas as nações da Terra. Assim é que é! E toda e qualquer interpretação particularista do Evangelho neste campo é falsa. Pretender que enviou apenas 12, apenas os Doze, não é correto: Jesus envia todo um Povo, simbolizado pelo número 12, o número de todas as tribos de Israel, a evangelizar todas as 72 nações da terra, na conceção geográfica judaica, simbolizadas nos 72 discípulos que, depois dos Doze, Jesus envia também a todas as cidades e lugares (aldeias) (10,1) a anunciar que Está perto o Reino de Deus (Lc 10,9). Explico que, ao tempo, a palavra civitas>, que hoje significa cidade, não é o que por ela se entende: talvez a palavra atual concelho a traduza melhor, designando um território e sua população.
Portanto, Jesus não enviou apenas alguns (os Doze ou os 72). Enviou, sim, o que tinha: todos (12 ou/e 72) a todos (os povos da face da terra, do Oriente e do Ocidente).
O próprio Jesus explicaria: “Hei de enviar-vos profetas e apóstolos” (Lc 11,19), disse ele aos doutores da Lei.
Hoje sabemos que a Igreja não é um Povo que tem Profetas: a Igreja é um Povo de profetas. A Igreja de Jesus cumpre o antigo desabafo de Moisés: Oxalá que todo o Povo do Senhor fosse um Povo de Profetas (Nm 11,29). Por isso, o Vaticano II deixou dito que todo o Povo Santo de Deus participa da função profética de Cristo (LG 12); e acrescenta um pouco à frente: a todo o discípulo de Cristo incumbe o encargo de difundir a fé, cada um à sua medida (LG 17). De resto, como sabemos todos, a própria Liturgia batismal deixa tudo muito claro desde o início: Deus todo poderoso … te regenerou pela Água e pelo Espírito … para que … sejas para sempre membro de Cristo sacerdote, profeta e rei.
É preciso definitivamente termos ideias claras. Pensa mal quem pensa que, na Igreja, só aos ministros ordenados compete continuar a missão profética de Jesus. De maneira nenhuma: compete, sim, a todo o novo Povo de Deus, à Igreja, que é, pelo Batismo, um Povo de Profetas e um Povo em que reina uma igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à atuação, comum a todos os crentes, em favor da edificação do corpo de Cristo, uma igualdade entre todos os batizados, que constitui radicalmente este sacramento universal de salvação que é a Igreja.
E então os ministros ordenados, os Bispos, os presbíteros e os diáconos? Sim, compete a esses de modo especial. E por duas razões: primeiro, e antes de mais nada, porque são batizados como todos os mais batizados, isto é, membros deste corpo de profetas, de sacerdotes e de reis; e depois, porque pela graça do sacramento da Ordem são especialmente associados ao ministério e função de Cristo-Cabeça-da-Igreja.
Mas não são uma espécie de funcionários superiores, a quem se pede empenhamento maior pelo facto de terem uma vida mais livre!, pensam muitos.
É preciso cada vez mais clarificar teologicamente estas coisas, e estas categorias, para que percebamos que passou já o tempo de as confundir referindo ao ministério presbiteral em exclusivo o que compete a todo o Povo de Batizados. Basta de fazer da Igreja um rebanho de ovelhas mudas e mansas conduzidas por pastores que tudo podem e em tudo são [in]competentes.
Vamos ao Vaticano II: “Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus” (LG 31). Traduzamos isto para português, com uma frase do papa Paulo VI:
“O campo próprio da atividade evangelizadora dos leigos é o mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos mass media e, ainda, outras realidades abertas para a evangelização como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento” (Evangelii nuntiandi [EN 70]).
É por isso, meus irmãos, que há muito penso e digo que só quando todo o Povo de Deus tomar em mãos a sua missão poderá a Igreja de Deus do nosso tempo ter os bispos e presbíteros que a Igreja merece, já não digo que precisa, acabará esta santa confusão de bispos e cardeais, de religiosos e freiras, de presbíteros e leigos, com diáconos pelo meio, de sacristães e funcionários de cartórios. ” É claro a todos que os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (LG 40).