Numa teologia profundamente marcada pela mentalidade jurídica romana, Jesus tinha vindo à terra para pagar a Deus, seu Pai, os danos do pecado original do homem. Os deuses antigos gostavam de sangue e, por isso, mesmo depois de Abraão, Jesus era o “preço da nossa redenção” (1Tm 2,6). Por isso seria condenado à morte.
Sabemos hoje — digamos assim — que esse deus ávido de sangue não é o nosso Deus, tal como já não era o de Israel. Nem Deus é uma espécie de imperador romano que matava aqui e ali, a castigar e a vingar, nem Jesus buscou intencionalmente a cruz: a sua morte foi uma consequência da sua vida. Por si mesma, a cruz não tem sentido nenhum: «O Verbo de Deus, fazendo-se homem e vivendo na terra dos homens, entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a. Ele revela-nos que “Deus é amor” (1 Jo 4,8) e ensina-nos que a lei fundamental da perfeição humana, e portanto da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor» – diz o Vaticano II (GS 38).
É preciso perceber isto de uma vez por todas: toda a questão está no amor dos outros e no amor de Deus (Mt 22,37-39). Jesus centrou toda a sua vida no amor que leva à construção de um mundo novo – dizemo-lo o Reino -; a consequência foi o que ele sofreu pela paz e pela justiça. É sempre pela paz e pela justiça ou pela sua negação que se morre violentamente. Desde muito antes dos nossos mártires que é assim.
Como viveu Jesus? Não é verdade que foi numa íntima e constante relação com o mistério de Deus (a quem chamava Pai), traduzida em fidelidade ao serviço do Reino? Não é verdade que nos mostrou o rosto do Deus verdadeiro? Não é verdade que deitou a mão a quantos andavam à procura de Deus, samaritanas e nicodemos, centuriões e cegos, madalenas e cobradores de impostos, anunciando a todos a realidade de serem filhos de Deus? Não é verdade que foi ele que abriu as portas aos que até aí nem de um nome de homens eram dignos, fossem prostitutas, cegos ou ladrões, publicanos, adúlteros ou samaritanos, de muitos com quem comia ou com quem andava? Foi ou não foi um homem livre que desafiou o Templo, a Lei e o Sábado? Foi ou não o separador das águas entre religião e política (Deus e César)? Etc., etc., etc. Porque é que ele morreu? E não é verdade que, ressuscitado por Deus, nos abriu a perspetiva de uma Humanidade nova, de uma maneira nova de sermos homens?
Para Deus, onde está a questão: na cruz ou no amor de Jesus? Sem amor, a cruz não passaria nunca de ser um sinal de condenação e suplício, “escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1 Cor 1,23); mas com o amor de Jesus, tornou-se “árvore de salvação”, “força divina para nós” (1 Cor 1,18).
Não estranhemos, portanto, que, na iminência da sua morte — e Jesus não era tolo, bem sabia a que ponto tudo chegara —, Jesus tenha deixado o seu testamento. Foi assim: Sentou-se com eles à mesa. Era uma mesa e uma refeição festiva: a memória da libertação de Israel. Mas, antes disso… Toca a lavar os pés.
Sabemos bem o que isto representava no mundo antigo, social e religiosamente. Lavar os pés a alguém era sinal ou de abaixamento ou de muita intimidade. Jesus lavou os pés aos discípulos, não sem a relutância de Pedro e certamente que com espanto de todos os mais. Não era ele o Mestre!? “Também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Para que, como eu vos fiz, vós façais também”. Evangelho de São João (13,14-15). E, logo de seguida, tudo ligado: “Dou-vos um mandamento novo, que vos ameis uns aos outros…” (Jo 13,34). Isto, dizia, em São João.
Nos evangelhos sinóticos não é assim. Em vez do lava-pés e da entrega do mandamento novo no Evangelho de João, aqui, nos três Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, Jesus pega no pão e no vinho, e sabemos o que fez e disse, acrescentando: “Fazei isto em memória de mim”.
Assim a Eucaristia que celebramos, memória da morte e ressurreição, é também sinal do amor fraterno. Mais: sacramento da comunhão fraterna, sinal da eclesía, Igreja que é Corpo de Cristo. Por que é para nós tão importante a Eucaristia? E tão importante o lava-pés? Não é porque tanto o lava-pés como a Eucaristia são expressão diferente – ritual, simbólica, litúrgica e sacramentalmente – do mesmo mandamento novo: “que vos ameis uns aos outros…”?
Arlindo de Magalhães, 6 de Março de 2016