«Vós, os ricos, prestai-me atenção. […] Levastes na terra uma vida regalada e libertina, enchestes a barriga para o dia da matança! Condenastes e assassinastes o justo, que não pôde resistir!».
Antes do Fórum de Davos que todos os anos se celebra em janeiro, na Suíça, a Organização Humanitária Oxfam publicou um relatório segundo o qual o fosso entre pobres e ricos está a aumentar. Em 2016, 49,27% da riqueza mundial estará nas mãos de apenas 1% da população mundial. Mas o referido 1% mais rico tem visto a sua riqueza aumentar: era de 44% em 2009 mas subiu em 2014 para 48%. E as projeções da Oxfam preveem que, em 2016, repito, aumente para cerca de 50%; no ano 2020, andará já à volta de 54,50%.
O diretor executivo da Oxfam, Winnie Byanyima, presente na conferência de Davos, disse ali que “a explosão da desigualdade está a atrasar a luta contra a pobreza no mundo, numa altura em que uma em cada nove pessoas não tem o suficiente para comer e mais de mil milhões de pessoas ainda vivem com menos de 1,25 dólares (pouco mais de um euro) por dia”. E perguntava: “Queremos mesmo viver num mundo onde 1% da população tem mais do que todo o resto? A escala da desigualdade mundial é assombrosa”, comentou (Público, 2015.01.20).
A esta realidade contraponhamos o papa Francisco na Evangelii gaudium (191 e 192): «Os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: “Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício”.
Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas ‘prosperidade e civilização em seus múltiplos aspetos’. Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.»
São enormes os problemas que se deparam em todo o mundo, a nível da consciência individual e das políticas nacionais e globais. De um lado, as questões do desenvolvimento, da pobreza e da exclusão social, da educação, do aumento da criminalidade, da rutura dos laços familiares, da transformação do papel da mulher, da revolução levada a cabo pela tecnologia ao mundo do trabalho, da desafeição popular pela política a que se juntam os apelos por uma profunda reforma democrática, e ainda as múltiplas questões sobre o ambiente e a segurança que requerem ações concertadas a nível mundial.
Do outro, a necessidade de apoiar valores como a fraternidade (a que hoje se chama solidariedade) e a justiça social, e a urgência de abandonar quer a velha ideia de um Estado controlador, coletor de impostos pesados mas que defende os interesses ora dos cidadãos ora dos produtores, quer a de um Estado defensor de um individualismo egoísta na convicção de que os mercados livres são a solução para todos os problemas.
Nós, os cristãos, temos algumas coisas a ver com isto, ou isto é só com os profissionais da política e os técnicos da economia? A fé é só a aceitação de umas determinadas verdades (Creio em Deus, Pai todo poderoso…), dogmas e doutrinas, ou também uma forma de viver, a que nos ensinou Jesus de Nazaré na trajetória de toda a sua vida? A fé não está nos livros, nos papéis, nos documentos, nas doutrinas, mas nas pessoas, isto é, na vida. Somos seguidores de Jesus ou seguimos acriticamente a mentalidade única do sistema de pensamento único?
Hoje fala-se das “estruturas de pecado” de que nenhum indivíduo é responsável, embora com elas todos tenhamos a ver. Eu dou um exemplo: em Portugal, conduz-se pessimamente. Toda a gente que algum dia fez meia dúzia de quilómetros em Espanha ou em França sabe. De quem é a culpa? De tudo e sobretudo de todos, até de mim, que por vezes tenho de fazer coisas que não faço lá fora, senão não saio do sítio.
É por isso que há uma grande relação entre conversão individual e mudança de estruturas: “A originalidade da mensagem cristã não consiste diretamente em afirmar a necessidade da mudança de estruturas mas na insistência na conversão do homem que exige essa mudança. Não teremos um continente novo sem novas e renovadas estruturas; mas, sobretudo, não haverá um continente novo sem homens novos que à luz do Evangelho saibam ser livres e responsáveis” (Medellín, 1969; Justiça, 3).
Um dia, no já longínquo ano de 1654, num célebre Sermão de Santo António aos peixes, pregado na cidade de São Luís do Maranhão, o Padre António Vieira dizia assim:
«A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era menos mal. Se os pequenos comessem os grandes, bastava um grande para muitos pequenos; mas como são os grandes que comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: “Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como peixes que se comem uns aos outros”. Tão alheia cousa é não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer. Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer e fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não; não é isso que vos digo. Vós virais os olhos para o mato e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros, (mas) muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas: vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer, como se hão de comer.»
Mas a verdade é que cada um de nós tem de se perguntar em que medida é que, com ações ou omissões, contribui para estabelecer, manter ou acrescentar estas estruturas de pecado.
Arlindo de Magalhães, 27 de Setembro de 2015
(imagem: Dieter Pregizer/Fotolia/via SNPC)