Viajar

A história das civilizações ficou sempre escrita nos caminhos, na calçada romana, no Caminho de Santiago, no Caminho das Cruzadas, na Rota da Seda … A história bíblica, a do Antigo e do Novo Testamento, deixa perceber um povo em contínua peregrinação: “Meu Pai era um arameu errante, baixou ao Egipto e os egípcios oprimiram-no. Mas Deus tirou-os de lá com um braço forte e trouxe-os para esta terra” (Dt 26,5-10).

De alguma maneira se descreve a trajetória do Povo de Deus como a de um povo em contínuo movimento. O Novo Testamento noticia uma série de viagens: Maria vai à montanha da Judeia (Lc 1,39), depois a Belém (Lc 2,3-7), foge para o Egipto e regressa a Nazaré (Mt 2,13-23). Jesus andou por todo o lado e, no fim, subiu a Jerusalém (Lc 9,51…). S. Paulo é já há muito tempo considerado o maior dos andantes europeus: percorreu todo o Médio Oriente Norte, subiu ao território hoje Turquia e, navegando para Ocidente, passou em Creta e Malta…, e logo estava em Roma…

Sempre este viajar foi no tempo antigo importante ao homem: a liberdade, a educação, a descoberta, uma outra vida, etc. Mas, ao lado positivo do viajar aparecia o negativo: a insegurança, o desastre, perder-se o viandante, a dificuldade do caminhar…

Mas com o tempo aparece o tráfico (ou tráfego). Esta palavra, muitos pensarão logo em viagem, em deslocações rápidas e frequentes, divertidas e úteis… Não, tráfico é muito mais, constitui um fenómeno social, histórico, económico e jurídico. Nele — no tráfico — imerge o homem e toda a sociedade. O tráfico é uma questão e um problema social. Não bastam soluções normativas, castigos legais, etc, são necessárias soluções morais.

O automóvel não é uma máquina de matar nem para matar. Creio que há muito poucas pessoas que estejam convencidas que conduzir implica um risco, que conduzir mal ou imprudentemente é um possível homicida ou suicida. Espanta a contagem das vítimas dos acidentes de viação a nível nacional ou mundial!

Nós, os cristãos, entendamos que a estrada é um lugar teológico-moral. Que é que isto quer dizer?

O condutor tem como modelo esse grande viajante que foi Jesus pelos caminhos da Palestina. Hoje continua a viajar porque, disse ele, “eu estarei convosco sempre convosco, até ao fim dos tempos” (Mt 28,20). Com a caridade desaparecem automaticamente todas as transgressões do código; com a caridade se facilitam as estradas aos irmãos. A caridade é inimiga irreconciliável da imprudência, da temeridade e da insensatez” (Carta pastoral dos Bispos da Bélgica, 1966)

“O condutor, consciente das suas limitações e da importância da sua vida e da dos outros, tem de conduzir com prudência. A prudência na maneira de conduzir exige sempre um perfeito domínio de si e do carro para poder prever e remediar todos os inconvenientes que aconteçam. O condutor tem permanentemente de prestar atenção a todas as circunstâncias que possam tornar mais difícil e perigosa a circulação” (Bispos espanhóis, 1966)

”Os condutores, conhecedores do Código da Estrada, têm de cumprir por Justiça os direitos e deveres que lhe competem. A prática desta virtude impõe ao condutor importantes normas de comportamento: não pôr em perigo nem a sua vida nem a dos outros, não atentar contra os direitos do próximo, e não prejudicar os seus bens materiais. É preciso prestar atenção a todas as circunstâncias que podem tornar mais difícil ou mais perigosa a circulação” (Vicente Hernández García)

“Nenhum transeunte (pedestre, ciclista, motociclista, motorista) pode desprezar o Código da Estrada sob pretexto de que o mesmo contém leis meramente penais. Nesta matéria de tão alta importância, a lei civil nada mais faz senão interpretar em minúcias a Lei de Deus. Nenhuma ignorância pode servir de escusa, nem outra interpretação pode ser admitida senão a da prudência e a da caridade, as quais chegam a ultrapassar a letra da lei, a fim de serem mais fiéis ao seu espírito” (a afirmação é do Pe. Häring, um dos maiores do Vaticano II).

Ouviste, Arlindo?: Caridade, Prudência, Justiça.

Arlindo de Magalhães, 30 de junho de 2019