Nestes dias “de ir a banhos”, a liturgia, e particularmente a Palavra de Deus que se faz de novo ouvir e é proclamada por nós, reveste-se de uma especial acutilância, faz-se verdadeiro Magnificat!
Depois do “Come, bebe, descansa e diverte-te, pois tens riqueza que chegue para muitos anos” (Lc. 12, 19), hoje recorda-nos que somos “peregrinos sobre a terra” (“Meu pai era um arameu errante! – Dt. 26, 5). “Não temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino”… mas (há sempre um MAS) “Felizes aqueles que, ao chegar, o senhor encontrar vigilantes!” Porque, apesar de o Reino estar ao alcance de todos e ser para todos… há que vigiar.
Desde tempos antigos, e sobretudo inspirados pelo nosso pai Abraão, que sabemos que a fé significa partir… Abraão partiu porque estava atento ao chamamento. Somos um povo peregrino…
Mas quererá isso dizer que não temos raízes, que não somos de lado nenhum? Somos e não somos. Há muito que temos consciência de que estamos neste barco chamada Terra e de que não temos outra, mesmo antes da Ecologia “estar na moda”; cedo percebemos que temos que respeitar a Terra e só levar para o caminho o que é extremamente necessário, “Ide, (…) Não leveis bolsa, nem saco, nem sandálias.”
E sim, temos as nossas raízes, tantas vezes como as dos salgueiros, sempre à busca da frescura dos rios (Ez 17, 5), raízes de uma fé que é transmitida de geração em geração, qual “passagem de testemunho” como o da oração daquela “mãe por trás da cortina” (Pedro Castro Cruz, na Homilia de um passado Domingo); e temos igualmente o testemunho de imigrantes e emigrantes que, de regresso ao nosso país, de norte a sul, do continente às ilhas, trazem consigo a fé burilada por essa Europa fora e até por países irmãos mais quentes, doces, coloridos e transatlânticos.
Eles e nós somos, hoje, convidados a partir tal como Abraão partiu, ele “Que mesmo na noite dos primogénitos” não vacilou e que, de cajado na mão, se fez ao deserto e ao caminho, confiando que embora árido, aquele deserto teria também os seus oásis, as suas codornizes, o seu pão. E, no final do seu caminho, tem a visão do banquete eterno: a sua Terra Prometida.
Vigiar! Vigiar! Vigiar!
Vigiar exige atenção!
Vigiar exige estar alerta!
Vigiar exige não dormir!
No entanto, vigiar não é estar sentado na soleira da porta ou no banco junto ao borralho ou no jardim debaixo da sombra refrescante da árvore, pronto para saltar rapidamente a abrir a porta quando o noivo bater. Não! Não, porque ele não bate no ferrolho! Nem bate as palmas: “Ó da casa!” Nem muito menos toca a campainha ou liga quando ainda está a caminho!
Porque ser cristão é ser peregrino, o “fazer caminho” está no ADN do ser cristão. É já no fim desta semana que muitos, peregrinos da nossa Mãe, nos visitam em PEREGRINAÇÂO, lembrando-nos, a nós que podemos por vezes estar na soleira da porta, ou na praia, ou na esplanada, ou a ver os ciclistas da Volta, que como eles é preciso “estar preparados” para esta peregrinação que a todos é comum; que os gestos com que os acolhemos também é estarmos em peregrinação.
Em suma: somos todos transeuntes.
“… mas não podem vir noutro dia, em que não seja altura de férias…? Ou em que o tempo esteja mais ameno para caminhadas…? Ou que não haja ciclistas…? Ou…?”
Não! Eles como nós e nós com eles temos sempre de estar vigilantes, “porque não sabemos nem o dia nem a hora” (Mt 25, 13).
Não foi há muito tempo que eu me dei conta que estar vigilante não é estar atento à porta, sentado no banquinho, ou encostado à ombreira da dita, pronto para a abrir logo que o Senhor bata. Que o Senhor vai bater, isso é certo. Por isso devemos viver não como o Servo da liturgia da semana passada, mas VIGILANTES. E vigiar a chegada de quem? Do Senhor, com certeza! Mas também e muito mais a do meu irmão. Porque é no meu irmão que preparo o Reino; é com o meu companheiro que o caminho é feito. Ninguém caminha sozinho. Caminhar, fazer caminho, para um cristão, é um verbo comunitário. Se sou cristão porque sigo Cristo (é isso que significa “cristão”), então ser cristão é ser peregrino. Do mesmo modo, também ninguém faz caminho “em rebanho”, simplesmente por se ”deixar ir” com os demais (e é também o Filho do pastor, testemunhando Seu Pai-pastor, que o afirma): cada um faz o seu próprio caminho… mas este é um caminho que se cruza, se entrecruza, se entrelaça com outros tantos caminhos, de outros tantos cristãos, sempre a caminho… do Reino.
Como já dizia o poeta: o caminho é para se fazer… caminhando!
Rogério Alves, 11 de agosto de 2019