Vinde todos

Zlatko, ‘Music Art’

Ezequiel, um dos maiores profetas de Israel, sacerdote em Jerusalém, foi deportado para a Babilónia juntamente com a parte melhor de Israel, no ano 587 aC. O Livro do Profeta Ezequiel, escrito a contar toda essa desgraça, tem uma estrutura dramática muito simples, dividida em períodos claramente definidos. A sua mensagem preocupa-se apenas com uma única questão: recuperar a esperança de uma comunidade nacional e religiosa, submetida a uma grave crise ética, religiosa e política. A conversão era uma condição necessária para um futuro novo de um povo destroçado.

“O teu nome [ó Deus] espalhou-se entre as nações, graças à tua beleza. … Porém, tu [meu povo] confiaste na tua beleza!” (16, 14-16); mas, descansa, “eu usarei de misericórdia para com toda a casa de Israel e cuidarei do meu santo nome. E vou reconduzir os cativos de Jacob (39, 25-26).

Um catedrático alemão do Antigo Testamento (Universidade de Padeborn) intitulou assim um artigo — Fracassar é voltar a começar, sempre de novo (Selecciones de Teología 226, Abril-Maio 2018). Refere-se o artigo ao exílio da Babilónia do Livro de Ezequiel.

Desde o acontecido em Janeiro passado que eu disse que era necessário voltar atrás, partir de novo, remendar a meio não basta. É preciso voltar à estaca zero.

A crise teve diversas causas. Não foi só uma, há uma que é evidente, outras se encostaram.

Um jogo de futebol. O golo entusiasma, levanta-se a assembleia, até a que estava sentada, levantam-se os braços, beijos e abraços. De repente entra outro golo do mesmo lado, começa a cantoria… e a dança, canção conhecida ou de imediato cantada…, não necessita maestro nem coisa que o pareça!

Imagine-se agora: um estádio cheio, tudo sentadinho e caladinho, quando há golo, começa uma orquestra a tocar, uma orquestra e um grupo coral contratado, agora tocam eles, bem ou mal; o golo, a orquestra e o grupo coral a tocar e a cantar, e a assembleia – sócios, adeptos e claques — tudo muito sentadinho e quietinho que estão a ouvir a música, mas a ver a bola não!!!

Na tradição judaico-cristã, cantar era uma coisa permanente. Desde esse tempo que os anjos cantam todos no céu, fotografados muitas vezes de instrumentos musicais na mão; Moisés cantava (Ex 15,1), Israel cantava (Nm 21,17), o salmista apelava a que cantassem todos, “cantai ao Senhor” (13,6), “cantai a glória do seu nome” (66,2), “Vinde todos, cantemos ao Senhor” (95,1), “Cantai ao Senhor um cântico novo” (98,1), “o Justo cante” (Pr 29,6), “Exultai e cantai de alegria” (Is 12,5), cantavam o hino ”Jesus e os discípulos (Mt 26,30), Paulo e Silas cantavam (At 16,25), cantavam, cantavam todos, até “o galo cantava” (Mt 26,34), “Está alguém contente? Cante louvores” (Tg 5,12).

Que quer dizer tanto canto e tantos cantadores? São todos malucos ou [a assembleia]  a “cantar é cantar duas vezes”?

A Liturgia! A Liturgia é expressão comunitária e simbólica da fé; o canto é dela, da assembleia…, bem ou mal, canta. Na velha Europa mediterrânica não se canta [ou melhor, canta-se pouco] nem se dança. Já alguma vez participaram numa celebração litúrgica africana?

A Liturgia é a expressão comunitária da fé. A Liturgia não precisa de grupos musicais (?) como os que dão cabo de uma celebração litúrgica do casamento? São mais importantes que os noivos! Tocar? Tocar o quê? Ninguém aprecia música clássica, a não ser nos casamentos: uns tocadores não sei de quê, paga-se-lhes… E depois ninguém ouve…

A Liturgia é a expressão comunitária da fé. A música, a verdadeira música, é expressiva seja do que for. Sabem todos o que é a Missa em si menor? Mas eu não digo. Expliquem-me porque é que nos casamentos tem de se cantar sempre a Ave Maria de Gounod? Ninguém gosta de música clássica, mas a Ave Maria de Gounod!

Uma expressão comunitária é a expressão de uma comunidade. Uma comunidade não paga a trabalhadores musicais que lhe expressem as emoções, até os fadistas de Coimbra iam cantar debaixo das janelas delas!

É incompreensível que a assembleia esteja, caladinha, a ouvir alguns a cantar.

Esta é a questão. Esta foi a questão. E a resposta já começou.

Arlindo de Magalhães, 23 de setembro de 2018