Vocação e tarefa

Joan Miró

Não há outro Deus senão aquele que de si disse que se chamava EU SOU AQUELE QUE SOU > Iavé (Ex 3, 14). Mas os Judeus não ousavam sequer dizer o seu nome: por isso, quando liam a Bíblia e aparecia a palavra Iavé pronunciavam, Adonai, isto é O Senhor.

Dizer o indizível, o inexprimível, é muito difícil. Nós, humanos que o digamos: ou será que as cartas de amor já deixaram de ser ridículas?, como reconhecia Fernando Pessoa.

Dizer o indizível, dizer de Deus uma palavra que seja, é muito difícil. É esta de resto uma das maiores dificuldades das Religiões. Chamar-lhe simplesmente “meu tudo”, Alá, Iavé, Eloim, Adonai ou El Shadai, ou dizer, com S. João da Cruz, ”mostra tua presença / e mate-me tua vista a formosura. Lembra-te que a doença / de amor nunca se cura / senão com a presença e a figura”, revela já alguma coisa de indeclarável. As religiões bem tentaram escapar à dificuldade diversificando-lhe os nomes e multiplicando sacrifícios e holocaustos, orações e ritos, liturgias e festas! Mas não foram longe, como de resto já Isaías enunciava no início do seu livro. “Estou farto” (Is 1,11), punha ele na boca de Iavé.

É que também as religiões necessitam, de quando em vez, de dar saltos qualitativos em frente. Chamem-se-lhes Concílio Vaticano II ou Livro do Deuteronómio.

Deuteronómio é uma palavra grega formada de duas outras: deuteros (segunda) + nómos (Lei). O Livro do Deuteronómio é o Livro da 2ª Lei. A primeira fora dada por Deus ao Povo, no Sinai, e está espalhada pelos livros do Êxodo, do Levítico e dos Números. A 2ª Lei é esta, a do Deuteronómio, aplicada à vida sedentária do Povo.

Literariamente, o livro está escrito como se se tratasse de um pacto estabelecido entre um rei e o seu Povo; há mesmo escritos semelhantes entre os povos vizinhos do Israel naquele tempo. Sempre o diálogo e intercâmbio entre a cultura e a fé!

Para lá das leis judaicas e do seu minucioso — torna-se hoje quase impossível para um ocidental ler este livro, tantas são as minudências legais e rituais que impõe, por exemplo, no sacrifício de um touro oferecido a Iavé! — há nele afirmações basilares: “Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças (ou sejam, a riqueza e o poder político)” (Dt 6,5).

Era isto que o escriba queria ouvir da boca de Jesus, esse homem que despertava paixões, é verdade, mas de quem havia que desconfiar criticamente.

Jesus sossegou o escriba. Por isso não esqueceu, como não podia deixar de fazer, uma outra afirmação, não do Deuteronómio mas do Levítico (19.18): “Amarás o próximo como a ti mesmo”. No entanto, a vaguear nos meandros de um culto ritualista e vazio de sentido, o Judaísmo esqueceu-se muitas vezes do próximo, apesar de todas as violentas chamadas de atenção do próprio Livro do Deuteronómio mas sobretudo dos Profetas. Por isso, em toda a pregação de Jesus, a questão de Deus passa pelo Homem, por todos os homens, mas sobretudo pelos pobres.

Diante da síntese de Jesus à questão que lhe fora colocada, nada mais há a dizer; a Lei resume-se no Amor que “vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios”. O escriba ficou então definitivamente sossegado e concordou com a resposta; afinal, ele não andava longe do Reino de Deus, como reconheceu Jesus.

«Amarás o Senhor teu Deus… e o próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos de resumem toda a Lei… e os Profetas» (Mt 22,36-40).

Eis a questão, o essencial da questão: em última análise, o Amor de Deus, Criador e Fim das criaturas; mas o seu critério é o Amor do Próximo. De facto, “aquele que não ama o seu irmão que vê, é incapaz de amar Deus que não vê” (1 Jo 4,20). A Caridade e a Fé são inseparáveis: a Fé é o fundamento “radical” do Amor, e o Amor a prova provada da Fé (“por isto reconhecerão que sois meus Discípulos: se vos amardes uns aos outros” – Jo 13,35).

Esta é a nossa vocação de batizados, de Discípulos de Jesus. Pelo Amor do Próximo nos têm reconhecido ao longo dos séculos (“Vede como eles se amam”, Tertuliano, séc. III), em nome dele nos têm invetivado (“religião, ópio do Povo”), e pelo Próximo tanto temos batalhado ao lado de tantos…

“Amarás o Senhor teu Deus… e o próximo como a ti mesmo. Nestes dois mandamentos de resumem toda a Lei… e os Profetas”.

O Amor é hoje uma palavra traiçoeira, em que a gente se não pode fiar muito, utilizada em todas as frases, devotas ou políticas.

Que vamos, pois, fazer com ela?

A sensibilidade e as necessidades de cada tempo vão-lhe dando contornos. Não é verdade que, nos tempos conturbados da 2ª Guerra Mundial uma sua tradução dava pelo nome de Democracia, mas agora já não, e não só no Brasil e na Itália?

“Amarás o Senhor teu Deus e o Próximo como a ti mesmo”. Neste século que já conheceu um pouco de todos os “ismos”, razias nucleares ou étnicas, multidões famintas, muros e redes levantados a separar, Natureza destruída em nome de um progresso material descontrolado…, é ou não é Amor uma palavra louca?

E que religião a proclama? O Judaísmo que a conhece bem? Parte grande do Islamismo que a nega em nome da jihad, a “luta no caminho de Deus” transformada em “guerra santa”? E o cristianismo que a conhece de cor e salteado!

Esta é a nossa vocação e a nossa tarefa para o tempo presente. E não nos demitiremos de ensinar isto aos mais novos. Porque entregaremos o que nos foi dado. Os nossos maiores ensinaram-nos a nós que “amarás o Senhor, teu Deus“, e “o Próximo como a ti mesmo”. Nós o ensinaremos aos nossos irmãos e aos nossos filhos.

Arlindo de Magalhães, 4 de novembro de 2018