Desde o último domingo de Junho que, a par e passo com o Evangelho de Lucas, seguimos Jesus na sua longa subida a Jerusalém. Pouco a pouco, ele vai tomando consciência da inevitabilidade do que o espera: a morte. Não era tolo e, no contexto da sociedade do seu tempo, tudo o fazia crer: não escapava. A esta perceção que diria física, juntava-se um entendimento psicológico do que começava a desenhar-se e acabaria por tornar-se realidade.
A par, portanto, de ensinamentos e acontecimentos que ocorriam ao logo dessa peregrinação até à cidade santa, Jerusalém, Lucas dá-nos conta do drama que engrossava na alma de Jesus. Ele começava a fazer como que o balanço da sua vida que pressentia breve: como quem olha para trás, percebia que muitas coisas tinham sido duras, mas que, também, o caminho tinha de ter sido por ali…!
Uma fala de Jesus pouco conhecida:
Eles [os discípulos] disseram: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.» Jesus respondeu: «Não sabeis o que pedis. Podeis beber o cálice que Eu bebo e receber o batismo com que Eu sou batizado?» Eles disseram: «Podemos, pois.» Jesus disse-lhes: «Bebereis o cálice que Eu bebo e sereis batizados com o batismo com que Eu sou batizado; mas o sentar-vos à minha direita ou à minha esquerda não pertence a mim concedê-lo: é daqueles para quem está reservado.» (Mc 10, 36-40).
E quanto mais Jesus se convencia de que a morte acabaria por atingi-lo, mais ele se angustiava: “tenho de receber um batismo (de sangue) e estou ansioso (o original diz mesmo angustiado) que ele se realize!” (Lc 12,50). Começa aqui aquela angústia cujo auge o mesmo Lucas haveria de registar na noite que lhe antecedeu a morte: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!” (22,42).
A par desta angústia, Jesus reconhecia uma certa frustração: tinha vindo atear o fogo, e nada! Claro que, na linguagem bíblica, a palavra fogo quer dizer duas coisas: castigo purificador e o Espírito de Deus. Aqui, Jesus refere-se certamente ao Espírito. Só que o fogo do Espírito não ardia, e o mundo, vazio de Deus, continuava velho: os pobres continuavam a ser pobres, os pequenos a ser o joguete dos grandes, o egoísmo, o orgulho, a injustiça, a violência e o ódio a encher o viver dos homens.
Por isto mesmo, Jesus dava-se conta de que acabariam por matá-lo. Não se tratava de uma constatação superficial; Jesus tomou mesmo consciência do que iria acontecer.
Ele conhecia de resto muito bem toda a história bíblica, como muitas vezes deixou perceber. Acontecera assim com todos os antigos profetas: anunciando e propondo caminhos novos, acabaram por molestar os grandes com as suas radicalidades e denúncias, pondo a nu hipocrisias e mentiras, denunciando abusos contra os pequenos e os pobres. Assumindo-se como uma espécie de consciência moral do mundo do seu tempo, tornaram-se insuportáveis, e acabaram mortos. Neste mesmo evangelho de Lucas, um pouco antes do trecho de hoje, é o próprio Jesus que diz: “Ai de vós, que edificais sepulcros para os profetas que os vossos pais mataram!” (11,47). Contra eles, de facto, levantaram-se tantas montanhas de ódio que o próprio Jeremias (1ª leitura de hoje) se lamentava diante de Deus pelo facto de ter nascido para ser um “homem de conflito em todo o país”: “O meu povo é para mim como um leão da floresta, a rugir contra mim” (Jr 12, 8).
Jesus conhecia tudo isto muito bem. E sentia-se um novo Jeremias. Tomou por isso, progressivamente, consciência de que caminhava para a morte e começou a angustiar-se pela inevitabilidade de ter de passar por um “batismo de sangue”.
O homem-Jesus, homem em tudo igual a nós exceto no pecado (Heb 4,15), digamos que em conflito com a sua própria divindade.
Este é, afinal, o drama da Igreja e dos cristãos, hoje em dia. A cada um de nós basta olhar para a sua própria trajetória pessoal. E basta ver o sinal da Igreja no tempo que corre. Jesus é e continua a ser a bandeira discutida que divide o mundo. Nós e a Igreja herdámos a vocação profética de Jesus; somos profetas desde o Batismo. Somos – deveríamos ser – consciência do mundo, mesmo denúncia profética do que não está bem, seja o sofrimento dos pobres ou as injustiças cometidas contra os pequenos. Levamos na alma o desejo de um mundo novo, cheio do Espírito, em que possamos viver felizes no amor de Deus e na fraternidade de todos os homens.
Mas na prática como é? Nós não somos profetas porque a Igreja não é profética, ou a Igreja não é profética porque não há cristãos-profetas?
Arlindo de Magalhães, 18 de agosto de 2019