Fez em Março passado 6 anos que o conheci. Tivemos uma grande conversa que se poderia resumir nestas palavras: ”A fé cristã numa era de incerteza”.
Vinha de longe, lá nascera e lá vivia, homem de cultura diferente, estranha até. Em certos pensares e fazeres, no entanto, coincidíamos.
Por exemplo, disse-me ele, evito as reuniões do clero, não porque não goste dessa gente simpática que são os meus irmãos no sacerdócio, nem porque me sinta de qualquer forma superior — não tenho motivo para isso —, mas por uma simples razão: quase sempre que o faço, assalta-me um misto de tristeza, de compaixão e desamparo, e uma perceção de que, apesar da abnegação e da boa vontade de muitos sacerdotes, este mundo está amaldiçoado.
O tema desses encontros já me haviam surpreendido, sobretudo quando andei por Salamanca e a ensinar por aqui, tanto que, em certas ocasiões, timidamente, levantei algumas perguntas: “Em que é que isto vai dar? Que restará desta Igreja, dentro de alguns anos? Igrejas vazias — como as destes dias?, acrescento agora —, ou como doutras, cheias, mas com a polícia pelas costas?”.
Os cristãos do nosso tempo têm de entender o cristianismo como um estilo de vida cuja dimensão profunda é a espiritualidade e a solidariedade para com aqueles que são tratados injustamente na e pela sociedade.
E aqui retorno aos Atos, a ler o textinho quase todos os dias: “no primeiro dia da semana, reuniam-se em grupo (em grupo dir-se-ia em eclesia > hoje, em igreja), mas esperavam uns pelos outros. Quando estivessem todos ou quase, depois de recordarem algum episódio ou um ensinamento — ainda não tinham escrito um livro a ser chamado evangelho (boa notícia) —, comiam um pão e bebiam um gole — como lhes havia dito o Senhor, — em sua memória” (Mt 18,20).
A última que ele me mandou, o meu amigo, foi esta: “A noite escura do espírito em que as pessoas são confrontadas com o silêncio de Deus e sentem a sua ausência, é um tempo extremamente importante para o crescimento e maturação espiritual de uma pessoa”.
E pronto! Agora comunicamos só por e.mail; por WhatsApp, não. Há dias, aconteceu-lhe — parece-me — o que a mim me sucede muitas vezes: sem querer, o dedo fugiu-lhe… e o meu telelé tocou, mas só um segundo! Comunicamos só por e-mail.
E ele disse-me assim:
«Muitos de nós pensávamos que a epidemia iria conduzir a uma espécie de blackout (apagão) de curta duração, a uma interrupção das atividades sociais habituais de um modo ou outro previsíveis, e, depois, tudo voltava a ser como antes.
Mas não vai mais ser assim. Aliás, nem seria bom que tentássemos que fosse. Depois desta experiência global, o mundo já não será o mesmo, e, provavelmente, está certo que seja assim.
Em momentos de graves calamidades naturais, é natural que nos preocupemos sobretudo com as necessidades materiais necessárias à sobrevivência. Mas “nem só de pão vive o homem”. Talvez tenha chegado o momento de examinar as implicações mais profundas deste golpe infligido à segurança do nosso mundo. Podemos dizer que o inevitável processo de globalização atingiu o seu cume: a vulnerabilidade global de um mundo global é agora evidente» (Halík).
Repito:
«A vida é um dom de Deus.
Mas um misterioso vírus, em menos de três meses,
colocou o mercado financeiro em alerta,
desacelerou a economia global,
modificou os hábitos quotidianos,
reavivou medos ancestrais
e pôs em xeque os líderes do planeta.
E obrigou-nos a confirmar a fragilidade humana
e a disputar a sobrevivência,
a sentir a necessidade do abraço e a valorizar o coletivo,
a vergar-nos diante da “mão poderosa e misericordiosa” que tudo fez
e a sondar a (re)significação da vida.» (Lino Maia)