A Misericórdia

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“Traduttore traditore” – dizem os italianos: O tradutor é um traidor! É muito difícil passar um texto duma língua para outra.

É muito difícil traduzir a palavra hebraica “rehamîm” > clemência > compaixão > pena > indulgência > perdão. Tudo isto cabe em “rehamîm”. Descritivamente, “rehamîm” é um sentimento íntimo e profundo, de amor, a ligar duas pessoas: “Assim como um pai tem rehamîm do seu filho, assim Deus o tem para com os que o levam a sério” (Salmo 103,13).

Difícil no hebraico, difícil no grego: ”oiktirmós”, que um qualquer dicionário escolar traduz vagamente por “sentimento de compaixão e piedade”.

O latim criou uma palavra que nada tem a ver nem com o hebraico nem com o grego: misericordia (misereo > ter compaixão, piedade… + proveniente do coração [cordis]).

Conceitos e palavras complexos, repletos de conteúdo mas não de todo precisas! No Evangelho de Lucas agora mesmo lido, Jesus — depois de ama os teus inimigos, se te baterem numa das faces dá também a outra, empresta antes que te peçam, ama os que não te amam, também os pecadores… — resume tudo num “Sede misericordiosos como o vosso Pai o é” (Lc 6,36). Ou seja, depois de insistir na necessidade de praticar, desde o fundo do coração e de modo universal, o amor do próximo, perdoando mesmo aos inimigos e perseguidores, fazei o que está acima da Lei.

Nesse sentido, e numa encíclica publicada em 1980, A Misericórdia Divina (DM), o Papa João Paulo II dizia assim:

«A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a Justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não permitir àquela força mais profunda que é o amor modelar a vida humana nas suas várias dimensões».

«Aquela força mais profunda que é o amor»: cá estamos nós na dificuldade de criarmos uma palavra para dizer esta coisa vaga — aquela força… — que vem já da cultura hebraica e da grega. Os latinos foram mais objetivos: misericórdia não é uma palavra vaga mas também não explica o conteúdo: «Aquela força — indizível — mais profunda que é o amor».

No Livro do Êxodo, Moisés dirige-se ao Senhor nestes termos: “Ó Deus de Israel, um Deus rehamîm e clemente, pausado na ira, cheio de bondade e de fidelidade, que mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado, mas não declara inocente o culpado nem pune o crime dos pais nos filhos” (Ex 34, 5-6).

Este Deus, num tempo em que ainda era “olho por olho, dente por dente”, este Deus estava acima da Lei; como acima da Lei estava o samaritano da estrada para Jericó que acudiu ao homem caído nas mãos dos salteadores (Lc 10,29-37), ou o próprio Jesus quando orou ao Pai assim: “Perdoa-lhes, Pai, que não sabem o que fazem!” (Lc 23,34).

A misericórdia ultrapassa a Justiça:

“A misericórdia autenticamente cristã é, em certo sentido, a mais perfeita incarnação da igualdade entre os homens e, por conseguinte, também a incarnação mais perfeita da justiça, na medida em que esta, no seu campo, tem em vista o mesmo resultado. Enquanto a igualdade introduzida pela justiça se limita ao campo dos bens objetivos e extrínsecos, o amor e a misericórdia fazem com que os homens se encontrem uns com os outros naquele valor que é o mesmo homem, com a dignidade que lhe é própria” (DM 14).

Por isso Paulo dizia aos Coríntios:

«Vós, os eleitos de Deus, seus santos e imaculados, revesti-vos de sentimentos de terna compaixão, de benevolência (bem querer), de humildade, de doçura, de paciência: suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, mesmo que algum tenha motivo de queixa de outro. E, acima de tudo, a caridade, que é o vínculo da perfeição. Que a paz de Cristo reine em vossos corações: é este o objeto do apelo que vos reuniu num mesmo corpo. E, por fim, vivei em ação de graças» (Cl 3,12).

Nas comunidades, é preciso dizer isto e viver isto. No mundo, não é assim; resolve-se tudo com agressões e vinganças, tribunais e, por fim, guerras, sejam elas quais forem. Mas «entre vós não será assim» (Lc 22,26). Entre nós vigore o que o Senhor Jesus Cristo nos ensinou: «Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido».

Na Igreja (os cismas…), nas comunidades (na nossa, como experimentamos todos…), nas famílias (zangas insanáveis e dramáticas, por vezes……), nas sociedades (guerras civis ou internacionais…), que são na prática lugares ou sacramentos do amor de Deus aos homens e dos homens entre si, grandes amores se desfazem transformados muitas vezes em ódios maiores.

O Papa Francisco pensou num Ano da Misericórdia (Dezº 2015 – Nov 2016). Mas como na Igreja não há programação capaz, ainda andam por aí uns cartazes, mas onde é que já vai o Ano da Misericórdia! 5 frases do Papa:

“Redescubramos as obras de misericórdia corporais: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos doentes, visitar os presos, enterrar os mortos. E não esqueçamos as obras de misericórdia espirituais: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos” (Bula Misericordiæ Vultus, 2015).

“Como é difícil muitas vezes perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar cair o rancor, a raiva, a violência e a vingança são condições necessárias para viver felizes” (Mensagem para a XXXI Jornada Mundial da Juventude 2016).

“Quanto desejo que (…) as nossas paróquias e as nossas comunidades cheguem a ser ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença (Mensagem para a Quaresma 2015).

“Não se pode viver sem perdoar ou, pelo menos, não se pode viver bem, especialmente em família (Audiência geral, 4 Novº 2015).

“A misericórdia para a qual somos chamados abraça toda a criação que Deus nos confiou para sermos cuidadores e não exploradores, ou pior ainda, destruidores” (Audiência inter-religiosa, 20 Outº 2015).

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