A fé que nos salva

Herbert Boeckl, Saint Peter`s rescue from the Lake Galilee (1925, pormenor), Catedral de Maria Saal, Carinthia (Áustria)

Em época de desejada fuga mundi, a Palavra deste Domingo conduz-nos até ao monte para, dali, regressarmos ao “mar alto” de que não devemos querer fugir. Já me explico. Mas, antes de mais e como sempre, vamos ao(s) texto(s). 

Na primeira leitura escutámos o conhecido episódio da tríplice teofania no Horeb, com Elias como co-protagonista. Rapidamente reconhecemos a “trama” do texto e a “simbólica” dos seus elementos, também devido à espécie de “paralelo” com a teofania a Moisés, no Sinai, embora no texto de Elias só a «ligeira brisa» («fino silêncio», na tradução certeira de D. António Couto) é verdadeira manifestação da presença/passagem de Deus por ali. Mas gostaria de ir por outro caminho, fixando-me não nos ditos “elementos naturais” (vento, terra, fogo), mas antes num lugar: o monte. 

Não vou repetir o que já tantas vezes (e certamente melhor do que eu) outros aqui mesmo disseram sobre a simbologia (bíblico-espiritual, histórico-cultural ou outras) do “monte” e do que ele significa até para a história e identidade (passada, presente e futura) da nossa Comunidade. Atrevo-me, tão só, a recordar algumas “expressões-chave”, como que uma “armadura de clave” a indicar o “tom” do que direi de seguida. 

A simbologia do “monte” (com o seu “cume”) destila-se, para o caso presente, com três “d’s”: desejo, desafio e deserto. Desejo de ver o que “para lá” (ou a partir) deles se vislumbra; desafio de vencer as dificuldades que a subida nos apresenta e de, atingido o cume, lá “deixarmos a nossa bandeira” (ou “postar” a nossa selfie), para depois descer, não sem (in)esperadas dificuldades; deserto de radical (porque biológica) solidão, na vitória ou na derrota que eles nos possam impor, pela (in)capacidade de (n)os superarmos. Por outro lado, sobe-se ao monte não para nele ficarmos (“montar tenda”) mas para, lá chegados, e depois de “vermos” e “ouvirmos” o que eles nos revelam (com mais ou menos “ecos”, exteriores ou interiores), deles regressarmos, porventura “por outro caminho”, ao “vale” por onde corre o rio da vida… 

Permanecendo no monte, abrimos agora o Evangelho, mantendo a página-porta de Elias entreaberta. 

Assim, se o Horeb é, para Elias, lugar de fuga e de algum descanso (embora “sobressaltado”), o “monte” (sem nome) a que Jesus sobe é lugar de silêncio potenciador da oração. Elias “chega” ao Horeb literalmente “alimentado” e “comandado” pela voz do anjo/Deus (1 Rs 19, 7-8); no Evangelho, é Jesus quem, depois de alimentar uma multidão (Mt 14, 21) decide livremente procurar um refúgio para orar… sozinho. Ambos experimentam o desafio da solidão e do silêncio, inauguradores de um espaço-tempo que não se mede com relógios (Elias «passou a noite», Jesus esteve «desde o cair da tarde» até à «quarta vigília da noite» – entre as 3h e as 6h da madrugada, portanto)… 

Elias é “todo ouvidos”: não diz palavra, limita-se a escutar e a cumprir o que Deus lhe manda («Sai fora», «permanece»). Enquanto que Deus “faz acontecer” («o Senhor passou»), Elias apenas vê (o vento que «fendia as montanhas e quebrava os rochedos»), sente («um terramoto»), presencia (um «fogo»)… mas somente quando ouve («uma ligeira brisa») é que “percebe” que Deus está verdadeiramente ali…

No Evangelho, se inicialmente acompanhamos Jesus no silêncio (procurado no monte), logo o texto tudo interrompe e (nos) desassossega: da barca em que os discípulos viajavam sozinhos, “obrigados” por Jesus, ecoam gritos de desespero. Sem o seu Mestre (o mesmo e único que tinham visto a acalmar semelhante tempestade – Mt 8, 23-27) e a ter que enfrentar os ventos que (afinal!) eram contrários, nada podem! Tal grupo em tal barca com tal medo: assim viu Tertuliano, logo no séc. II-III, a própria Εκκλησίαekklesia (comunidade, Igreja), de então e de sempre. Ao terror provocado pelo revirar da barca, soma-se a visão terrífica de uma figura desconhecida e disforme («um fantasma») que caminha sobre as águas e vem na sua direção. Tudo veem, mas nada percebem, porque nada re-conhecem; tão turbado está o seu olhar e tão profundo é o seu grito que só a voz de Jesus, deles tão bem conhecida, os pode esclarecer e apaziguar: «Tende confiança. Sou eu. Não temais». Irrompe então a figura de Pedro, que tenta aproximar-se de Jesus… mas logo “perde o pé”, vacila. Talvez seja a forma de o evangelista nos dizer: de nada vale pensarmos que bastará estarmos materialmente perto de Jesus (ou das suas “figurações”) se não estivermos sobretudo próximos d’Ele pela e na fé… 

Torna-se agora claro o “percurso” a que inicialmente aludi: é quando aceitamos o desafio do silêncio, do deserto e da solidão que se nos é revelado o mandamento e a sua exigência de resposta: enquanto Elias nada diz mas faz, os discípulos gritam (de susto) e respondem, pela voz de Pedro, mas com dúvidas e com medo! Assim, só a fé (que escuta e vê “de outro modo”) pode garantir a “certeza da presença”: uma certeza que inspira uma confiança que vence toda a dúvida (embora nunca a anulando). Só assim brota a confissão de fé («Tu és verdadeiramente o Filho de Deus»), só possível porque fundada numa “experiência pós-pascal”: é o saber que Jesus já venceu a morte (e, nela, toda a espécie de “tormentas”) que permite a Mateus colocar tais palavras nas bocas dos discípulos. É essa experiência – da qual também nós partilhamos, ainda que “dois mil e tal” anos depois, que nos permite reconhecer a presença constante de Deus. Sabemos que Ele (nos) fala, e até “de muitas maneiras” (Dei Verbum 2. 4)… Mas também sabemos (a muito custo) que, por vezes, Ele também Se cala… Contudo, nem assim Ele está ausente ou distante: o “segredo” será sempre o de estarmos dispostos para O procurar, confiando que, qual “Pai pródigo”, Ele vai estar lá/cá sempre. 

Esta confissão de fé, densa e necessariamente “comunitária”, é ela mesma o busílis da própria identidade da Igreja-comunidade, aqui e sempre embarcada e peregrina nos mares (tantas vezes encapelados) da História. E pouco importa se uns vêm nesta barca um pequeno bote ou um veleiro, a nau “S. Gabriel” de Vasco da Gama ou a canoa do velho Santiago e do jovem Manolin do romance de Hemingway: os perigos que o mar dos tempos nos apresenta poderão ser tão reais quanto o “grande peixe” de Hemmingway ou tão imaginários como o “Mostrengo”/”Adamastor” de Camões, Rabelais ou Pessoa, mas a luta há de ser sempre a mesma: a da coragem, do destemor, da valentia de procurar sempre a “terra à vista” do Reino prometido (mesmo que não se tenha mapa e como guia apenas alguns trémulos luzeiros no firmamento e um astrolábio a requerer recorrente afinação), uma luta que será sempre contra o medo, contra o susto, contra o desespero, evitando, a todo o custo, o fundo do mar, esse lugar do eterno esquecimento (ou seja, do pior “inferno”: alguém sabe o nome de algum grumete de Pedro Álvares Cabral que “ficou pelo caminho” até ao Brasil?). 

Assim, diante das múltiplas (e quase permanentes) “tempestades” que a História (passada, atual ou futura) nos faz/fará atravessar, não consigo deixar de me rever na pergunta (desejando igual identificação na resposta) de D. Hélder Câmara: «Pensas, então, que as fraquezas da Igreja levarão o Cristo a abandoná-la? Quanto mais nossa fragilidade humana atingir a Igreja – que é nossa e d’Ele – mais Ele a sustentará com o Seu apoio, com o Seu carinho».

E é esta (e só esta) a “fé que nos salva”.

Luís Leal