A Páscoa

Desde a passada 4ª feira de Cinzas que o mundo cristão tem os olhos postos na Páscoa, a maior festa do ciclo anual. Que é a Páscoa, festa que se vai diluindo num mundo secular ao jeito do que já aconteceu com o Natal? O que é a Páscoa para além de um fim de semana alargado? Que se celebra na Páscoa?

A Páscoa é uma festa de grande tradição e riquíssima de conteúdo que, por si só, quase desenha a história religiosa da humanidade. O homem antigo vivia em profunda ligação com a Natureza, que julgava conduzida por leis mais ou menos misteriosas de fecundidade ou de esterilidade, de renovação ou de morte. A Natureza renovava-se periodicamente, era episodicamente furiosa e vingativa e alimentava o Homem, mas tinha também capacidade de o deixar na penúria…! Mesmo assim, pressentia-se Deus por detrás dela e das leis que a regiam. Deus era o seu Criador e Senhor, por isso fugia ao controlo do homem. Por isso, ele oferecia à divindade os primeiros frutos que, com dificuldade, apanhava das plantas e do chão, os melhores animais que caçava ou reunia já em rebanho, e do que aprendera já a cultivar, quando agricultor.

Que podia o homem oferecer a Deus senão o fruto encontrado, o animal caçado, ou o mais lindo cabritinho acabado de nascer no seu rebanho, tudo no dealbar da Primavera? O ritual de imolar um animal jovem, de partilhar a sua carne tenra em refeição festiva e de usar o seu sangue para marcar a tenda familiar, no seguimento dos costumes dos pastores nómadas do deserto, passou a cumprir-se na primeira noite da lua-cheia da primavera. Nesse mesmo dia ou noite, o lavrador apresentava à divindade os primeiros grãos de cevada ou, aqui pelo nosso mundo, as primeiras bolotas com que se fazia o primeiro pão novo, sem fermento, que também a Deus se oferecia. Assim nasceu a festa da primavera, da Natureza rejuvenescida, depois do longo e rigoroso Inverno.

O Pentateuco regista minuciosamente os pormenores de todo este ritual: escolherá cada família um animal sem defeito, cordeiro ou cabrito, marcareis com o seu sangue as ombreiras e o dintel da porta da sua casa (Ex 12,3-7) e tomarás as primícias de todos os frutos que colheres da terra e que o Senhor, teu Deus, te houver dado. Pô-los-ás num cesto e apresentá-los-ás no lugar que o Senhor tiver escolhido para aí habitar o seu nome [isto é, no Templo]. Apresentas-te ao sacerdote, e ele receberá o cesto da tua mão e depositá-lo-á no altar de Iavé (Dt 26,1-4).

Este gesto religioso do homem primitivo diz pouco ou nada mesmo ao moderno que somos, que não percebemos patavina dos ritmos da Natureza; o Pingo Doce tem sempre tudo, no Primeiro Mundo, peixe, fruta fresca e legumes com fartura, aconteça o que acontecer. Para o primitivo, porém, tratava-se de uma atitude verdadeiramente religiosa, que expressava a sua fé, ato de louvor e oração de súplica.

Não se ficou por aqui, no entanto, a festa da primavera do judeu antigo, atado inelutavelmente ao ciclo repetitivo da natureza. Ao culto da fertilidade do rebanho e da própria terra juntou-lhe depois uma fé radicalmente histórica. O povo estivera no exílio, no Egito, e dele se libertara, voltando à sua terra, de que retomaram posse. Deus estivera com ele nessa gesta verdadeiramente histórica. No texto do Deuteronómio que acabámos de escutar isto já lá está: meu pai era um arameu errante que desceu ao Egito com poucos familiares e aí viveu como estrangeiro até se tornar uma nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios maltrataram-nos, oprimiram-nos e sujeitaram-nos a dura escravidão. Então, invocámos o Deus dos nossos pais e o Senhor ouviu a nossa voz, viu a nossa miséria, o nosso sofrimento e a opressão que nos dominava, e fez-nos sair do Egito com mão poderosa….

É esta memória histórica do povo e a intervenção de Deus em seu favor que se passou a atualizar ritualmente: assim como a primavera é a renovação da Natureza que, todos os ciclos anuais, ressurge nova depois de uma (aparente) morte, assim o povo que descende de um arameu errante (Abraão) ressurge anualmente na festa da Páscoa, que é a celebração da libertação histórica que Deus lhe inspirou e que o seu enviado – Moisés – encabeçou. Mesmo depois de entrardes na terra que vos prometo, guardareis este rito (isto é, comereis um animal do rebanho, cordeiro ou cabrito, pães sem fermento e ervas amargas, Ex 12,8). E quando os vossos filhos vos perguntarem ‘Que significa este rito?’, dir-lhes-eis: é a Páscoa do Senhor, que salvou as vossas casas e feriu o Egito (Ex 12, 26-27; Dt 16, 1-7).

O Deus de Israel era não apenas um Deus ligado aos ciclos naturais de fertilidade; era muito mais, era um Deus que estava com os sofrimentos do povo; por isso o libertou. E esse acontecimento, verdadeira passagem de um estado de escravidão a um outro de liberdade, passou a ser celebrado com os mesmos ritos de sempre, o mesmo cordeiro, o mesmo pão sem fermento e as mesmas ervas amargas. Esta celebração fazia-se de noite, que de noite o povo fugira do Egito: Esta é aquela noite!, Ó noite bendita! – cantaremos depois, na festa da Páscoa. Não terminou aqui, porém, a história da salvação. Na plenitude dos tempos, seria Jesus, enviado do Pai, a salvar o que estava perdido: o drama começou era já de noite (Jo 13,30). E quando morreu na cruz, inocentemente condenado, houve trevas em toda a parte (Lc 23,44), como se fora de noite. Esta é aquela noite!, Ó noite bendita!

Mas Deus ressuscitou-o (At 2,24; 3,15; 4,10: 5,30; 10,40; 13,30; 17,31; Rm 8,11; 10,9; 1 Cor 15,15; 2 Cor 1,9; 4,14; Hb 11,18, etc). É isso que na Páscoa celebramos: a morte e ressurreição de Jesus, e tudo o mais que está para trás, a Páscoa da Natureza e a gesta de Israel. E isto porque se Cristo não ressuscitou, é vazia a minha pregação e vazia a vossa fé (1 Cor 15-14). Exatamente por isso eu vos anunciei antes de mais nada o que eu próprio recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as mesmas Escrituras, e depois apareceu a Cefas e a seguir aos Doze (1 Cor 15, 3-4).

Como celebramos nós tudo isto? Com os mesmos ritos dos nossos antepassados: com cordeiro, não já do rebanho, mas cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, e com pão de trigo sem fermento, afinal a matéria de toda a celebração da Eucaristia que, como dizemos todas as semanas na Anáfora, é memória da morte e ressurreição de Jesus. E, para celebrarmos tudo isto, preparamo-nos. É a Quaresma. Disse aqui no domingo passado e agora repito.

Foi mau terem-nos metido na cabeça, no passado, uma Quaresma individualista: cada um prepara-se a si próprio pela multiplicação de práticas mais ou menos penitenciais: jejum, abstinência (de quê?), confissão, via-sacra, conferências, etc. Cada um prepara-se, mas a Comunidade não se preparava, esperava antes que eles o fizessem. Mas é importante que a Comunidade o faça, porque a festa é da Comunidade. Este entendimento perdeu-se entre nós nos últimos anos: eram todos os que preparavam a festa, a Liturgia, digamos assim. Ultimamente, voltamos ao antigo: eles — quem são eles? — preparam (a festa); nós viremos, alguns, logo à noite.

Arlindo de Magalhães, 14 de Fevereiro de 2016

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