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Efetivamente, faz hoje 50 anos que fui ordenado presbítero na Sé Catedral do Porto pelo Bispo Florentino de Andrade Silva, Administrador Apostólico da Diocese, que D. António Ferreira Gomes era ainda um exilado do salazarismo. 13 de Agosto de 1967.
O concílio Vaticano II havia terminado em Dezembro de 1965, eu acabei o meu curso de Teologia em Junho de 66 e, por decisão superior, ia ser músico. Fui-o por algum tempo mas pouco depois, o Bispo António não tinha ainda regressado do exílio (1969), fui dizer ao Administrador Apostólico que era padre não músico. Nessa altura havia já sido integrado na equipa formadora do Seminário Maior do Porto, onde trabalhei até 1974. Nesses primeiros anos comecei a descobrir na riqueza do Vaticano II uma palavra ou realidade que dele escorreu: Comunidade.
E foi no Seminário Maior do Porto, e também nas paróquias de Santo Ovídio e de Vilar de Andorinho (— Vós, Vilarenses, lembrais-vos do Ogiva?), onde deitei uma mãozinha, e comecei a perguntar-me a mim mesmo que novidade continha a palavra comunidade, e se a comunidade podia tornar-se realidade? Eis a questão.
E fiz experiências, houve discussões ou debates em sítios vários e quanto mais tudo se complicava mais eu tentava avançar, até que, um dia, já D. António regressara do exílio, na criação da paróquia de Nossa Senhora da Ajuda (Porto), em 1972, ele disse isto:
“uma Igreja que se sente missionária, que tem o mandato deste mundo de hoje como ele é, que se sente pequeno rebanho, assembleia convocada e convocante, com missão principalmente de converter e cristianizar os cristãos ou na alternativa, de passar aos bárbaros, essa Igreja ensaia novos caminhos de acesso às inteligências e corações deste tempo, a nova linguagem no diálogo com o homem de hoje e os novos métodos de inserção da graça na natureza deste mundo que se quer personalizado e de dimensões humanas na socialização das estruturas e mentalidades. (… Por tudo isto,) É tempo de pastoralmente mudar: e, agora, ou mudamos ou seremos os novos pagãos a caminho igualmente do fim”.
Oh, maravilha sem par! O que tu acabas de ouvir! O problema foi que, depois de tão grande esperança, andou-se mas para trás.
Neste contexto, no ano 1974, eu tinha exatamente 30 anos, vim parar aqui, à Serra do Pilar, com a tal palavra — Comunidade — não me lembro se na pasta se na cabeça. Essa é uma história outra, que encaixou perfeitamente nesta, mas da qual não há relato aqui.
À palavra Comunidade juntou-se a palavra “Evangelização”. O Papa Paulo VI publicaria em Dezembro de 1975, uma Exortação Apostólica espetacular — “Anunciar o Evangelho”. Foi aí que dei um dos dois saltos mais altos da minha vida (o outro seria no interior da Biblioteca Nacional de Paris, em 1993): “as pequenas comunidades … nascem da necessidade de viver mais intensamente a vida da Igreja; ou então do desejo e da busca de uma dimensão mais humana do que aquela que as comunidades eclesiais mais amplas dificilmente poderão revestir, sobretudo nas grandes metrópoles urbanas contemporâneas onde é mais favorecida a vida de massa e o anonimato ao mesmo tempo”. Está aqui o que eu já sabia mas nunca tinha lido nem ouvido! O tal salto!
Estava traçada e decidida a minha ação pastoral.
Mais tarde, em 1978, comprei em Fátima, um livrinho — De la vie Communautaire (A vida Comunitária), de um autor que certamente ainda não conhecia — Bonhöeffer (1906-1945) — onde li esta coisa espantosa: “Uma comunidade, [coisa] visível sobre a terra, é já uma espécie de antecipação misericordiosa do Reino que há-de vir. Mas esta graça não é acessível a todos os crentes”. Estarreci: “a existência de uma comunidade visível é uma graça não acessível a todos os crentes”!!! “Para o cristão, a presença sensível de outros irmãos constitui uma fonte incomparável de alegria e reconforto”!
A comunidade da Serra do Pilar, ainda bebé pois tinha nascido há 4 anos, era portanto uma graça não acessível a todos os crentes! Que quer isto dizer? Que encargos carregamos?
Construir é sempre mais alegre e exultante que manter vivo depois. Em 1992 eu estava cansado, morrera-me a mãe mas não só, mas o bispo Júlio… e eu fui parar a Salamanca e depois a Madrid. Regressei 5 anos depois, a Católica apanhou-me mas voltei à Comunidade, que estava muito diferente …
Paulo, o perseguidor, o fundador de comunidades, o viajante, o anunciador e evangelizador, sempre a correr, a cuidar, a pregar, a acudir, de certeza que também a chorar, a arrepender-se das asneiras que fazia, agora escondido e depois preso, aqui – descido numa cesta muralha abaixo (At 9,25), ali – escondido em Bereia (ct 17,10), aqui acusado de “alvoroçar o mundo inteiro” (At 16,6) depois de, em Atenas, o terem mandado passear, e ele foi (ct 17,32)… Mesmo assim, quando Festo, Procurador da Palestina, lhe disse: “Estás doido, Paulo! A tua grande sabedoria fez-te perder o juízo!”, Paulo respondeu-lhe: “Eu não estou doido, excelentíssimo Festo. Pelo contrário, estou a falar a linguagem da verdade e do bom senso!” (At 26,24-25)…
Ordenado portanto há 50 anos, aqui vivi muito mais de metade da minha vida. E por isso dou graças: “a Gaio que me recebe como hóspede, a Erasto, o tesoureiro da cidade” (Rm 16,23), a mesma coisa. “Fico feliz com a chegada de Estéfanes, Fortunato e Arcaico que me substituíram na minha ausência” (1 Cor 16,17). Entretanto, via “casa de Cloé”, chegam-me notícias de que há discórdias entre vós (1Cor 1,11). Mas eu próprio, depois de ter andado com Barnabé nos “caminhos do Senhor” (Act 13,10), em Antioquia, em Tarso, em Chipre, em Icónio, em Listra e de ter estado no Concílio de Jerusalém, apesar disso, discuti com ele tão violentamente que nos separámos um do outro (At 15,39) e nunca mais nos encontrámos.
Neste momento, aos meus irmãos de longe envio-vos Tíquico, o irmão querido e fiel no Senhor que vos contará o que se passa por cá” (Ef 6,21), saúdo também os da “casa de César” (Fl 4,22), saúdo a família de Onésimo (Col 4,9), e mando abraços a Erasto (Rm 16,23) – que ficou em Corinto, a Trófimo – que deixei doente em Mileto (2Tim 4,20). Daqui cumprimento Êubulo, Pudente, Lino, Cláudia e todos os mais irmãos (2Tm 4, 19-20). Vós, os de Roma, sois tantos que eu não posso nomear-vos todos aqui; “Saudai-vos vós uns aos outros como todas as igrejas de Cristo vos saúdam a vós” (Rm 16,16). E, já me esquecia, “Saudai também Prisca e Áquila, meus colaboradores em Cristo Jesus, pessoas que, pela minha vida, expuseram a sua cabeça” (Rm 16,3), e Febe, a diaconisa da Igreja de Cêncreas, a primeira “protectora de muitos e de mim pessoalmente” (Rm 16,2).
Eu «Tenho servido o Senhor com toda a humildade e com lágrimas, no meio de provações. Jamais recuei perante qualquer coisa que vos pudesse ser útil. Preguei e instruí-vos, tanto publicamente como nas vossas casas…
Agora, tomai cuidado convosco e com todo o rebanho, de que o Espírito Santo vos constituiu administradores, para apascentardes a Igreja de Deus, adquirida por Ele com o seu próprio sangue.
Sei que, depois de eu partir, se hão de introduzir entre vós lobos temíveis que não pouparão o rebanho. Estai, pois, vigilantes. Confio-vos a Deus e à palavra da sua graça, que tem o poder de construir o edifício e de vos conceder parte na herança com todos os santificados.
Nunca cobicei nem prata nem ouro, nem o vestuário de alguém. E bem sabeis que foram estas mãos que proveram às minhas necessidades, recordando-vos as palavras que o próprio Senhor Jesus disse: “A felicidade está mais em dar do que em receber”» (At 20,17-35).
Permiti-me também que, com toda a seriedade, vos diga estas palavras do meu amigo Leonel: “O que eu sou devo-o a vós! O que ainda não sou, devo-o a mim” (1983.10.22).
Tantos irmãos e amigos! E anjos e arcanjos não há? Há pois, Anjos e Arcanjos, Domínios e Principados, Querubins e Serafins! Um destes últimos, meio ano depois de tudo começar, em Julho de 1975, escreveu-me assim num papel que me enviou depois por correio: “… o momento do café, hoje, e a posterior leitura da folha dominical que me deste levaram-me a sentir qualquer coisa que não pode exprimir-se: ser conduzido pelo Espírito! (…) Não me compete declarar se o Espírito está ou não está no sentido da Lumen gentium, mas dou testemunho de que ele anda por perto”.
“Regozijemo-nos e alegremo-nos!” (Ap 19.7).
Arlindo de Magalhães, 13 de Agosto de 2017