A Vigília da Epifania, que este ano ocorre a 4 de Janeiro, é tradicionalmente entre nós um tempo de convívio. Assim a viveremos.
São muitos os adeptos do farrapo velho. Haverá ceia se o trouxerem. E se houver um ou outro que nem tê-lo nem fazê-lo, podem trazer bolo-rei se ainda houver, uma garrafita, que moderação trazem “as santas mulheres!”. Claro que mesmo os de mãos a abanar não serão postos fora. Isto pelas 20 horas.
Comido ele, os que cantam as Janeiras ou cultivam outras artes podem entrar em cena.
~ o ~
(textos reunidos numa encenação simples da Natividade do Senhor)
1
Oh! Deus te salve, Maria,
cheia de graça, graciosa,
dos pecadores abrigo!
Goza-te com alegria,
humana e divina rosa,
porque o Senhor é contigo. (…)
Ó Virgem, se ouvir me queres,
mais te quero inda dizer:
benta és tu em mereceres,
mais que todas as mulheres,
nacidas e por nacer. (…)
Alta Senhora, saberás,
que tua santa humildade,
te deu tanta dignidade,
que um filho conceberás,
da divina Eternidade.
Seu nome, será chamado Jesu,
e Filho de Deus.
E o teu ventre sagrado,
ficará horto çarrado,
e tu, Princesa dos Céus. (…)
A virtude do Altíssimo,
Senhora, te cobrirá,
e teu ventre sacratíssimo,
per graça conceberá. (…)
Por que, tanto isto não peses,
nem duvides de querer,
tua prima Elisabete, é prenhe,
e de seis meses.
E tu, Senhora, hás-de crer,
que tudo a Deus é possível,
e, o que é mais impossível,
lhe é o menos de fazer. (…)
Ó d`abinício escolhida!
Deus manda-vos convidar,
pera madre vos convida.
A Virgem
Ecce ancilla Domini!
Faça-se sua vontade,
no que sua Divindade,
mandar que seja de mi,
e de minha liberdade.
Gil Vicente in Auto de Mofina Mendes
2
Ó d’abinício senhora,
preservada e conservada,
ante que os anjos criada,
por sua superiora,
no seio de Deus guardada. (…)
Senhora, nossa esperança,
triunfo de nossa vida!
Nave de certa guarida,
fiel de fina balança!
Nossa carreira sabida,
ó sem mágoa concebida! (…)
Gil Vicente in Oração dos grandes de Portugal, depois de enterrado Dom Manuel
Perdão de culpas secretas,
a teu filho, nos implora,
e também, das descobertas,
pois és nossa intercessora. (…)
D. João Manuel séc. XV
Também nos pide perdão,
a teu filho, dos pecados,
Senhora, que tantos são,
que sem sua intercessão,
não podem ser perdoados.
Garcia de Resende in Cancioneiro Geral
3
Haveis de crer firmemente,
tudo quanto vos disser,
os que salvos quereis ser,
naquesta vida presente.
Crede o santo nacimento,
ser Deus da Virgem nacido,
verbo de Deus concebido,
pera novo testamento.
E que a Virgem gloriosa,
ficou tal como naceu,
E sem dor apareceu,
a nossa flor preciosa.
Pastor, faze tu assi:
começa de imaginar,
que vês a Virgem estar,
como se estivesse aí.
E esta Virgem mui ornada,
de pobreza guarnecida,
de raios esclarecida,
de joelhos humilhada.
E que vês diante dela,
um menino então nacido,
filho de Deus concebido,
naquela santa donzela.
Vê o menino chorar,
e a Senhora afligida,
sem ter cousa nesta vida,
nem panos para o pensar.
Na manjedoura metido,
em pobre palha chorando,
e os anjos embalando,
o menino entanguecido.
Gil Vicente in Auto da Fé
4
Ó gloriosa Senhora do mundo,
excelsa princesa, do céu e da terra,
fermosa batalha, de paz e de guerra,
da santa Trindade, secreto profundo!
Santa esperança, ó madre d`amor,
ama discreta, do filho de Deus,
filha e madre, do Senhor dos Céus,
alva do dia, com mais resplandor!
Fermosa barreira, ó alvo e fito,
a quem os profetas, direito atiravam!
A ti gloriosa, os Céus esperavam,
e as três pessoas, um Deus infinito!
Ó cedro nos campos, estrela no mar,
na serra, ave fénix, ua só amada,
ua só sem mácula, e só preservada,
ua só nacida, sem conto e sem par!!
Do que Eva triste, ao mundo tirou,
foi o teu fruto, restituidor.
Dizendo-te Avé, o embaixador,
o nome de Eva, te significou.
Ó porta dos paços, do mui alto Rei,
câmara cheia, do Spírito Santo!
Janela radiosa, de resplandor tanto,
e tanto zelosa, da devina lei!
Ó mar de ciência, a tua humildade,
que foi senão porta, do céu estrelado?
Ó fonte dos anjos, ó horto çarrado,
estrada do mundo, pera a divindade!!
Gil Vicente in Auto Pastoril Português
5
Alto Deus maravilhoso,
que o mundo visitaste,
em carne humana!
Neste vale,
temeroso e lacrimoso,
tua glória nos mostraste,
soberana!
E teu filho delicado,
mimoso,
da Divindade e natureza,
per todas partes chagado,
e mui sangrado,
pela nossa enfermidade e vil fraqueza(…)
E tua filha, madre e esposa,
horta nobre, frol dos céus,
Virgem Maria,
mansa pomba gloriosa!
Oh! quão chorosa,
quando o seu Deus padecia!. (…)
Se se pudesse dizer,
se se pudesse rezar,
tanta dor!
Se se pudesse fazer,
podermos ver qual estáveis,
ao cravar do Redentor!
Ó fermosa face bela!
Ó resplandor divinal!
Que sentistes,
quando a cruz se pôs à vela,
e posto nela,
o filho celestial que paristes?!
Gil Vicente in Auto da Alma
6
Virgem soberana,
doutros cantos dina,
falta a voz humana,
cante a voz divina.
Estrelas e flores,
areias do mar,
podem-se contar,
não vossos louvores. (…)
Sois templo divino,
do Spírito Santo.
quem é só e trino,
a vós só, quis tanto!
Sois cedro, em Líbano,
em Cádis, sois palma,
remédio do dano,
vida de noss’alma.
Sois jardim cheiroso,
plátano em ribeira,
em campo fermoso,
fermosa oliveira. (…)
Entre espinhos, rosa,
lírio, junto d’água!
Toda sois fermosa!
Em vós não há mágoa!
Fostes escolhida,
por nossa desculpa,
sem culpa nacida,
remédio da culpa.
Quanto Eva perdeu,
por vós se cobrou.
Quem de vós naceu,
tal vos fabricou.
O verbo nacido,
deu-vos por mãe sua,
o sol por vestido,
por chapins, a lua!
Deu-vos a Trindade,
coroa d’estrelas,
mas a claridade,
vós lha dais a elas!
Sois fonte suave,
alívio de tristes,
sois do céu a chave,
vós o céu abristes!
Quanto o sol rodeia,
quanto o mar abraça,
tudo encheis de graça,
sois de graça cheia!!
Diogo Bernardes in Endechas a Nossa Senhora
7
Senhora, a meu parecer,
pera esta escuridade,
candeia não há mester,
que o Senhor qu`há-de nacer,
é a mesma claridade. (…)
Pois, pera que é ir e vir,
buscar lume pera vós,
pois lume haveis de parir?!
Nem deveis d`estar aflita,
pera lhe guisar manjar,
porque é fartura infinita,
é chamado panis vita,
não tendes que desejar.
E se, pera seu nacer,
tam pobre casa escolheu,
não vos deveis de doer,
porque aonde ele estiver,
está a côrte do Céu.
Se cueiros vos dão guerra,
que os não tendes porventura,
não faltará cobertura,
a quem os céus e a terra,
vestiu de tal fermosura!
Gil Vicente in Auto de Mofina Mendes
8
A Virgem
Ó meu Jesus adorado!
Fecha os teus olhos divinos,
num soninho descansado;
que a não sermos tu e eu,
toda a gente do povoado,
desde os velhos aos meninos,
há muito que adormeceu.
Narradora
E o menino Jesus, não se dormia.
A Virgem
Dorme, dorme, dorme agora!
Narradora
Cantava a Virgem Maria.
A Virgem
Que mal assomou a aurora,
sentei-me junto ao tear,
e por todo o dia fora,
até que já se não via,
não deixei de trabalhar!
Narradora
E o Menino Jesus, não se dormia.
Tornava Nossa Senhora,
numa voz mais consumida:
A Virgem
Dorme, dorme, dorme agora,
e que eu descanse também,
porque mesmo adormecida,
vela sempre, a toda a hora,
no meu peito, o amor de mãe.
Narradora
E o Menino Jesus, não se dormia.
Numa voz mais fatigada,
tornava a Virgem Maria:
A Virgem
Dorme, pombinha nevada,
dorme, dorme, dorme bem!
Vê que está, quase apagada,
a frouxa luz da bugia,
do pouco azeite que tem.
Narradora
E o Menino Jesus, não se dormia.
Rogava Nossa Senhora:
A Virgem
Modera a tua alegria!
Não deites a roupa fora,
do teu leito pequenino!
Não rias mais. Dorme agora,
e brincarás todo o dia.
Dorme, dorme meu menino!
Narradora
E o Menino Jesus, não se dormia.
Mais triste, mais abatida,
pedia a Virgem Maria:
A Virgem
Tem pena da minha vida,
que se a quero, é para ti.
Vida aflita e dolorida!
Só por ti a viveria,
tão longe de onde nasci!…
Narradora
E o Menino Jesus, não se dormia.
E a voz da Virgem volveu:
A Virgem
Repara no meu olhar,
vê como ele entristeceu!
Dorme, dorme, dorme bem,
Ó alvo lírio do céu!
Olha que estou a chorar!
Tem pena da tua mãe!!
Narradora
Nosso Senhor, então, adormeceu …
Augusto Gil in Alba Plena