O silêncio é o lugar

Jasper Johns, 'Flag' (1954–55)

Jasper Johns, ‘Flag’ (1954–55)

A porta mora à espera
De perfil se ensombra
E descansa
O degrau é paciência
O umbral anúncio
O silêncio é o lugar
Onde baterão as mãos

Assim inicia Daniel Faria a Explicação das casas, articulação poética que nos coloca no exacto centro da dinâmica da história da salvação. No conjunto dessas composições, dispõe-se poeticamente a experiência do mundo como realidade suspensa, penúltima, tensa e de árdua captação:

[…]

A luz entra sempre de noite.

Não tinha nada donde vim. Aqui não encontrei
O que tive e a cadeira não serve o meu repouso.
Ainda não há lugar no mundo onde possa sossegar de tu não seres
O vazio que persiste à minha beira.

[…]

Entre a consciência de que «a casa vem das mãos para ficar desabrigada», ou que «mesmo no interior do quarto/ És o lado de fora da casa», e a declaração de uma esperança que o poeta recusa submeter à penultimidade das coisas (Sei bem que não mereço um dia entrar no céu/ Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra), desdobra-se o sentido profundo do mistério do advento.

O advento, enquanto tempo litúrgico referido a uma história de salvação que se realiza em Jesus de Nazaré, não obedece à ritualidade cíclica do eterno retorno do mesmo, como se, em absoluto, não fosse mais do que um exercício dramático de representação de um tempo que se repete de forma monótona. É certo que o cristianismo está inscrito, também na sua disposição cultural, na dinâmica da história religiosa da humanidade, cuja trama ritual se tece, quase invariavelmente, de ciclicidade.

Há uma certa correspondência entre aquilo que cristãmente celebramos e o que, natural e culturalmente, percebemos e representamos da realidade que nos envolve. Há, por isso, uma certa correspondência entre a celebração dos mistérios cristãos e a das dinâmicas da natureza (solstícios, equinócios, sementeiras, colheitas, etc). Mas a percepção do tempo, que o cristão tem, altera por completo a ritualidade cíclica das coisas a que história religiosa da humanidade sempre se habituou, outorgando um sentido radicalmente diferente à celebração dos mistérios cristãos.

Sei bem que nos encontramos já um pouco cansados das frases batidas. Creio, no entanto, que é importante algumas delas revisitarmos, sempre que o sentido das coisas que dizemos e fazemos se encontre em perigo de confusão. Já ouvimos demasiadas vezes, provavelmente, o discurso A Diogneto (séc. II d. C.) e, muito concretamente, esta afirmação: «[Os cristãos] habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira». Para os cristãos dos primeiros tempos, ou para os discípulos da primeira hora, a vida era fundamentalmente um advento, um tempo em tensão, uma continuada espera. Nada, de resto, em descontinuidade com a dinâmica da história da salvação que, desde a consciência da fé de Abraão até à pregação do Baptista, passando pelas vozes proféticas de todos os exílios e êxodos, nos situa a todos numa continuada espera, permanente tensão, advento vital. Tal como dizia Eduardo Lourenço, a propósito desse ocidental combate cultural entre filosofia e poesia:

«A viagem é sem termo. Como Moisés, morremos à vista do que sempre buscamos. […] Só a palavra poética é libertação do mundo. Em luta com a mastigação discursiva do mundo, ela descobre por rara e imerecida graça a passagem para esse Instante onde repousaríamos sempre, mesmo que a nossa marcha fosse mais vertiginosa que a luz. De repente estamos num continente novo e descobrimos que essa terra nos esperava há muito».

Quem senão os poetas para entrever, na opacidade das coisas, a transparência de todas elas? Não serão os profetas, de Isaías a João Baptista, poetas da transparência de todas as coisas? Quem é capaz, senão na loucura poética e profética, como o autor do Apocalipse, de afirmar ter visto «um novo céu e uma nova terra» (Ap 21, 1)?

Na sua lucidez, a um tempo louca e profética, o nosso Teixeira de Pascoaes dizia com a convicção de um místico que «a poesia não está com os sacerdotes do templo; está com os Profetas do Deserto».

Que proximidade é essa de que fala João Baptista no deserto da Judeia?

O Baptista alerta para a necessidade de preparar a vinda, porque está próximo o Reino (cf. Mt 3, 1). Quando foi que deixámos de perceber que essa iminência do Reino nos há-de acompanhar sempre? Quando foi que nos deixámos seduzir pela segurança dos herdeiros, como os descendentes de Abraão (cf. Mt 3, 9)? Em que momento deixámos que essa consciência adventícia perdesse o horizonte da espera e a percepção da penultimidade das coisas face à ultimidade do Reino? O que foi que nos seduziu tanto na ideia da sociedade perfeita para que nela deixássemos cristalizar a realização do Reino, numa identificação algo arrogante com a Igreja? Quando foi que nos esquecemos que Cristo é a Porta e que a porta mora à espera? Quando foi que nos esquecemos que Cristo é o Caminho e que o que define o caminhante são as trinta milhas diárias, como eloquentemente dizia Clive Staple Lewis, no seu Regresso do Peregrino (1933)?

Para os cristãos dos primeiros tempos, ou para os discípulos da primeira hora, a chegada do Reino continuava próxima. Se daqui a um ano nos encontrássemos, escutaríamos a Segunda Carta de Pedro dizer o seguinte: «um dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos, como um só dia. Não é que o Senhor tarde em cumprir a sua promessa, como alguns pensam, mas simplesmente usa de paciência para convosco, pois não quer que ninguém pereça, mas que todos se convertam» (2 Pe 3, 8-9).

Para os cristãos do nosso tempo, ou para os discípulos da vigésima quinta, a chegada do Reino continua próxima. Estou convencido de que um certo desânimo que a consciência do retardamento escatológico causou nos cristãos dos primeiros séculos, decorrente da incompreensão de que a proximidade é a da chegada, aliada à paz constantiniana percebida como libertação, conduziu a essa tentação eclesial de tomar por sociedade o que haveria de ser fundamentalmente percebido como comunidade.

A Igreja não é o Reino. A Igreja é o ensaio do Reino, o continuado ensaio do Reino. A Igreja é o advento do Reino. E será tanto mais Reino quanto menos Igreja quiser ser. Entenda-se: será tanto mais Reino quanto melhor for capaz de, como Abraão, se abandonar à Promessa do que virá. Viver à mercê da Promessa é viver à mercê da Esperança. Viver à mercê da Promessa e da Esperança, num continuado ensaio do Reino e em atitude adventícia, é a única forma de realização comunitária.

Dizia o poeta que a casa vem das mãos para ficar desabrigada. A comunidade, enquanto ensaio, é desabrigada e desarrumada, como qualquer casa habitada. Só os museus, no abrigo da sua arrumação, nos dão a ilusão da ultimidade das coisas, na sua pose hierática disposta numa cristalização climatizada do passado. Alguns museus são verdadeiramente interessantes e cumprem a função da memória histórica, fundamental para a leitura do tempo presente e para as possibilidades que o futuro nos abre a cada passo. Mas não são mais do que isso: casas desabitadas. A Igreja é comunidade, e não sociedade. A Igreja é advento do Reino, e não Reino. E será tanto mais Reino quanto menos Museu quiser ser. A Igreja, enquanto comunidade ensaiada do Reino, há-de ser como uma casa habitada, com uma porta que se abre, uma mesa que se põe e com a desarrumação que a visita de um amigo implica, sempre que se abre a porta e põe a mesa. E a Justiça, de que falam o Isaías da primeira leitura e o Baptista do Evangelho de Mateus, é a da porta aberta e da mesa posta, de quem verdadeiramente espera a entrada de quem nos possa desarrumar:

«O amor que se chama caridade que traduz o Ágape, é ele, o Amor de Cristo, que põe a Mesa que faz a Casa, e abre a Porta. Que os latinos traduziram pela bela palavra cáritas. A Caridade, que a Fé morta, falsa fé, má fé, enganou tantas vezes!… enchendo os pobres de esmolas, sem lhes restituir os bens que lhes pertencem. A Caridade é o Amor-que-encarece, amor que faz Justiça! do verbo encarecer, a pérola do Reino, pelo poder e força da Fé que nos justifica tudo o que somos, fazemos e dizemos: a Justiça do Reino dos Céus. Não é o amor dos olhos em branco dos misticismos, mas o Amor que abre os olhos e ama com paixão, a Paixão de Cristo!, os irmãos de Cristo, todos os homens com quem Ele se identificou começando pelos Irmãos mais pequeninos que têm e contêm a presença real e mais visível de Cristo. Amor que é comunhão, comunhão-de-Pessoas que fazem a comunhão-de-Bens». [Leonel Oliveira]

Preocupa-me, por isso, a compreensão museológica da Igreja, que também hoje vive obcecada com a arrumação da casa, fechando a porta, arrumando os pratos e oferecendo a quem nela vive o indispensável para a manutenção. Viver eclesialmente em Advento é viver com a porta aberta e a mesa posta. Quem nos ensinou a escapar da Justiça iminente do Reino? (cf. Mt 3, 7) Viver em Advento é viver à espera, com a porta aberta e a mesa posta…

José Angélico, 11 de Dezembro de 2016

Cristo-Rei

Georg Baselitz, ‘Kreuz mit Herbstastern’, 1963

Georg Baselitz, ‘Kreuz mit Herbstastern’, 1963

Quando, em 1925, o Papa Pio XI instituiu esta festa de Cristo Rei, que, com Pio XII, seria colocada no último domingo do ano litúrgico, ele quis reagir deste modo, por um lado, contra uma mentalidade que, ao tempo, pretendia confinar o religioso e o sagrado à esfera do rigorosamente individual e, por outro, contra os excessos do clericalismo, que defendia o predomínio do religioso sobre a justa autonomia das realidades terrestres.

Era, no fundo, a velha questão das relações Igreja/Mundo.

E a disputa estava bem acesa: a Igreja (Pio IX e Pio X sobretudo) contra o Mundo, e o Mundo contra a Igreja (socialismos, marxismos, classe operária, etc.); Leão XIII foi o primeiro que apelou pelo respeito para com o mundo e suas realidades, nomeadamente para com a “miséria imerecida” dos operários (a Revolução Industrial dava ainda passos que eram os primeiros). Muitos setores da Igreja puseram-se logo a rezar pela conversão do Papa! Um pouco o que acontece agora com o Papa Francisco.

Neste contexto, a criação da festa de Cristo Rei apareceu a uns como mais uma arma para defender a ordem antiga e recusar o mundo moderno (todos nos recordaremos bem dos tempos das “almas bravas de soldados” transportando bandeiras e cantando “clarins, vibrem clarins!”, um pouco por toda a parte mas sobretudo no México, com os tristemente célebres “guerrilheiros de Cristo Rei”!). Mas a verdade é que muitos cristãos, sinceramente desejosos duma reconciliação entre a Igreja e o Mundo, nunca tiveram grande devoção por esta festa.

De facto, ela é a celebração de uma ideia – celebração ideológica – de um título simbólico ou honorífico, que surgiu no referido contexto histórico e ideológico. Porque a verdadeira festa de Cristo Rei é a da Epifania. Nela, o Messias é apresentado como Rei e procurado pelos próprios reis pagãos. Aí se realizou a palavra do Profeta: “Levanta-te, Jerusalém, eis a tua Luz! A Glória do Senhor se levanta sobre ti” (Is 60,1).

No entanto, Jesus não era um político! A sua realeza era diferente. Ele era rei no sentido de servidor, porque o melhor, o verdadeiro rei é aquele que serve o seu povo. E o seu serviço resume-se nisto: que, nele e por ele, todo o homem tenha acesso definitivo a Deus, de quem se tinha ou estava separado. Jesus é, portanto, o grande conciliador universal da Criação (Humanidade incluída) com Deus. E é desta missão (ou realeza) que a Igreja participa.

Só que, na concretização histórica desta atitude de serviço, a Igreja equivocou-se muitas vezes, caindo em contradições e pecados. E todas as realidades da vida humana, culturais, políticas, sociais e económicas, foram mundos em que a Hierarquia da Igreja quis ter uma última palavra, pois, sentindo-se a continuadora da missão de Cristo, pretendia que a sua ação se identificava com a do próprio Cristo. Era o regime de cristandade, e o Papa o senhor supremo duma Europa cristã.

Os inconvenientes do sistema ver-se-iam com o correr dos séculos. No interior da própria cristandade, cada vez se suportava menos a tutela da Igreja, sobretudo quando se começou a dizer a palavra liberdade. Até no exterior os povos resistiam, sempre que podiam, à pressão da civilização ocidental em que não se reviam e na qual se não exprimiam.

A história recente é bem mais conhecida: um mundo moderno que tenta furar o velho esquema com três palavras sagradas: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, e um Antigo Regime que, apoiado na Igreja, tentava não cair. É a Revolução Francesa e a afirmação da Modernidade: uma Igreja assediada e defensiva, recusando toda a novidade, e só mais tarde capaz de entabular diálogo (Leão XIII, Pio XI e Pio XII).

Seja como for, depois da 2ª Guerra Mundial, João XXIII evitou uma guerra nuclear entre a América e a União Soviética, em Cuba, Paulo VI foi à ONU, com todo o mundo espantado, João Paulo II correu o mundo…, Francisco aproximou os EUA de Cuba e etc., e a Igreja tenta aproximar-se dos pobres, o que já acontece desde os finais do séc. XIX. Alguns cristãos — Bruto da Costa foi um deles — perceberam mesmo que “os principais factores explicativos da pobreza e da exclusão se devem procurar na sociedade” (Bruto da Costa, Exclusões sociais, p. 39).

Caberiam aqui muitas mais páginas de História, mas não é este o lugar de a reler no que diz respeito ao séc. XX e aos alvores do XXI. Calamos muita coisa até encontrar o Bataclan de há um ano, e daí para cá a gente já nem se lembra; agora é o que se passa na América, agora é o tempo de levantar muros, de Roma até Meca, atravessado o Mediterrâneo, e do Evangelho ao Corão…

De facto, a Igreja é chamada a ser a ponte entre a mundanidade do Mundo (desculpe-se a redundância!) e a realidade última do Reino; a Igreja é chamada a ser, para este mundo, nada mais que um sacramento, isto é, um sinal concreto duma realidade nova mas futura, no seio de um mundo concreto que é o nosso, o de cada tempo, não hostilizando-o mas compreendendo-o e amando-o, isto se quer ser capaz de lhe anunciar esse mesmo futuro. E nós somos Um Povo a Caminho.

Dantes, a realeza era um Poder; a de Jesus entende-se como um serviço. Dantes, Cristo era Rei duma cristandade exterior; hoje, entende-se como Rei dos corações, mesmo dos que o não conhecem. Mas não é por isso que é menos Rei. Quantos não cristãos, quantos mesmo sem nunca terem ouvido o seu nome, amam e lutam verdadeiramente pelo seu Reino, sem o saberem!

“Eu sou Rei. Mas o meu Reino não é daqui. Todo aquele que é da verdade e dá testemunho dela escuta a minha voz” (Jo 18,36-37). É destes que Cristo é Rei.

A vida cristã em tensão

Kadinsky, OHNE TITEL | 1923

Kadinsky, OHNE TITEL | 1923

Os últimos domingos do Tempo Comum carregam-se, como sabemos, de uma perspetiva escatológica que o Advento acentuará ainda mais. O Tempo que há de vir é o seu assunto.

Nós sabemos que o Tempo que há de vir é, no entanto, um Tempo gerado neste tempo que vivemos e nele assenta: “Jesus veio salvar a Vida, não a Morte. A Morte é um inimigo a abater, não um amigo a salvar. A quem a Morte apanha morto, morto ficará para sempre. … Este é o tempo de edificar a Vida. Depois, ninguém edifica nada” (Leonel, 1990). Ou, como dizia Bonhöeffer, “só depois de se ter amado este Mundo se pode acreditar no Reino de Deus, que aquele prepara e anuncia”. Porque o Mundo caminha para Deus como uma criança para o colo da mãe.

O Futuro prepara-se Hoje. O Dia do Senhor que há de vir é feito de um trabalho sério e esforçado, porque é Hoje que Ele tem fome e sede, e está nu e preso, e só os que O assistirem serão recebidos no Reino. Como insistentemente a Igreja recorda, nomeadamente depois do Vaticano II, a atividade humana, individual e coletiva, aquele imenso esforço com que os homens, no decurso dos séculos, tentaram melhorar as condições de vida, corresponde à vontade de Deus (GS 34).

Este ano, lidámos o suficiente com Lucas para sabermos já que ele não se confinava ao seu tempo: ele escrevia no seu tempo e para o seu tempo mas, afinal, ultrapassava a sua idade. Nem vamos agora pensar que só um evangelista o sabe e conseguiu fazer. Se assim fosse, não leríamos nenhum escritor falecido, nem Camões nem Gil Vicente, nenhum escritor doutros mundos, Cervantes ou Bob Dylan, o Nobel da Literatura deste ano. Todos eles, como todos os artistas, aliás, pela universalidade da sua linguagem e reflexão, ultrapassam o seu tempo e são entendidos em todo o tempo e em toda a terra. Os grandes artistas são universais.

Uma peça importante do Evangelho de Lucas é o chamado discurso escatológico de Jesus (21, 5-36) — aqui lido há momentos —, discurso que Jesus não fez mas que Lucas escreveu recolhendo e interpretando dicas de Jesus. O evangelista trabalhou esses materiais que a memória cristã primitiva conservara e descreveu-os com pormenores da memória coletiva de dois acontecimentos muito importantes, a destruição da cidade de Jerusalém levada a cabo por Nabucodonosor no ano 586 aC, vivida, portanto, muito antes de Jesus, e a do ano 70 dC, quando os romanos arrasaram o Templo.

Ambas as destruições – verdadeira terra queimada – foram tremendas para o Judaísmo: Jerusalém, a cidade santa, a morada de Deus no meio dos homens, arrasada, e o templo de que não ficou pedra sobre pedra!… E Lucas, querendo falar do futuro, animar a comunidade a que se dirigia, como que ressuscitou essa memória.

O que aconteceu nesses passados dias foi arrasador: os Judeus foram então perseguidos e dispersos pelo mundo inteiro. Mas o que interessou Lucas não foi o passado, foi o futuro, tivesse-se embora ele servido das imagens de um passado dramático para o dizer. Neste esforço, tentando perceber como seria o futuro, Lucas objetivou-o em quadros tirados da sua realidade e do seu mundo simbólico – “não ficará pedra sobre pedra” -, prevendo ou fazendo coincidir o fim do mundo com esses quadros apocalípticos das maiores catástrofes então conhecidas: terramotos, incêndios, fogo, fome e destruição, guerra e mortandades, temores e tremores, a tudo juntando a destruição do Templo, um acontecimento impensável antes de ter acontecido. Mas era o futuro que lhe interessava, era animar a esperança dos seus irmãos na fé o que lhe estava na preocupação.

O que nos interessa na Igreja não é o passado. Dos pecados, pedimos sempre perdão. Dos feitos, nada mais podemos dizer do que somos simples instrumentos (Lc 17,10). É no futuro que pomos os nossos olhos, embora para o vermos tenhamos de nos servir de imagens do passado. O que nos interessa é o futuro. O passado pode ter glórias, mas tem também pecados, sempre. Interessa-nos o futuro. Por isso nos são importantes os Sinais desses Tempos que nos permitem descortinar o futuro. Somos gente de esperança. E por isso, também, o Advento que se aproxima nos fala de futuro. Mas recomenda vigilância e atenção ao tempo que corre. Aprendemos até com os nossos pecados. E a Igreja até com as perseguições que lhe dirigem (GS 44), dizia o Vaticano II.

Porque Aquele que há de vir, que é Aquele que já veio, é também Aquele que vem Hoje.

Arlindo de Magalhães, 13 de Novembro de 2016

As nossas preces e o nosso viver

Mark Rothko, 1959

Mark Rothko, 1959

Diante da questão que os Saduceus lhe puseram, Jesus foi muito claro: não se podem transferir para a Vida Eterna as condições e dependências desta Vida.

Éskatos é uma palavra grega que significa aquilo que vem no fim, isto é, a realidade última. Portanto, a Escatologia é aquela parte da fé e da reflexão teológica que se ocupa do que tradicionalmente se chamava os últimos tempos do homem e do mundo. É, portanto, uma questão de futuro; mas igualmente do presente da existência cristã, pois que é o Reino que há de vir que fecunda e define a Esperança da existência cristã. Esta é uma das questões fundamentais do Homem: “Que é o homem?; qual o sentido e a finalidade da vida?, qual o caminho para alcançar a felicidade verdadeira?; que é a morte, o juízo e a retribuição final depois da morte?; finalmente, que mistério último e inefável envolve a nossa existência, que nele tem a sua origem e destino?” – reconhecia o Vaticano II serem estas questões fundamentais a todas as religiões (Declaração sobre a relação da Igreja com as religiões não-cristãs, nº 1).

Como o enviado do Pai, Jesus, o Cristo, ensinou-nos que, desde o princípio da nossa existência carnal, estamos abertos a um Futuro que, a partir da ressurreição de Jesus, é já uma realidade, mas que só depois perceberemos na totalidade.

Por isso, nenhuma realidade, seja da fé, seja do nosso ser humano, escapa a esta contínua tensão entre o (da nossa existência) e o ainda não prometido aos que acreditarem no Filho de Deus.

Digo uma tensão, esta entre o já e o ainda não. Sempre que há tensão, pode haver para lá e para cá (quem puxa mais pela corda?), e pode partir-se a corda. O mesmo Vaticano II explicava que há os que “pensam que podem descuidar os seus deveres terrenos, sem atenderem a que a própria fé os obriga mais a cumpri-los, segundo a vocação própria de cada um”, e há os que pensam “poder entregar-se às ocupações terrenas como se elas fossem inteiramente alheias à vida religiosa”. E concluía o Concílio: “Este divórcio de muitos entre a fé que professam e o comportamento quotidiano deve ser contado entre os mais graves erros do nosso tempo” (Gaudium et Spes, 43).

Por isso, para nós, os cristãos, é fundamental esta questão do nosso fim último, pela qual passamos tão distraidamente quanto distraidamente recitamos aquelas palavras do Credo: [Creio em Jesus Cristo], Senhor que há de vir a julgar os vivos e os mortos, [creio] na ressurreição da carne e na vida eterna.

Sabemos todos que não há nenhum setor da teologia mais “sujeito a armadilhas” e às fantasias da imaginação, mais vulnerável ao gosto do fantástico e do maravilhoso, mais contaminado e desnaturado pelas mitologias e por uma ideia dualista do homem (corpo + alma), frontalmente oposta à conceção bíblica. A ideia do «além» – céu, inferno e purgatório – tem sido muitas vezes o triste ponto de encontro de projeções ilusórias da angústia humana, desesperadas ou confiantes. Dizer que “o inferno são os outros” ou que só o céu apagará todas as injustiças, nomeadamente as que espezinham e matam os pobres, é quase a mesma coisa.

Hoje em dia, muitas destas representações já não merecem crédito à maioria dos cristãos. Mas, retirada esta linguagem cultural, e histórica, portanto, fica alguma coisa? Ou seja: é melhor conservar as antigas formulações que, apesar de tudo, veiculavam conteúdos válidos, ou é mesmo necessário formulá-los numa linguagem nova e diferente?

Aprendemos mais ou menos todos na Catequese que os fins do homem eram a morte, o juízo, o inferno e o paraíso, e que a morte era a separação do corpo e da alma. Nessa conceção, a alma deixava o corpo e emigrava, quer para o céu quer para o inferno, talvez temporariamente para o purgatório, depois de um primeiro julgamento de Deus – juízo particular -, levado a cabo talvez por um ministro da justiça, S. Miguel, que pesava as almas e as despachava em consequência. Entretanto, o corpo material desaparecia, por corrompido. No fim do mundo, Deus juntaria os bocados – como?, donde? – e haveria a ressurreição geral dos corpos. Era a altura do juízo universal. Nessa altura, desapareceria então o purgatório, ficando apenas para sempre o céu e o inferno, a bem-aventurança e a condenação eternas.

Assim sendo, cada um devia ocupar-se — com cautela! — da sua salvação. Claro que haveria também o fim da história e, nessa altura, Cristo voltaria (numa segunda vinda), mas desta vez não a anunciar a Boa Nova, mas exatamente o contrário, “a julgar os vivos e os mortos”, coisa que se chamava a Parusia. Não haveria mais este mundo, mas um outro, eterno e radicalmente diferente deste.

Mas tudo isto apontava apenas os percursos individuais: era uma questão minha e tua, e dele… Importante era cada um viver cristãmente neste mundo e, deste modo, preparar-se para ter uma boa morte. Assim se evitava o inferno e merecia o céu. A vida cristã não era uma arte de bem viver, antes a preparação de um bem morrer. Além disso, enquanto vivos, socorríamos fraternalmente as almas do purgatório, com missas de preferência e indulgências, pois que assim se lhes abreviava o tempo de cativeiro ou castigo.

Claro que esta evocação dos novíssimos, tal qual era feita não há muito tempo, é algum tanto caricatural. Mas é a que vigora ainda, confessemos!, embora lhe reconheçamos deficiências graves.

Com ela desaparece, no entanto, a importância real deste “Povo a caminho” – de quê?! As recentes reflexões filosóficas e antropológicas, mesmo as cristãs, ultrapassaram por completo a visão dualista grega, segundo a qual cada homem era a soma de dois elementos diferentes, o corpo e a alma, assim a modos de um pingo que se faz com uma mistura de café e de leite, sem que nenhum destes elementos deixe de ser o que é.

É preciso, portanto, fazer uma leitura mais correta e mais fiel do mistérico ou misterioso futuro do Homem e do Mundo na perspetiva da Revelação. Não é fácil a tarefa. Os próprios teólogos, os maiores, ainda não afinam completamente acerca deste assunto. Mas é já possível corrigir erros de perspetiva e afirmar, de maneira mais correta, as grandes certezas e os grandes eixos de toda a reflexão cristã sobre o Futuro do Homem e do Mundo.

Com o domingo de hoje, a Liturgia começa a celebração da Escatologia cristã (que de algum modo já se preanunciava nos domingos imediatamente anteriores), que se prolongará até ao fim do ano litúrgico e por todo o tempo do Advento que se aproxima.

As nossas preces e o nosso viver nos ajudem a olhar serenamente “esse dia e a essa hora que ninguém conhece, nem os anjos do céu, nem o Filho; só o Pai” (Mc 13,32).

A Graça vai à frente

Mantra | Enrique Mirones, Monasterio de Sobrado (Galiza)

Mantra | Enrique Mirones, Monasterio de Sobrado (Galiza)

1. Como sabemos, 2/3 do Evangelho de Lucas gasta-os o evangelista a relatar a viagem/peregrinação de Jesus mai-los discípulos a Jerusalém, a cidade santa do Templo judaico, situada quase a meio da Judeia.

Antes de o fazer, porém, já ele tinha andado de Seca para Meca na Samaria nortenha e zonas adjacentes, sempre de um lado para o outro!

Tinha já andado da Galileia para o Jordão (Mc 1,9), e logo ao contrário, de lá para Nazaré (Lc 4,16), que ficava lá ao fundo da Galileia; dali passou a Cafarnaúm (Lc 4,31), na margem do Lago de Genesaré, subiu depois muito lá para cima, muito depois da Fenícia, a Tiro e Sídon (Lc 6,17). Voltou depois à Galileia, também ao Jordão, do outro lado do Lago (a meio da Samaria, o Jordão abre-se ali numa espécie de lago), passou para o seu lado oriental, onde, a Gerasa e à vizinha Betsaida, aldeias ambas pagãs, ele foi buscar Pedro e André, seu irmão! (Jo 1,44), e ainda Filipe! (Jo 1,45), e só então se pôs a caminho¬ de Jerusalém.

Sempre a andar: “O Filho do Homem não tinha onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20). Por isso Francisco de Assis se fez mendicante: dum lado para o outro, como do que me dão e anuncio o Evangelho.

Em tudo isto, Jesus ia e foi a lugares muitos e diversos (Mt 14,13), aldeias e cidades (Lc 19,1). Recolhia-se muitas vezes em lugares desertos (Mt 14,13; Luc 9,18, etc) ou mesmo despovoados (Lc 9,12), uns tinham nome — Gólgota (Mt 27,33), por exemplo, lugar onde morreu — outros não (quando ensinou o “Pai nosso” estava em “algures” [Lc 11,1])…

Nunca estava no mesmo sítio. Jesus era um andante, sempre de um lugar para outro, daquele em que tinha comido (Jo 6,23) ou em que tinha já estado (Jo 10,40), para outro aonde se dirigia (Jo 6,21). De passagem, visitava os amigos: o doente Lázaro (Jo 11,1), a doente sogra de Pedro (Mc 1,30), Marta e Maria (Lc 10,38) … Alguns lugares Jesus conhecia-os bem “porque se reunia ali muitas vezes com eles” (Jo 18,2), noutros conheciam-no bem a ele os que lá moravam (Mt 14,35). Mas passava em muitos outros lugares de que nem sequer o nome sabia, “esse lugar que está aí à vossa frente, meus…!” (Mt 21,2). Ele até conhecia lugares de nome muito esquisito, Litróstotos (Lagedo), por exemplo, grego pela certa, mas língua que ele não sabia (Jo 19,13). Sem problemas, entrava nas aldeias, mesmo pagãs, na Samaria (Lc 9,52)… Quando lá, na Samaria, uma vez, puseram os discípulos a andar e não os receberam, Jesus disse-lhes: “Vamos para outra terra” (Lc 9,56)…

Mais ainda poderia contar, mas… Mateus resume isto tudo muito bem: “Jesus percorria as cidades e as aldeias, ensinando nas Sinagogas e proclamando a Boa Notícia do Reino” (Mt 10,35).

Não há dúvida nenhuma: depois da ressurreição, os Discípulos cumpriram o que o Mestre lhes tinha dito: “Ide pelo mundo inteiro e proclamai a Boa Nova a toda a criatura” (Mc 16,15). E eles espalharam-se pelo mundo como um pingo de mercúrio no oceano. Mesmo Pedro e Paulo…

2. Felizmente que a Graça vai sempre à frente dos nossos passos, de tudo o que fazemos e dizemos. Felizmente!, tal e qual como no tempo dos Apóstolos, quando começaram a espalhar-se por todo o Mundo conhecido de então. O que então acontecia! Tanto que poucos pouco tempo tiveram de o escrever! Ainda bem que, no hoje em que toda a gente fala e diz e sabe e pensa e a televisão transmite, felizmente e caladamente mas com verdade, as coisas vão acontecendo, essas de que ninguém fala, das que não vêm nos jornais nem se ouvem na televisão. Essas que são fruto da Graça, que geram movimentos e vagas de fundo e que, quando se dá conta delas, se não podem já controlar. Foi assim que o método histórico-crítico acabou com o literalismo bíblico, que o movimento ecuménico acabou – definitivamente ? – com os irmãos de costas voltadas e sempre a insultar-se, que a Ação Católica e depois o Vaticano II acabaram de vez com essa de que “os leigos são aqueles que não são”(clérigos) e com aquilo que Paulo escreveu a dizer que “as mulheres estejam caladas nas igrejas e devem ser submissas” (1 Cor 14,34). Já me esquecia de que o Concílio disse também, clarinho!, que a Igreja não é uma instituição nem uma carneirada.

3. Zaqueu, por exemplo. Zaqueu: ninguém falava dele, e ele não ia a Fátima a pé nem à televisão. Andava era perdido; mas já a Graça o tinha trabalhado. Por isso, mal o Senhor lhe disse que queria ir a sua casa, correu a descer do sicômoro, que ele era baixote. Sicômo era uma figueira pequenota! Como Zaqueu! Mesmo assim, porque a Graça o tinha já transformado por dentro, a salvação foi a sua casa! Que também ele [já] era filho de Abraão!

O Papa Francisco foi eleito a 13 de março de 2013; a 24 de novembro desse mesmo ano publicou “A alegria do Evangelho”. Quando li as primeiras páginas, topei logo com: é necessário ”sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz”. Fiquei especado… e acrescentei eu: alcançar “mesmo os que podem estar escondidos no alto de um pequeno sicômoro!”.

Agora é Frei Bento que fala. “A grande tentação religiosa consiste em pensar que o encontro com o Ressuscitado acontece apenas e sobretudo nas missas, nos sacrários e nas exposições do Santíssimo Sacramento. Esses exercícios espirituais valem e muito na medida em que nos lembrem que Jesus Cristo é o clandestino da semana, derrubando muros, separações, inimizades, entre pessoas e grupos. A devoção que retém as pessoas nas igrejas, nas sacristias, está a opor-se a um Jesus em viagem para as periferias sociais e culturais. Foi isto que o papa Francisco veio lembrar: só vale uma Igreja de saída! O Papa não está a inventar nada. Lembrar apenas a pergunta de Deus: que fizeste do teu irmão? O julgamento religioso de toda a história humana, religiosa ou profana, em todos os seus momentos, depende da resposta a essa pergunta”.

Há salvação ou não há? Deus é que não gosta de fazer nada sozinho, e o papa Francisco também não.

Arlindo de Magalhães, 30 de Outubro de 2016

Húmus

Em relação à pobreza, como em relação à humildade, há um montão de equívocos. A gente tem de arranjar outras palavras, tem de conseguir dizer hoje doutra maneira o que palavras gastas já não conseguem exprimir.

Homo (homem) e humilitas (humildade) têm etimologicamente a mesma raiz: humus (terra e chão, em latim). O homem é feito de húmus; e todo aquele que respeita a sua dignidade (sacralidade) e a dos outros respeita a verdade: o homo é feito de húmus; esta humildade é uma verdade. Verdade é o homem ser feito de húmus, e não ter muito dinheiro no banco ou as armas do poder.

Como explica a Escritura, Deus formou o homo do humus (Gen 2,7), mas para o levantar dele, do pó e do esterco, para o sentar com os príncipes e dar-lhe um trono de glória (1 Sam 2,8). “Elevar o homem à participação da vida divina”, diria o Vaticano II (LG 2).

Há aqui duas coisas. A primeira é que a vocação do homem implica que ele se levante do pó e do esterco; e a segunda é que, por isso, nenhum homem pode calcar com as botas da arrogância, da soberba, da vaidade ou da injustiça o outro homem. Que o homem se levante, com toda a sua dignidade e capacidade, e que o homem não amarre nenhum outro homem a uma indignidade que lhe impeça a dignidade, qualquer que ele seja. “Salvar a pessoa do homem e restaurar a sociedade humana … a fim de instaurar a fraternidade universal que corresponde à vocação de todo o homem” (GS 3).

Sem isto não há Homens, sem isto não há dignidade humana, sem isto não há direitos humanos.

Para nós, os cristãos, à luz da Boa Nova de Jesus, por maioria de razão. As nossas relações com Deus estão indissoluvelmente ligadas à maneira como nos relacionamos com os outros: “tudo o que fizerdes a um destes mais pequeninos…” (Mt 25,40). Nenhum homem pode dizer que respeita Deus e que se respeita a si mesmo se despreza os outros, um que seja dos outros. Só um homem entende os homens, o que nenhum super-homem é capaz de o fazer.

Os ricos nunca entenderão os pobres se não forem capazes de se pôr na sua pele, não para se tornarem como eles, mas para os chamarem à sua riqueza. É aqui que se entende a pobreza evangélica, e a partilha, e a comunhão ou comunicação de bens. Repartir o Ter (isto é, os bens materiais), o Poder (isto é, assumi-lo exclusivamente em atitude de serviço) e o Saber (repartir bens doutra ordem, que não só materiais).

Cur Deus homo?, perguntava a Idade Média. Porque é que Deus se fez homem? Para se fazer pobre, ou para puxar os homens para si? “Subo para o meu e vosso Pai, Deus meu e Deus vosso” (Jo 10.17). É muito mais fácil descer que ajudar a subir. Mas, assim sendo, para haver alguns-muito-ricos tem de haver muitos-muito-pobres? Por isso é que, nos sécs. XII e XIII, depois da pergunta de Santo Anselmo (séc. XI), a questão da pobreza irromperia violentamente na Igreja até à síntese dos mendicantes.

A pobreza evangélica não se confunde com miserabilismo: vamos descer à miséria para sermos miseráveis? A pobreza evangélica é servir e (re)partir, partilhar e distribuir dignidade sobretudo, e também capacidade de que um homem saia da sua situação de miséria e degradação humana. Foi só para isso que Deus se fez homem. E quem disser o contrário não percebeu nada do mistério da Incarnação. Deus não se fez homem para morrer na cruz. Porque se fez homem é que morreu na cruz para dela nos libertar. A pobreza de Deus e do seu filho Jesus foi apenas uma exigência de comunhão com os homens – os pobres, que os ricos não precisam que comunguem com eles – para lhes dar consciência da sua dignidade e da sua vocação. Deus não perdeu nada de si para descer aos pobres; mas ganhou para si os pobres: “aos pobres é anunciada uma Boa Nova” (Mt 11,5).

Por isso ainda é que, no séc. XIX, a questão dos pobres, que eram ao tempo os operários, levou a que, logo no século seguinte, muitos trabalhadores, e nomeadamente os padres operários, falassem em incarnação.

“Jesus Cristo não receou arriscar na incarnação. Sendo Deus aceitou limitar-se a um homem. Sendo eterno, aceitou limitar-se num tempo da História. Estando presente em toda a parte, como diz a doutrina, aceitou viver confinado num lugar. Sendo omnipotente, aceitou o desafio da fraqueza e da pobreza, aceitou pertencer ao povo dos pobres e dos fracos, dos não detentores do poder e da riqueza; e aceitou tomar riscos concretos que lhe valeram inimizades mortais”. Mas, se Jesus incarnou para salvação dos homens, também nós temos de acreditar “que a incarnação na vida dos homens é fundamental para participar em trabalhos de libertação. Talvez pelo facto da nossa incarnação ainda não ter ido até fronteiras mais ousadas é que ainda participamos tão pouco em experiências de libertação” – escreveu o Gaspar.

“Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-se [isto é, baixou à condição do humus] ainda mais, sujeitando-se até à morte e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome” (Fl 2,6-8).

Deus não quer que os homens sejam pobres. Quer é que os pobres se façam homens em plenitude a partir da sua dignidade e da justiça de todos, e que ninguém seja arrogante e injusto do alto da sua riqueza, nem rico à custa da pobreza seja de quem for.

Justiça

Kandinsky, 'Black And Violet' (1923)

Kandinsky, ‘Black And Violet’ (1923)

“Tinham um só coração e uma só alma” (At 4,32), “partiam o pão em suas casas e tomavam o alimento com alegria e simplicidade” (2,26), “aumentava todos os dias o número dos que tinham entrado no caminho da salvação”(2,47), “ensinavam o povo” (4,2), “todos cheios do Espírito Santo” (4,31), enfim, era o céu na terra.

O ambiente de vida dos cristãos da Igreja primitiva era tal e a maldade do mundo tão grande que o que eles queriam era o regresso de Jesus, que voltasse depressa, como dizia a prece que logo criaram e repetiam: «Marana tha! Marana tha!» (Vem, Senhor!). Eles próprios desesperavam da salvação do Mundo; a única solução que entreviam era, porventura, exterior à História. Venha ele, o Senhor!

Com o andar dos tempos, esta conceção progrediu sem dúvida. E continua a haver quem pense que o Mundo não tem solução; nos desastres e cataclismos, nas guerras e fragilidades de tudo, veem apenas o dedo de um deus castigador e por isso lhe pedem que destrua tudo com fogo, Mundo e Humanidade.

É este o contexto da parábola de Lucas. Evidentemente que a viúva não tinha hipóteses de conseguir justiça para o seu caso. E importunar o juiz, dia atrás de dia, não levava a sítio nenhum.

A parábola, no fundo como todas as parábolas, não é de todo lógica. É verdade que o juiz podia, de qualquer maneira, tê-la mandado passear, a viúva. Pode ele, um juiz que não faz justiça, cansado de ouvir a reclamante, ajudar a compreender a situação de Deus, que, dia a dia, escuta os gemidos dos pobres?

Não. O próprio Evangelho afirma que Deus fará justiça sobre toda a História dos homens, porque os seus julgamentos são históricos: todas as divisões e injustiças do tempo cairão, pois que o poder dos injustos que oprimem os pequenos da terra está cimentado sobre o nada. Por isso, ele “derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52).

Certamente que os tempos mais recentes nos ajudam a perceber que os julgamentos de Deus são históricos e que a própria História se encarrega de fazer justiça.

Neste contexto, uma interrogação como esta que acabámos de ouvir (“o Filho do Homem, quando voltar, ainda encontrará Fé sobre a terra?”) faz-nos estremecer, sobretudo num tempo como o nosso em que a acomodação parece dominar tudo e todos.

É um facto. Desde o imperador Constantino, ou melhor, desde Carlos Magno, que nós, depois de termos sido os maiores contestadores do mundo, acomodámo-nos. Não que não haja exceções. Na verdade, a Luta nunca esmoreceu e, dentro da acomodação, sempre se levantaram as vozes do Espírito que geme dentro de nós e no Corpo da Igreja que ele anima e habita. Só que, até nós fizemos os nossos mártires, mortos às nossas mãos: Francisco de Assis, Joana d’Arc, Teresa de Ávila, estes são santos, mas poderia lembrar Savanarola ou o portuguesíssimo Pe. Valentim da Luz (séc. XVI: “não se deve rezar aos santos, mas sim a Deus; mais vale dar esmola aos pobres do que às Igrejas; o Evangelho deve ser entendido à letra”; por dizer isto, foi condenado à morte na fogueira da Inquisição, em Lisboa, 1562); e continuo: fizeram tudo para esquecer o teólogo Pe. Chénu, o Pe. Congar, Teilhard de Chardin, também presbítero, …, e todos os mais que fizeram o Vaticano II. Paro, que nunca mais acabava a lista. E sei também que há alguns, poucos, que os não esqueceram. E alguns não andam longe daqui!

Nós tivemos sempre uma costela integrista, feita muitas vezes de intransigência e de intolerância. Muitas vezes, não morremos pelas pessoas, mas morremos pelos princípios. E se Jesus nos aparecesse hoje a tocar não já um leproso, que agora não há leprosos, mas um doente da Sida ou até, sei lá, um traficante de droga (que tinha de diferente um publicano no seu tempo?), nós éramos capazes de, mais uma vez, lhe atirar a primeira pedra. Não o condenaríamos por afirmar que era o Filho de Deus, isso já nós aprendemos na Catequese que o é, mas sim por andar em tão más companhias.

Nós começámos – dizia – por ser os maiores contestadores no seio do império. Tanto que ainda nos lembramos de quando o «sangue de mártires [era] semente de cristãos»!

Os tempos mudaram, porém, de tal modo que, há já muito tempo, acabámos por nos acomodar. Acomodámo-nos a tudo: ao poder político (mais, fomos o poder político), ao poder económico, com a cultura tivemos quase sempre uma relação muito difícil, apesar de termos sido praticamente nós os únicos cultos de um tempo que foi nosso particularmente, acomodámo-nos aos conquistadores, aos colonizadores, aos monárquicos, ao poder totalitário, ao capitalismo…, acomodámo-nos ao costume, mesmo que seja mau, e até mesmo à degradação, e depois passámos a dizer que “a virtude está [sempre] no meio” e passámos a perseguir os que têm a coragem de dizer que não. Ainda por cima, a Igreja de Jesus chegou e chega quase sempre ou muito tarde ou muito cedo, como lhe convém: à Liberdade chegou tarde, à Democracia também, ao Poder chegou sempre cedo e à Riqueza também, à Inquisição foi a correr e depois demorou-lhe muito tempo a perceber que esse era o lado mais escuro, etc.

Finalmente, acomodámo-nos à injustiça institucionalizada e passámos a dizer que é a Natureza ou até o Acaso que nos faz nascer desiguais: uns, filhos de ricos, e outros, de famílias pobres; uns, com imensas possibilidades, e outros, sem nenhumas; uns, com direito ao trabalho, e outros, sem emprego toda a vida, durante toda ela condenados e … desprotegidos da sorte.

Acomodámo-nos a isto como nos acomodámos à geografia da Fome. Olhamos o mapa da injustiça com a maior serenidade do mundo. Seremos nós até dos mais conformados e resignados, que não levantamos problemas? Somos honestos, trabalhadores, mas essas coisas passam-nos ao lado.

Acomodámo-nos a tudo, até dentro da Igreja. Já me convenci de que querem dar cabo do Vaticano II — e que já estão a fazê-lo e que não é preciso ir longe para o vermos, apesar dos esforços do Papa Francisco —, mas nós não damos conta! Mais: na Igreja como na sociedade, perdemos a capacidade do direito à indignação.

A Liturgia começa a cheirar a Advento, é verdade, levemente ainda, mas recordando já a oração dos primeiros — Marana tha! Marana tha! —, embora andemos todos muito ocupados. Não “sabemos interpretar os sinais dos tempos” (Mt 6,2)!

Razão tinha o evangelista quando perguntava se “o Filho do Homem, quando voltar, ainda encontrará Fé sobre a terra”.

Ainda bem que, como diz o jornalista, há “engenheiros de pontes, que não de muros”! Graças a Deus! 

Arlindo de Magalhães, 16 de Outubro de 2016

Com que direito e com que justiça

Estátua de Frei António de Montesinos, República Dominicana

Estátua de Frei António de Montesinos, República Dominicana

Não é fácil ler em moderno a parábola do homem rico e do pobre Lázaro: “ignorar estas realidades seria tornarmo-nos como o rico que fingia não conhecer o pobre Lázaro que jazia junto do seu portão” (Solicitude da Questão Social, 42).

São enormes os problemas que se deparam em todo o mundo, a nível da consciência individual e das políticas nacionais e globais. De um lado, as questões do desenvolvimento, da pobreza e da exclusão social, da migração intercontinental, da educação, do aumento da criminalidade, da rutura dos laços familiares, da emergência da mulher, da revolução levada a cabo pela tecnologia ao mundo do trabalho, da desafeição popular pela política a que se juntam os apelos por uma profunda reforma democrática, e ainda as múltiplas questões sobre o ambiente e a segurança que requerem ações concertadas a nível mundial.

Do outro, a necessidade de apoiar valores como a fraternidade (a que hoje se chama solidariedade) e a justiça social, e a urgência de abandonar quer a velha ideia de um Estado controlador, coletor de impostos pesados mas que se mostra incapaz de defender tanto os interesses da maioria dos cidadãos como os dos produtores, quer a de um Estado defensor de um individualismo egoísta na convicção de que os mercados livres são a solução para todos os problemas.

Nós, os cristãos, temos alguma coisa a ver com isto, ou isto é só com os profissionais da política e os técnicos da economia? A fé é só a aceitação de umas determinadas verdades (Creio em Deus, Pai todo poderoso…), dogmas e doutrinas, ou também uma forma de viver, a que nos ensinou Jesus de Nazaré na trajetória de toda a sua vida? A fé não está nos livros, nem nos documentos, mesmo que se trate de encíclicas, mas nas pessoas, isto é, na vida. Somos seguidores de Jesus ou seguimos acriticamente a mentalidade única do sistema de pensamento único?

É por isso que há uma grande relação entre conversão individual e mudança de estruturas: “A originalidade da mensagem cristã não consiste diretamente em afirmar a necessidade da mudança de estruturas mas na insistência na conversão do homem que exige essa mudança. Não teremos um continente novo sem novas e renovadas estruturas; mas, sobretudo, não haverá um continente novo sem homens novos que à luz do Evangelho saibam ser livres e responsáveis” (assim diziam já os Bispos latino-americanos, reunidos na sua 2ª Conferência, em Medellín).

Um dia, no longínquo ano de 1511, Frei António de Montesinos (1475?-1540), dominicano espanhol que apostolou pela América Central, na ilha La Española (hoje República Dominicana) surpreendeu com este sermão: “Estais todos em pecado mortal, nele viveis e morreis, pela crueldade com que tratais estas gentes inocentes. Dizei-me: com que direito e com que justiça sujeitais estes índios a tão cruel e horrível servidão? Com que autoridade empreendeis horrorosas guerras contra estas gentes mansas e pacíficas que ocupavam as suas terras cujos recursos destruís, com chacinas e depredações? Como as mantendes presas e esgotadas, sem lhes dardes de comer nem cuidardes das doenças que lhes advêm dos excessivos trabalhos com que as sobrecarregais e das quais lhes resulta a morte, ou antes, dos trabalhos com que as matais na mira de apanhar sempre mais e mais ouro? Que cuidado pondes em que sejam evangelizadas e conheçam a Deus, seu criador, sejam batizadas, ouçam missa, guardem as festas e os domingos? Não se trata de homens? Não têm eles alma racional? Não sois obrigados a amá-los como a vós mesmos? Não entendeis isto?”.

Frei Bartolomeu de Las Casas estava lá e ouviu o sermão. Mais tarde, convertido já e dado à causa da defesa dos índios, contava assim na sua História das Índias Ocidentais: “Deixou-os, uns atónitos e sem pinta de sangue, outros ainda mais empedernidos, e alguns outros algum tanto compungidos; mas, ao que vi depois, nenhum se converteu”.

Mas a verdade é que cada um de nós tem de se perguntar em que medida é que, com ações ou omissões, contribui para estabelecer, manter ou acrescentar, estas estruturas de pecado.

Nada decidido, tudo interrogado

José Rodrigues, 'Variações sobre um Corpo'

José Rodrigues, ‘Variações sobre um Corpo’

Dizem os Atos dos Apóstolos que os primeiros cristãos, entre outras coisas (ensino dos Apóstolos e união fraterna), eram assíduos “à fração do pão (Eucaristia) e à oração” (At 2, 42).

Reuniam-se, portanto, para estas duas coisas: para a fração do pão e para a oração.

O que faziam então? Da Eucaristia não se trata aqui. Relativamente à oração, também pouco sabemos, para além do que nos diz o mesmo Livro: “frequentavam diariamente o Templo [de Jerusalém]” (2, 46). Mas isso foi só no princípio. Rapidamente, o Templo foi destruído, logo no ano 70, e os cristãos espalharam-se logo também um pouco por todo o mundo e, para a maior parte, Jerusalém ficava muito longe.

Mas de certeza que os primeiros não se tinham esquecido do ensinamento de Jesus: “Tu, quando orares, entra no teu quarto mais secreto e, fechada a porta, ora em segredo a teu Pai, pois ele vê o oculto e há de recompensar-te” (Mt 6,6). Essa era a oração pessoal.

A oração em conjunto, que começou por ser no Templo de Jerusalém, essa rapidamente passou a ser numa casa onde coubessem em conjunto: a oração em conjunto e a fração do pão. A fração não sabemos muito bem como se processava e rapidamente mereceu a crítica de Paulo: “pois que quando vos reunis não é a ceia do Senhor que comeis, pois que que cada um se apressa é a comer a sua refeição; e enquanto um passa fome, outro já está embriagado” (1 Cor 11,20).

A oração propriamente dita feita em conjunto não sabemos como evoluiu: no entanto, terá evoluído progressiva e lentamente para o esquema da celebração do Morte do Senhor em 6ª feira Maior que a Liturgia romana ainda hoje utiliza. Primeiro: leitura da Palavra, seguida de algum silêncio; depois: preces; finalmente, distribuição da eucaristia reservada do domingo anterior.

Há, pois, aqui algumas coisas a salientar. Primeiro. O destaque dado à Palavra de Deus. No silêncio da oração, é Deus que fala, nós escutamos. Posso evocar a saída do Profeta Samuel?: “Fala, Senhor, que o teu servo escuta” (1 Sm 3, 10). Mas não fala só através da Palavra fixada por escrito: “O Povo de Deus… esforça-se por discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações em que participa juntamente com os homens de hoje quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus” (GS 11). Isto é, Deus fala também nos e através dos acontecimentos. O jornal pode ser, portanto, também, ponto de partida para a oração. O jornal, isto é, a vida. Daqui vem aquela indicação de Bonhöeffer: Bíblia numa mão, jornal na outra. De facto, “as alegrias e esperanças, tristezas e angústias dos homens de hoje” coincidem com as dos discípulos de Cristo. No entanto, a Igreja deu sempre maior atenção à Palavra escrita que ao que acontece historicamente. Seria sobretudo o Vaticano II a resgatar “a autonomia das realidades terrestres” (GS 36).

Com o tempo, a Liturgia criaria três esquemas de leitura contínua da Escritura postos à disposição de todos os cristãos e de todas as comunidades: um é o dominical; outro, o dos dias da semana (a folha dominical indica-o; pode ser feita no teu “quarto mais secreto e, fechada a porta”); e um terceiro é o do Breviário dos monges e clérigos, a chamada Liturgia das Horas, que, depois do Vaticano II, tentaram pôr na mão dos leigos a par da missa diária!, mas sem resultado, e para a qual, hoje em dia, nem sequer há celebrante. (Apesar de hoje haver muito mais missas que em meados do século passado!)

No seguimento do Vaticano II, apareceu, sim, em muitas comunidades novas ao tempo, uma reunião semanal de oração partilhada.

Na Serra nascente assim aconteceu: nas 5.as feiras passou a reunir-se um grupo considerável de pessoas num tempo de oração mais silenciosa que falada, uma leitura bíblica, um tempo de meditação porventura partilhado, preces, a distribuição da reserva eucarística guardada do domingo anterior, e casa que amanhã é dia de trabalho!

As pessoas vinham, vinham, vinham; mas há 40 anos que passaram a vir cada vez menos, até que nos perguntamos se tem sentido…

Nada decidido, tudo interrogado…

Arlindo de Magalhães, 18 de Setembro de 2016

Escola de Oração

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«Moisés procurou aplacar o Senhor, seu Deus. E  o Senhor desistiu do castigo com que tinha ameaçado o seu povo»: um pede e o outro atende. Assim diz o Livro do Êxodo, 1ª leitura de hoje.

Permito-me falar, nesta homilia e possivelmente em alguma mais, de uma questão interna à nossa Comunidade: a oração.

Para orar, Jesus retirava-se “para o deserto” (Lc 4,1-2) e “para o monte…, sozinho” (Mc 6,46-47); “sozinho, estava algures a orar. Quando acabou… [veio ter com os discípulos] ” (Lc 11,1). Na véspera da sua paixão, “(No Monte das Oliveiras) … afastou-se dos discípulos à distância de um tiro de pedra… (e) começou a orar” (Lc 22,41).

Sozinho, saliento. Por isso, quando fala da oração, recomenda: “Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora em silêncio a teu Pai” (Mt 6,6). Falou também aos discípulos de outro tipo de oração: “não useis muito palavreado como fazem os pagãos” (Mt 6,7), “dizei assim: Pai nosso que estás no céu…”.

No português corrente, não é o substantivo “oração” mas sim o “rezar” que designa a ação do verbo orar: na linguagem popular, não se diz “vou orar” mas “vou rezar” (e a reza é sempre um pedir). Vou rezar pela tua saúde!

Rezar, no entanto, etimologicamente, quer dizer “recitar [uma fórmula] “. Ou seja, “orar” é uma coisa e “rezar”, outra. Na Liturgia, por exemplo, utiliza-se, moderadamente!, a recitação: recitamos o Credo, o Pai nosso, e até muitas coisas que deviam ser sempre cantadas, por exemplo, Glória a Deus nas alturas…, Santo, Santo, Santo!

Orar, não, orar precisa de silêncio e disponibilidade: “entra no teu quarto e fecha a porta”, coloca-te diante de Deus.

É muito difícil estar em silêncio diante seja de quem for. O outro intimida sempre. Só diante de alguém que se ame muito ou de quem se seja muito amigo pode estar-se em silêncio.

Mas hoje em dia temos todos muita pressa e muito que fazer: por isso, o marido não fala com a mulher nem os pais com os filhos, e assim por diante. E, por maioria de razão, não falamos com Deus, que não somos capazes de nos colocar diante dele, nem para isso temos tempo.

A oração – diz a tradição cristã – é a elevação da mente e do coração para Deus. Em silêncio. Para se escutar. O quê? Será que Deus fala? Ele nem se vê! (1 Jo 4,12). Deus tem algo a dizer? E diz mesmo alguma coisa à gente?

Voltamos à linguagem do amor humano. O/A apaixonado/a não precisa de muitas palavras: o olhar basta para se perceber quase tudo. É como um filho. Um simples silêncio pode dizer muito.

Escutar o Espírito de Deus: o que me diz a mim, o que diz às Igrejas e o que diz à história dos homens, ao Mundo. O silêncio não é simples ausência de sons, é eloquente: mas, para o ser, é preciso que se calem todos os barulhos do coração.

Para a oração é preciso silêncio, para poder escutar; para rezar, não, basta recitar a fórmula.

No Antigo Testamento, para orar, Isac saía ao campo (Gn 24,63); Esdras, consciente do pecado do povo, chorava prostrado diante do Templo (Esd 10,1)… Moisés foi o maior orante de todo o Antigo Testamento: e é por atenção ao seu pedido que Iavé salva o povo (Ex 33,17); prostrou-se diante do Senhor durante 40 dias e 40 noites a pedir-lhe a salvação do seu povo (Dt 9,26); Ele dirigiu-se-lhe numa oração por vezes dramática (33,32), em tom de súplica (esta nação é o teu povo! – 33,13), de apelo à justiça e à fidelidade (tendo em conta o que fizeste por nós, no passado, que dirão eles se agora nos abandonas?! – 32,11-14); para isso, subia muitas vezes ao silêncio da montanha (34, 29).

No Novo, há muitas maneiras de orar: Pedro subia ao terraço para o fazer (At 10,9); Paulo e Silas “em oração, na prisão, cantavam hinos” (At 16,25); em Tiro, a caminho de Jerusalém, Paulo e os cristãos do lugar “oraram ajoelhados na praia” (At 21,5).

A oração não é uma lamechice, nem uma pieguice, é esforçar-se por perceber ou concretizar a vontade de Deus.

Uma vez, o próprio “Jesus foi para o monte e passou a noite a orar. Quando nasceu o dia, só então!, revelou aos discípulos os [nomes dos] Doze Apóstolos que tinha escolhido dentre eles” (Lc 6,12).

A Igreja – as comunidades da Igreja – tem o dever de ensinar os cristãos a orar, e os cristãos o direito de serem ensinados também neste campo.

É verdade que se reduziu o conceito de oração ao de celebração, confundindo as duas coisas (há gente que pede tempos largos de silêncio na celebração dominical!), e a Liturgia se reduziu à Missa tornada uma devoção pessoal. Fora disso, mais nada, a não ser eventualmente o terço em casa.

Que lugar tem Deus e o seu Espírito na minha vida? Ou a oração é só pedir coisas a Deus, a minha saúde, a tua, a dos outros…? Que quer dizer o salmista quando afirma que o nosso Deus, o Senhor, contrariamente aos deuses pagãos, “tem boca e fala” (115,5)?

Na Serra do Pilar, há fundamentalmente dois lugares de oração: o de 5ª feira à noite e o catecumenato, que tem uma pequena escola de oração. Ambos são lugares de oração mas também escola de oração. Nas comunidades, sempre em remodelação e renovação, é de facto necessário ensinar sempre e continuamente. Também a orar.

A oração de 5ª feira à noite tem de ser um lugar de oração e uma “oficina de oração”. Tempo de refletir e decidir.

Arlindo de Magalhães, 11 de Setembro de 2016

Analfabetismo

Há muitos séculos que a Igreja exige muito pouco. Basta recordar a missa: vai-se à sacristia, marca-se, paga-se e já está. Não interessa quem, nem praquê, e a missinha já está celebrada.

No início não era assim. Aos próprios discípulos Jesus punha condições tramadas que os levavam a pensar no caso seriamente.

Hoje em dia, poucos seriam capazes de cumprir as três condições por ele exigidas. 1ª: “Se alguém vier ter comigo sem renunciar ao amor para com o pai, a mãe, a esposa, os filhos, os irmãos, as irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulo”. 2ª: “Quem não carrega a sua própria cruz para me seguir não pode ser meu discípulo”. 3ª: “Quem quer de vós que não renuncie ao que possui não pode ser meu discípulo».

Passei a minha vida a dizer que somos uma Igreja de não convertidos, de cristãos – assim ditos – não praticantes. De facto, as nossas igrejas estão cheias de gente que nunca se decidiu por nada, muito menos por Jesus e seu Evangelho, que é cristã e foi batizada do mesmo modo que recebeu dos pais e vizinhos a língua portuguesa e não a inglesa.

Os nossos bispos disseram isto já há mais de 20 anos (A formação cristã de base dos adultos, 1994): “As profundas mudanças socio-religiosas são uma razão a exigir uma fé adulta, esclarecida, assente em convicções pessoais. Esbate-se o ambiente cristão da sociedade portuguesa, formado por hábitos, gestos, imagens e exemplos que, anteriormente, criavam referências e transmitiam uma determinada cultura cristã. É notória a rutura entre a cultura e a fé (…): avançam o secularismo e a indiferença religiosa; crescem o pluralismo religioso e a confusão moral; atacam as seitas. Nesta situação, não basta o cristianismo exterior tradicional, apoiado no ambiente social e favorecido pela cultura envolvente. A fé tem, assim, de corresponder a uma tomada de posição pessoal, fruto de uma evangelização autêntica e de uma sólida formação”. Acrescentam depois: “A fragilidade do catolicismo português provém, em grande parte, do analfabetismo religioso. É uma fé sentimental e pouco esclarecida. Para superar esta insuficiência, é necessário cuidar do conhecimento dos conteúdos da fé, de modo a fundamentar convicções seguras que criem uma prática coerente”.

Aqui é que está o busílis da questão. Porque a fragilidade do catolicismo português provém, em grande parte, do analfabetismo religioso. Mas a fé tem de corresponder a uma tomada de posição pessoal, fruto de uma evangelização autêntica e de uma sólida formação, repito, citando os nossos bispos, que concluem assim, no mesmo documento:

“As atuais circunstâncias requerem uma formação cristã de base, preocupada especialmente com a consolidação da fé, em ordem à maturidade cristã e à participação ativa na vida e missão da Igreja; requerem uma formação que tenha em vista não só o conhecimento mais atualizado da fé mas também a iniciação cristã integral aberta a todas as componentes da vida cristã; requerem ainda uma formação que se oriente para o aprofundamento da mensagem cristã em relação com as experiências concretas das pessoas, de modo a fazer com que a fé, ilustrada pela doutrina, se torne viva, explícita e operante”.

Por isso, “a participação ativa na vida e missão da Igreja depende, em grande parte, da formação cristã de base que consolida a identidade cristã e eclesial. A Igreja, chamada a iluminar e transformar o mundo com a luz do Evangelho, tem de ser uma Igreja de cristãos adultos e idóneos para darem as razões da sua esperança perante o mundo. … Ao longo de todas as épocas, a Liturgia tem sido a principal escola de educação da fé do Povo de Deus”.

“Hoje, os antigos modos de formação não bastam. As atuais circunstâncias requerem uma formação cristã de base, preocupada especialmente com a consolidação da fé…” (A formação…).

Formação cristã de base: que é isso? Porque não há formação cristã de base é que as igrejas se confrontam sempre e só com niquices, não com questões. Reparem como os nossos bispos correram esta semana a Fátima, a protestar contra a cobrança de IMI que tem caído sobre paróquias e dioceses; mas nunca os vimos a protestar contra a pobreza-pobreza em que viveu e vive grande parte da população portuguesa, enquanto continua por aí essa ladroagem de bancos e bancas onde se sentam os ricos e os pobres têm de pagar!

Arlindo de Magalhães, 4 de Setembro de 2016

Batismo de Sangue

Barnett Newman, Voice of Fire, 1967

Barnett Newman, Voice of Fire, 1967

Desde meados de Junho que, a par e passo com o Evangelho de Lucas, seguimos Jesus na sua longa subida a Jerusalém. Pouco a pouco, ele ia tomando consciência da inevitabilidade do que o esperava: a morte. Não era tolo e, no contexto da sociedade do seu tempo, tudo o fazia crer: não escapava. A esta perceção que diria física, juntava-se um entendimento psicológico do que começava a desenhar-se e acabaria por tornar-se realidade.

A par, portanto, de ensinamentos e acontecimentos que ocorriam ao logo dessa peregrinação até Jerusalém, Lucas dá-nos conta do drama que Jesus vivia na sua alma. Ele começava a fazer como que o balanço da sua vida, que pressentia breve: como quem olha para trás, vê que muitas coisas não lhe tinham saído bem. Reconhece que, em vez de paz, cavara divisões, e divisões que chegavam ao próprio interior das famílias.

E quanto mais Jesus se convencia que a morte acabaria por atingi-lo, mais se angustiava: “tenho de receber um batismo (de sangue) e estou ansioso (o original diz mesmo ‘angustiado’) que ele se realize!” (Lc 12,50). Começa aqui aquela angústia cujo auge o mesmo Lucas haveria de registar na noite que lhe antecedeu a morte: “Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!” (22,42).

A par desta angústia, Jesus reconhecia uma certa frustração: tinha vindo atear o fogo, e nada! Claro que, na linguagem bíblica, a palavra fogo quer dizer duas coisas: um castigo purificador e o Espírito de Deus. Aqui, Jesus refere-se certamente ao Espírito. Só que o fogo do Espírito não ardia, e o mundo, vazio de Deus, continuava velho: os pobres continuavam a ser pobres, os pequenos a ser o joguete dos grandes, o egoísmo, o orgulho, a injustiça, a violência e o ódio a encher o viver dos homens.

Tudo somado, Jesus ia-se dando conta de que acabariam por matá-lo. Não se tratava de uma constatação superficial; Jesus tomou mesmo consciência do que iria acontecer.

Ele conhecia de resto muito bem toda a história bíblica, como muitas vezes deixou perceber. Acontecera assim com todos os antigos profetas: anunciando e propondo caminhos novos, acabaram por molestar o Ter e o Poder com as suas radicalidades e denúncias, pondo a nu hipocrisias e mentiras, denunciando abusos contra os pequenos e os pobres. Assumindo-se como uma espécie de consciência moral do mundo do seu tempo, tornaram-se insuportáveis. E acabaram mortos. Neste mesmo evangelho de Lucas, um pouco antes do trecho de hoje, é o próprio Jesus que diz: “Ai de vós, que edificais sepulcros para os profetas que os vossos pais mataram!” (11,47). Contra eles, de facto, levantaram-se tantas montanhas de ódio que o próprio Jeremias (1ª leitura de hoje) se lamentava diante de Deus pelo facto de ter nascido para ser um “homem de conflito em todo o país”: “O meu povo é para mim como um leão da floresta, a rugir contra mim” (Jr 12, 8).

Jesus conhecia tudo isto muito bem. E sentia-se um novo Jeremias. Tomou por isso, progressivamente, consciência de que caminhava para a morte e começou a angustiar-se pela inevitabilidade de ter de passar por um “batismo de sangue”.

O homem-Jesus, homem em tudo igual a nós exceto no pecado (Hb 4,15), digamos que em conflito com a sua própria divindade.

Este é, afinal, o drama da Igreja e dos cristãos, hoje em dia. A cada um de nós basta olhar para a sua própria trajetória pessoal. E basta ver o sinal da Igreja no tempo que corre. Jesus é e continua a ser a bandeira discutida que divide o mundo. Nós e a Igreja herdámos a vocação profética de Jesus; somos profetas desde o Batismo. Somos – deveríamos ser – consciência do mundo, mesmo denúncia profética do que não está bem, seja o sofrimento dos pobres ou as injustiças cometidas contra os pequenos. Levamos na alma o desejo de um mundo novo, cheio do Espírito, em que possamos viver felizes no amor de Deus e na fraternidade de todos os homens.

Mas na prática como é? Nós não somos profetas porque a Igreja não é profética, ou a Igreja não é profética porque não há cristãos-profetas?

Profetas desde o Batismo, dizia: Matilde e Francisca! Dentro de momentos, entrareis a fazer parte dum Povo de Reis, de Sacerdotes e de Profetas. Oxalá! O Senhor esteja convosco!

Laurinda e Henrique! Quem diria, naquela Escola de Balteiro…, 50 anos de casamento, o Senhor está convosco porque vós sois profetas!

Arlindo de Magalhães, 14 de Agosto de 2016

É esta a Hora!

The Third | Barnett Newman, 1964

The Third | Barnett Newman, 1964

”Felizes os que Ele encontrar vigilantes… pois quem já nada espera, está em processo de auto-destruição”… Em tempos de tão grandes correrias e de ainda maiores motivos de distracção, parece a despropósito este desafio à “vigilância”… mas, bem vistas as coisas, não é a própria vida cristã tantas vezes uma vida “contra-a-corrente”? Vigiemos, pois, e comecemos pelas palavras da Escritura de hoje…

Na primeira leitura, o autor faz coincidir a Sabedoria com a capacidade e “inteligência” manifestadas pelo Povo Judeu para, “levando a sério as promessas que Deus lhes tinha feito, se enchessem de coragem e de firmeza”, especialmente quando tudo era negro e incerto, quer nos anos do seu cativeiro, quer nessa “noite em que foram mortos os primogénitos do Egipto”, a noite do Êxodo “pascal” (cf. Êx 12, 29-30). “Levar a sério” as promessas, “encher-se de coragem e firmeza”: começa a delinear-se o perfil do crente-vigilante…

Por outro lado, o texto mostra-nos que não só foi o próprio Deus o verdadeiro Autor da libertação do Seu Povo, como igualmente Ele mesmo deu a conhecer esse Seu plano, através de Moisés (cf. Ex 12, 21-28). Por outras palavras, Deus cuida, guarda e liberta o Seu Povo; mas também o informa acerca dos planos que tem para ele… Ora, foi a “sabedoria” dessa confiança-vigilante na promessa de Deus feita a Moisés e na capacidade em ler “os sinais dos tempos” que permitiu ao Povo hebreu experimentar a alegria e a glória da “salvação dos justos”, numa noite que, para os seus inimigos, foi de “ruína” e de “castigo”. E, à Palavra-atuante e libertadora de Deus co-respondem as três acções/atitudes que, ainda hoje, também nós perpetuamos: “oferecer o sacrifício”; tomar parte da herança, “tanto nos bens como nos perigos”; e cantar “os mesmos hinos que seus pais”. Fazer memória da Páscoa da (nossa) libertação, assumir como nossa a “Vida em abundância” (cf. Jo 10, 10) que nos está prometida e destinada; cantar, como quem “reza duas vezes” (Sto. Agostinho) as “maravilhas do Senhor”, esperando vigilantemente “que Ele venha” (cf. Apo 22, 20). Portanto, um convite à memória feita celebração, a fazer “anamnese” (trazer de novo a memória), porque a nossa História é de Salvação. Porque “um Povo sem Memória é um Povo sem História”!

Vamos à segunda leitura, da Carta aos Hebreus. Tudo começa e se centra numa “tese”, logo depois sustentada e desenvolvida com sólidos “argumentos”: “A fé é a garantia dos bens que se esperam e a prova de que existem as coisas que não se vêem”. Comparando esta afirmação com o que S. Paulo nos diz sobre a Fé (para quem esta é sobretudo uma história/processo de relação/adesão pessoal entre o crente e a Pessoa de Jesus, vivida no Presente mas fortalecida por uma Promessa feita num Passado já conhecido), torna-se evidente que aqui a mesma Fé aparece relacionada não tanto com esse Passado comum (de Memória) mas antes com o Futuro e com o que nele nos é ainda desconhecido; concretamente, aqui é a Esperança a “outra face” desta (mesma) Fé. Regressando ao texto, vemos que, para a definir, são usados dois termos: “garantia” e “prova”. Ora, uma “garantia”, diz-nos o Dicionário, é uma “fiança; caução; penhor; o que é garantido (por um acto qualquer)”, enquanto que uma “prova” é, fundamentalmente (e entre os vários sentidos/acepções indicados),  “1. O que serve para estabelecer a verdade de um facto ou de asserção. 2. Testemunha, indício, sinal.”, etc… Que “garantia(s)” podemos então nós ter de que haveremos de receber esses “bens que se esperam”? Que “prova”, indício ou sinal nos é dado de que “existem as coisas que não se vêem”? A resposta aparece demonstrada com argumentos firmes, pois alicerçados na terra mais profunda e mais fértil da História do Povo a quem a carta se dirige: a experiência de Abraão e de Sara, nossos antepassados e modelos na fé, pelo seu testemunho de fidelidade e “confiança vigilante“ na Palavra-Promessa de Deus. A Fé, portanto, é aqui sinónimo de uma atitude interior de vigilância confiante, alicerçada na certeza do cumprimento da Promessa de Deus, que é sempre fiel à Sua Palavra. Memória que se faz Futuro, porque assente na Esperança-Vigilante.

Finalmente, no Evangelho, Jesus incita os seus Discípulos – “pequenino rebanho” – mas também a nós (e em particular os que temos especiais responsabilidades, de acordo com a grandeza dos dons que nos tiverem sido confiados/concedidos) a que estejamos todos “também preparados, porque, à hora em que menos pensardes, é que vem o Filho do Homem!”. De facto, as páginas bíblicas são pródigas em mostrar-nos que é sempre de forma inesperada que Deus vem ao encontro do Homem: desde Adão a João Baptista, e passando por todas as narrativas de vocação/chamamento (ao serviço do Reino), Deus nunca escolhe os previamente escolhidos, nunca Se apresenta revestido das cores com que O pintam, nunca aparece onde nem quando todos O esperam… Como disse o Papa Francisco em Santa Marta (28.04.2015), o nosso Deus é “o Deus das surpresas”… Por isso, é preciso termos sempre “as lâmpadas acesas”, os rins cingidos pelas “cintas apertadas”, sermos “como homens que esperam o seu senhor”, de olhar desperto e ouvidos atentos, de mãos libertas e pés ligeiros para, no meio da noite (e do sono) dos nossos tempos, sabermos e podermos, como Samuel, dizer: “Aqui estou, Senhor.” (cf. 1 Sam 3, 1-11). E, se o povo judeu partiu levando consigo apenas os seus “pequenos nadas” (Ex 12, 32-35), e se Abraão e Sara pouco mais tinham do que a si mesmos, o seu amor mútuo e a sua velhice, a nós, que temos tantas coisas (e que somos tão pouco), Jesus diz-nos para “nada temer”, para tudo vender, e para dar esmola, pois espera-nos um “tesouro inesgotável nos Céus, do qual o ladrão não se aproxima e onde a traça não corrói”. Este é o “substracto”, a “essência” da nossa Fé-Esperança: a certeza de que, com Jesus, é fazendo-nos pobres aos olhos do mundo que nos tornamos ricos aos olhos de Deus.

Onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração.” Não ontem. Não amanhã. Hoje! Portanto, meus amigos: “corações ao alto”, pois é este o Tempo! É esta a Hora!

Luís Leal, 7 de Agosto de 2016

Orar, pedir, insistir

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Eu, pecador me confesso: sempre que escuto, na Liturgia ou em qualquer outro contexto, o trecho do livro do Génesis da primeira leitura de hoje, não consigo evitar de pensar no “regateio finório”, ou, dito mais eufemisticamente, nas “capacidades negociais/diplomáticas” de Abraão diante de Deus: como é possível e compreensível que o mesmo Abraão, que se reconhece não passar de alguém que não é mais do que “pó e cinza”, se “atreva” a “regatear” com Deus a salvação de duas cidades já “perdidas”, face à gravidade do seu pecado?

Lido com estes óculos, o texto é impressivo e impressionante, também na “aritmética”. Repare-se:

  1. a) 7 a 6 é o resultado do confronto entre as vezes em que o texto refere os personagens principais: 7x “O Senhor”, contra 6x “Abraão”;
  2. b) o Senhor fala apenas uma vez e para dizer uma só coisa: “Como é grande o clamor contra Sodoma e Gomorra, como é grave o seu pecado! Vou descer, para verificar se o clamor que chegou até mim corresponde inteiramente às suas obras. Se assim não for, hei de sabê-lo.” Não encontramos na sua voz nenhuma ameaça de castigo ou destruição… e, no entanto, é sob esta “ameaça” que toda a trama se desenvolve…
  3. c) das outras 6x em que o Senhor fala, é sempre como resposta às perguntas, insistências e persistências de Abraão; Ele nunca deixa os pedidos insistentes de Abraão sem resposta…
  4. d) é Abraão quem, conhecendo a “justiça divina” (todo o pecado merece castigo – cfr. Nm 32, 16; Dt 5, 9), logo se apressa a “limitar os danos” de algo que lhe parece eminente… e por isso fala, ou melhor, insiste (5x) e replica (1 x) com Deus, apelando à Sua misericórdia… Abraão, que “estava diante do Senhor” mas que, ainda assim, “se aproximou” ainda mais para insistir e replicar com Ele… Parece um jogo de “ping-pong” (político-diplomático): a cada cedência de Deus, Abraão tenta “esticar um pouco mais a corda”, pedindo um pouco mais… Abraão pede, insiste, reinsiste… Deus ouve-o e aceita, anui, vai cedendo…
  5. e) repare-se finalmente no “negócio” que Abraão consegue fazer com Deus: de duas cidades inteiras (Sodoma e Gomorra) em vias de serem dizimadas, Abraão conseguiu que o Senhor lhe prometesse clemência, se numa delas encontrasse “dez justos”. Começou por propor a salvação da cidade “em troca” de 50 justos; depois 45; depois 40; depois 30; depois 20; e finalmente 10; ou seja: em termos economicistas, tentou “comprar” a salvação de uma cidade inteira pelo quinto do “preço” da sua primeira e mais alta proposta!!! Que belo negócio, não haja dúvidas…! O problema foi que, ”feitas as contas”, não havia nela nem um só justo “para amostra”, e a cidade, com todos os seus habitantes, acabou por ser destruída (Gn 19,24-25)…

Mas, sinceramente, não me parece ser esta a melhor “lente” para perceber o que realmente a Palavra de Deus nos quer apontar…

Os exegetas dizem-nos que esta história da destruição de Sodoma e Gomorra (Gn 19, 1-29), duas das cinco cidades-estado do Vale de Sidim, hoje submerso pelas águas do Mar Morto, é uma (tentativa de) explicação popular das ruínas de cidades antigas que existiam então naquela região (Gn 14,3). Tendo Abraão e Lot passado por aquele lugar (10,19; 13,10; 14; 18,16) e visto tal destruição, logo se associaram, teologicamente, aquelas ruínas ao pecado humano e à justiça de Deus. Por isso é que, no Antigo Testamento, Isaías (Is 1,10-20) vê nestas cidades um exemplo de injustiça social; em Jeremias (Jr 23,14) elas são sinónimo de adultério e falsidade; Ezequiel (Ez 16,49-50) vê em Sodoma o orgulho e o desprezo do pobre; no Levítico (Lv 18 e 20,23) estas cidades são um exemplo da depravação sexual dos cananeus e, já no Novo Testamento, esta mesma ideia se haveria igualmente de sublinhar e perpetuar (cfr. Mt 11,23-24; Lc 10,12; 17,28-29; Ap 11,8).

Com efeito, e apesar de a “letra” do texto nos incitar a colocar em Abraão o protagonismo da “estória”, ele é o protagonista, sim, mas por uma razão bem diferente: é que ele se nos apresenta aqui como o protótipo do homem que, sendo isento de toda a culpa/responsabilidade no castigo que recairá sobre os seus semelhantes, ergue a sua voz e intercede diante de Deus em defesa daqueles que, á partida, não merecem defesa…. Ele, um homem bom e justo, intercede e apela a Deus pela salvação dos injustos e pecadores… Onde é que já se viu isto? Onde é que já todos vimos isto?

Mas, com ainda maior rigor, nem é ele, Abraão, o verdadeiro e maior protagonista: é Deus e a sua Justiça, uma justiça que, ao contrário da humana (“olho por olho, dente por dente”) consiste, essencialmente, no perdão (“se encontrar… 50… 40… 30… 20… 10… perdoarei…”). Caros amigos: dizia na Introdução à celebração de hoje que a Liturgia, particularmente neste “Tempo Comum”, vai trazendo à nossa reflexão as grandes questões do Existir Cristão; ora, aqui chegados, teremos que parar para sublinhar e registar: falar da oração (e particularmente desta, feita “por um justo” em prol dos seus demais – porventura mais ou pelo menos igualmente pecadores como ele -) é estarmos a tocar  o centro nevrálgico de toda a teologia cristã, pois foi o próprio Jesus Quem, na Cruz, realizou plenamente esta entrega-doação total em prol dos seus irmãos (Nm 16,22; Jr 5,1; Ez 22,30; Rm 3,5-6). É, portanto, a esta luz (da Cruz de Jesus) que o texto do Génesis verdadeiramente se ilumina e revela; e assim iluminado, deixa transparecer, de forma agora mais “cristalina”, o seu profundo sentido: que é importante, necessário, urgente e premente orar, pedir, insistir, ontem, hoje e sempre… Pois Deus, o “Abbá” (à letra: o “papá”, o “paizinho”…) cujo rosto misericordioso Jesus nos apresenta e de Quem, sendo Ele tão próximo e íntimo, nos faz igualmente próximos e íntimos, precisamente através da oração que nos ensina, este que é o nosso Deus sempre nos ouve, sempre escuta “o clamor do Seu Povo”. Assim mesmo o experienciou e testemunhou Jesus, particular e sumamente no desespero do Jardim das Oliveiras, em 5ª Feira Santa (Mt 18, 39), ou na solidão da Cruz, na tarde de 6ª Feira (Mt 27, 46)… Porque Ele “é grande, mas não esquece o humilde” (como ouvimos no Salmo); por isso “Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte.” (At 2, 24). 

E eis aqui a ponte que liga o relato de Abraão ao Evangelho: mesmo sabendo que são o louvor e a ação de graças os “modos de orar” primordiais e fundamentais da nossa fé (na lógica do Dom, primordial e permanente com que fomos e somos, a cada dia, agraciados…), convém assinalar que, também na única oração que Jesus nos ensinou, esta dimensão da súplica esteja igualmente presente, sim, mas profundamente “equilibrada” pela confiança-esperante n’Aquele a quem nos dirigimos. Porque só esta proximidade-intimidade tal permite (recorde-se que também Abraão, que estava “diante do Senhor”, d’Ele se aproximou – ainda mais – para Lhe falar… “ao coração”, diríamos…), é a este mesmo Deus-Pai misericordioso que Jesus nos ensina a rezar.

Jesus mostra-nos que é ao nosso Pai (e não a um qualquer deus-distante) que nos dirigimos, com o respeito (temor) que Lhe é devido, sim, mas fundamentalmente com a certeza confiante de que o conforto do seu regaço e abraço serão sempre superiores à aspereza da sua voz tonitruante. Por isso este Pai tem um nome que merece ser “santificado” (respeitado, não dito em vão, re-conhecido); o Seu Reino, “de paz, justiça e alegria” (como bem se canta em Taizé) é por nós esperado ansiosamente; o Seu pão (Palavra e Corpo) é o nosso sustento; o Seu perdão é a nossa Alegria; a sua Sabedoria é o nosso cajado que nos impede de cair…

“Venha o vosso reino. Dai-nos o pão. Perdoai-nos os nossos pecados… E não nos deixeis cair em tentação….” Tudo dizemos e pedimos no plural porque é na pluralidade – da Comunidade – que somos que tais dons podem ser acolhidos, saboreados, partilhados, multiplicados. Por isso, e mesmo que intrínsecamente pessoal (e por vezes mesmo solitária), a oração cristã nunca deixa (nem pode deixar) de ser “comunitária” e eminentemente “solidária”: orar com os outros e pedir pelos outros é orar e pedir pelo “bem comum” que a todos congrega e diz respeito; orar e pedir por eles, hoje e sempre… e em particular por aqueles que nos ofendem e maltratam: eis quando a oração se (e nos) sublima…

A terminar esta reflexão, e tal como o próprio Evangelho uma palavra deve ressoar: confiança. “Pedi e dar-vos-ão. Procurai e achareis, batei e hão de abrir-vos. Pois todo aquele que pede recebe; quem procura encontra; e ao que bate abrir-se-á.” E quando não soubermos o que dizer nem o que pedir, quando, como dizia o poeta Eugénio de Andrade, quando nos parecer que “já gastámos as palavras pela rua (…) e o que nos ficou não chega / para afastar o frio de quatro paredes”, não nos esqueçamos que “Gastámos tudo menos o silêncio”: esse “silêncio eloquente” em que Deus tantas vezes nos responde… desde que nunca nos cansemos de pedir e insistir, como Abraão e como o discípulo desconhecido: “Senhor, ensina-nos a orar.”  Também em silêncio.

Luís Leal, 17 de Julho de 2016

Sara, Marta e Maria

He Qi, «Marta e Maria»

He Qi, «Marta e Maria»

Sara, Marta e Maria. Três mulheres, três formas de servir, três exemplos de dedicação.

Na primeira leitura um banquete trazido por Abraão aos visitantes. Mas é por Sara que eles perguntam… Sara como tantas mulheres dos dias de hoje cumpria o seu papel de esposa fiel. Ao pedido do marido: “vai depressa buscar três alqueires de farinha, amassa-os e faz uns pães”, não sabemos o que respondeu. Apenas se apressou a fazer o que lhe pediam.

Quantas de nós preparamos banquetes, sem esperar nada em troca e sempre de forma dedicada? O jantar de terça, o almoço de domingo, a mesa partilhada do Tríduo Pascal…pelas Santas Mulheres.

Marta aquela que não parava. Nem sabia para onde se havia de virar. Tanto assim que logo demonstrou o seu desagrado em estar sozinha a tratar de tudo.

Admitamos, que muitas vezes nos revemos em situações semelhantes!

Maria aos pés do Senhor ouvia, ficando presa pelas suas palavras. Ela terá escolhido a melhor parte.

Então, qual destas mulheres será o verdadeiro exemplo? Sara que obedece ao marido? Marta que se sente injustiçada pelo imenso trabalho que tem? Ou Maria que não fazendo nada, ouve e contempla?

Somos cada uma delas, a dado momento!

Por vezes reclamamos, outras vezes limitamo-nos a cumprir e há dias em que apenas ouvimos.

Cada uma de nós tem a capacidade de fazer muitas coisas ao mesmo tempo: estar aqui, pensar no que vem a seguir, filhos, pais, trabalho, Comunidade… É parte de nós! Uma “bênção” ou um “castigo”! Esta vontade de querer dar tudo, de ser tudo para os outros, de resolver os problemas dos outros e os nossos.

Mas é importante parar…

“Jesus tratou bem as mulheres: rodeado por elas, que também podiam ser discípulas, foram-Lhe fiéis até à morte, ao contrário dos discípulos homens, que fugiram” (Anselmo Borges, DN 22 Agosto 2015).

Qual o papel da mulher na Igreja dos dias de hoje?

Se quando somos batizados não há distinção, e se todos somos chamados à Santidade do mesmo modo, por que razão não pode o percurso ser feito da mesma maneira?

Apesar da falta de padres, conforme já foi abordado pelo Padre Arlindo, muito recentemente, foi decidido “que as mulheres, apenas por não serem homens, não podem ser chamadas ao presbiterado. Por razões de teologia incompetente, de miopia pastoral, de confiança cega em grupos e movimentos pseudo-salvadores, a situação eclesial agrava-se de dia para dia” (Frei Bento Domingues O.P 19/06/2016-Público).

Até quando?

Elsa Lopes, 17 de Julho de 2016

Um Povo de Profetas

Baptismo - Carolina do Norte (EUA), início século XX

Baptismo – Carolina do Norte (EUA), início século XX

Atravessavam, Jesus mai-los discípulos, rumo a Jerusalém e a Samaria – que, como sabemos, era um território paganizado, cujos habitantes não se davam com os judeus-judeus —, e Jesus teve uma ideia, assim à maneira do papa Francisco: Vinde cá! Ide vós à frente e em “todas as cidades e lugares aonde havemos de passar” anunciai que “o Reino de Deus está próximo”.

Já uma vez, atrás, tinha acontecido uma coisa semelhante: mas então enviou só os Doze “a anunciar o Reino de Deus” (Lc 9, 2). Agora, despachou 12 mais 72.

A uns e a outros, aos 12 e aos 72, deu praticamente os mesmos conselhos: Não leveis nem bolsa, [nem bordão], nem mochila, [nem pão], nem dinheiro, [nem duas túnicas] (Lc 9,3 e 10,4). No contexto da Última Ceia, repetiria isto mesmo, mas então só aos 12 (Lc 22,35/36).

Isto quer, portanto, dizer que Jesus enviou discípulos por duas vezes: uma vez 12, outra 72. Nestas coisas, e no contexto bíblico, é sempre preciso reparar no simbolismo dos números. Enviou 12, numa clara alusão às 12 tribos de Israel, isto é, a todo o seu povo de Iavé. Agora enviou 72, numa clara alusão aos 72 povos que, no contexto da cultura judaica, existiam à face da terra: “Trarei os teus filhos do Oriente e do Ocidente” (Is 43,5).

Saliento, portanto, que Jesus enviou tudo o que tinha a evangelizar todas as nações da Terra. Assim é que é! E toda e qualquer interpretação particularista do Evangelho neste campo é falsa. Pretender que enviou apenas 12, apenas os Doze, não é correto: Jesus envia todo um Povo, simbolizado pelo número 12, o número de todas as tribos de Israel, a evangelizar todas as 72 nações da terra, na conceção geográfica judaica, simbolizadas nos 72 discípulos que, depois dos Doze, Jesus envia também a todas as cidades e lugares (aldeias) (10,1) a anunciar que Está perto o Reino de Deus (Lc 10,9). Explico que, ao tempo, a palavra civitas>, que hoje significa cidade, não é o que por ela se entende: talvez a palavra atual concelho a traduza melhor, designando um território e sua população.

Portanto, Jesus não enviou apenas alguns (os Doze ou os 72). Enviou, sim, o que tinha: todos (12 ou/e 72) a todos (os povos da face da terra, do Oriente e do Ocidente).

O próprio Jesus explicaria: “Hei de enviar-vos profetas e apóstolos” (Lc 11,19), disse ele aos doutores da Lei.

Hoje sabemos que a Igreja não é um Povo que tem Profetas: a Igreja é um Povo de profetas. A Igreja de Jesus cumpre o antigo desabafo de Moisés: Oxalá que todo o Povo do Senhor fosse um Povo de Profetas (Nm 11,29). Por isso, o Vaticano II deixou dito que todo o Povo Santo de Deus participa da função profética de Cristo (LG 12); e acrescenta um pouco à frente: a todo o discípulo de Cristo incumbe o encargo de difundir a fé, cada um à sua medida (LG 17). De resto, como sabemos todos, a própria Liturgia batismal deixa tudo muito claro desde o início: Deus todo poderoso … te regenerou pela Água e pelo Espírito … para que … sejas para sempre membro de Cristo sacerdote, profeta e rei.

É preciso definitivamente termos ideias claras. Pensa mal quem pensa que, na Igreja, só aos ministros ordenados compete continuar a missão profética de Jesus. De maneira nenhuma: compete, sim, a todo o novo Povo de Deus, à Igreja, que é, pelo Batismo, um Povo de Profetas e um Povo em que reina uma igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à atuação, comum a todos os crentes, em favor da edificação do corpo de Cristo, uma igualdade entre todos os batizados, que constitui radicalmente este sacramento universal de salvação que é a Igreja.

E então os ministros ordenados, os Bispos, os presbíteros e os diáconos? Sim, compete a esses de modo especial. E por duas razões: primeiro, e antes de mais nada, porque são batizados como todos os mais batizados, isto é, membros deste corpo de profetas, de sacerdotes e de reis; e depois, porque pela graça do sacramento da Ordem são especialmente associados ao ministério e função de Cristo-Cabeça-da-Igreja.

Mas não são uma espécie de funcionários superiores, a quem se pede empenhamento maior pelo facto de terem uma vida mais livre!, pensam muitos.

É preciso cada vez mais clarificar teologicamente estas coisas, e estas categorias, para que percebamos que passou já o tempo de as confundir referindo ao ministério presbiteral em exclusivo o que compete a todo o Povo de Batizados. Basta de fazer da Igreja um rebanho de ovelhas mudas e mansas conduzidas por pastores que tudo podem e em tudo são [in]competentes.

Vamos ao Vaticano II: “Por vocação própria, compete aos leigos procurar o Reino de Deus, tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus” (LG 31). Traduzamos isto para português, com uma frase do papa Paulo VI:

“O campo próprio da atividade evangelizadora dos leigos é o mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos mass media e, ainda, outras realidades abertas para a evangelização como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento” (Evangelii nuntiandi [EN 70]).

É por isso, meus irmãos, que há muito penso e digo que só quando todo o Povo de Deus tomar em mãos a sua missão poderá a Igreja de Deus do nosso tempo ter os bispos e presbíteros que a Igreja merece, já não digo que precisa, acabará esta santa confusão de bispos e cardeais, de religiosos e freiras, de presbíteros e leigos, com diáconos pelo meio, de sacristães e funcionários de cartórios. ” É claro a todos que os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade” (LG 40).

A subida a Jerusalém

22-29_fev

O caminho mais direto da Galileia para Jerusalém passava pela Samaria. Apesar disso, nunca, durante séculos, samaritanos e judeus se entenderam. Por isso mesmo, a estrada mais direta era também a mais arriscada. Haja em conta o samaritano que de Jerusalém se dirigia para Jericó, na Samaria (10,29 ss), e foi assaltado, certamente que por judeus ou estrangeiros. Para Jesus, que era judeu e estendia a mão a toda a gente, fosse quem fosse, que atravessava a Samaria, esta foi a ocasião para anunciar a Boa Nova aos samaritanos.

Estes, os samaritanos, descendentes das tribos do norte, não tinham conservado a pureza de sangue, isto é, ao longo dos séculos, tinham-se misturado com gente de todas as ascendências e povos. O seu templo, por exemplo, não tinha nada a ver com o de Jerusalém, era no monte Garizim (destruído no ano 128 aC), onde Jesus se encontraria com a samaritana do poço (Jo 4,1-41). Os samaritanos ­— sem templo ao tempo de Jesus, e que conservavam a sua memória no cimo do monte com aquele nome — sustentavam que Moisés ali adorara IAVÉ e que, ali mesmo, Iavé lhe entregara o Pentateuco, único Livro que os samaritanos aceitavam como sagrado.

A fim de se preparar para esta parte da viagem, Jesus enviou, à frente, os seguidores que caminhavam com ele a tratar do alojamento, aldeia aqui, cidade acolá. Os samaritanos tê-los-ão mandado às favas: se tem jeito, judeus a pedir cama e comida a samaritanos! Estão malucos ou fazem-se?

Claro que os pobres samaritanos, como os judeus afinal, não imaginavam que iam para Jerusalém, ou melhor, para a Cruz em Jerusalém. Assim é que é. Ele, que não era tolo, já sabia ou bem sabia que ”estavam a chegar os dias de ser levado deste mundo” (Lc 9,51).

Vendo isto, os irmãos Tiago e João, filhos do Trovão, levantaram-se logo… Senhor, se quiseres, espinçalhamos já isto tudo…! Os discípulos queriam violência, Jesus vai pela tolerância. Não destrói mas redime! Andor! Prà frente!

Nós, os cristãos, podemos defender-nos, não atacar. Há muito tempo que o homem verdadeiramente religioso superou a vingança do “sete vezes sete” da ofensa (Gn 4,23-24), do “olho por olho e dente por dente” (Ex 21,24), mesmo até a regra de ouro negativa (ou de ferro): “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Só o cristianismo se soltaria definitivamente das amarras da Lei. Só ele formularia o “fazei aos homens o que quiserdes que eles vos façam” (Mt 7,12), a lei de ouro positiva. Isto é, só o cristianismo englobaria o amor dos inimigos no superlativo amor do próximo: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: ‘Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos perseguem e maltratam’” (Mt 5,43-44).

Os cristãos hão de ser pacientemente tolerantes e magnânimos; têm que estar preparados para enfrentar a hostilidade sem revanchismos nem desejo de vingança. Mas têm direito a defender-se a si mesmos e não estão obrigados a deixar-se matar.

Lucas dedica praticamente metade do seu Evangelho a esta viagem ou peregrinação de Jesus a Jerusalém. Não se trata, porém, de uma narração de estilo moderno: foram ali, pararam acolá, pousaram em casa de Marta e Maria… sei lá que mais. Trata-se do resumo do ensinamento global de Jesus encaixado numa viagem, imaginada por Lucas. Platão, séc. V aC, escreveu O Banquete, durante o qual oito convidados discutiram o que é o amor. Lucas imaginou uma longa viagem, durante a qual Jesus sobretudo ensinou: ele sabia o que o esperava ao chegar a Jerusalém.

A começar, … como disse, a viagem para Jerusalém. Começou pelo princípio: nada de violências. Ao longo destes capítulos, muita coisa que só em Lucas aparece: as parábolas do filho pródigo, do bom samaritano, o encontro com Zaqueu, etc… Mas começou pelo princípio, como ouvimos.

A tua fé e a tua tarefa

"Viagens apostólicas": Grafite s/papel, 42 x 29,7 cm, Ass.2007. ÁLVARO SIZA VIEIRA

“Viagens apostólicas”: Grafite s/papel, 42 x 29,7 cm, Ass.2007. ÁLVARO SIZA VIEIRA

De maneiras diferentes, em situações diferentes, todos perguntavam: “Quem é este tipo?” (Lc 8,23). E Jesus volta-se para os discípulos: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. E “Pedro tomou a palavra e disse: O Messias de Deus!” (Lc 9,20). Relatando este episódio ocorrido em Cesareia de Filipe, Marcos regista esta confissão messiânica de Pedro como tendo sido só “Tu és o Messias” (Mc 8,29); Mateus, “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”, (Mt 16,16) e João, tu “És o Santo de Deus” (Jo 6,69).

“Quem dizeis que eu sou?”, portanto. Atrás da resposta a esta pergunta andamos todos, vai em 21 séculos. É verdade que já alguns dos seus contemporâneos viram logo que ele era mais que Abraão (Jo 8,53), mais que Moisés (Mt 5), mais que Jonas (Lc 11,32), mais que David (Mt 22,45), mais que Salomão (Mt 12,42), mais que Jacob (Jo 4,12), mais inclusive que o próprio templo (Mt 12,6)… Mas só depois da ressurreição é que a comunidade cristã manifestou todo o seu entusiasmo, carregando-o de títulos: para além de Salvador, chamou-lhe também Filho do Homem, Senhor, Messias, Enviado do Pai, Cristo, Filho de David, Servo de Deus ou de Iavé, Filho de Deus, Palavra de Deus. Tinha começado a cristologia: “Quem dizem os homens que eu sou?”.

Entretanto, documentalmente, sabemos tanto de Jesus que se reduz a muito pouco: se “muitas outras coisas que Jesus fez — diz João no fim do seu Evangelho (21,25) — tivessem sido escritas, uma por uma, penso que o mundo não teria espaço para os livros que havia que escrever”. É que os mais antigos testemunhos dele são quase todos cristãos e conhecemo-los só do Novo Testamento.

Mas há alguns não cristãos. O mais importante e mais antigo é de Flávio José, um historiador judeu dos finais do séc. I, que escreveu assim — havia ainda alguma memória viva de Jesus — no seu livro Antiguidades judaicas: “Nessa época, houve um homem sábio com o nome de Jesus cuja conduta era boa; as suas virtudes foram reconhecidas. E muitos judeus e homens de outras nações tornaram-se seus discípulos. Pilatos condenou-o à morte, a ser crucificado. Mas os que se tinham feito seus discípulos espalharam a sua doutrina”.

Suetónio, historiador romano do I/II séc., escreveu também que os judeus de Roma foram expulsos da capital pelo imperador Cláudio no ano 41-42 ou até 49, pois que alguns se agitavam por instigação de um tal “Chrestos”. Tácito, outro historiador do mesmo tempo, noticia a perseguição de Nero aos cristãos de Roma, no ano 64, e lembra que eles tinham esse nome pois seguiam um tal “Chrestos” que foi condenado ao suplício da cruz por Pôncio Pilatos. Por fim, Plínio, o Jovem, escritor e político romano, em 111-113, numa carta dirigida ao imperador Adriano, descreve os progressos do cristianismo na província da Bitínia (noroeste da atual Turquia), de que era governador, e pergunta-lhe como devia proceder para com os cristãos que lhe eram denunciados, seguidores que eram de uma “detestável superstição” espalhada por um tal “Cristo, que, no principado do Tibério” foi condenado por Pôncio Pilatos.

Fora disto – dizia eu – só o Novo Testamento. Ao lê-lo, muitos apontam-lhe contradições. Nos evangelhos, por exemplo. Mateus diz que “ao ver a multidão, Jesus subiu a um monte… e depois ensinou: Bem-aventurados os pobres em espírito!”. Mas Lucas diz assim: “Descendo com eles [do monte], deteve-se num sítio plano… e disse: Bem-aventurados os pobres!” (Lc 6,17 e 20). Pode perguntar-se: afinal, quem tem razão? Mateus, que diz que o sermão foi na montanha, ou Lucas, que diz que foi em baixo, num sítio plano? Quem tem razão? E se Mateus fala de “pobres em espírito”, Lucas fala só de “pobres”. Quem tem razão?

Se a figura de Jesus tivesse sido inventada, teria sido diferente conforme os escritores e seus escritos. Mas não, a figura de Jesus é a mesma em todos os evangelhos; que nuns pormenorzitos haja diferenças, não tem importância. De resto, naquele tempo, não havia na cultura da época nem registos civis, nem assentos de nascimento, nem de casamento ou de falecimento, não havia bilhetes de identidade nem cartões de cidadão… Mas isto só se registava na memória popular, não na civil.

E, então, ele quem era ou quem foi?

À pergunta, só a fé pode responder cabalmente: “És o Messias de Deus”, na formulação de Lucas. Mas à História esta resposta não basta. Contrariamente, têm alguma ou grande importância, por exemplo, estas outras afirmações, também do Novo Testamento: dizem que ele “ia de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, proclamando e anunciando a Boa Nova do Reino” (Lc 8,1), ou que “andou de lugar em lugar fazendo o bem” (At 10,38).

Andou por ali a partir e dividir o pão e o peixe, sentado às mesas da hospitalidade e do debate, ele que, logo no início, se apresentara na Sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor enviou-me a anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertação aos cativos, a vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos e a proclamar um ano jubilar” (Lc 4,18). E acrescentou: “Cumpriu-se hoje esta palavra da Escritura”. Jesus começava a sua obra, a anunciar a liberdade e a praticar a libertação.

De que Jesus viveu entre nós os historiadores não recolhem praticamente indícios diretos, se excetuarmos os escritos do Novo Testamento, documentos hoje incontestáveis. Mas que ele é o Filho de Deus vivo ou o Messias de Deus, essa é a resposta firme da fé, tal como da fé é a afirmação de que ele – que passou fazendo o bem – está vivo e vive entre nós. Dizem-no a fé da Igreja e o Espírito, “o Deus da esperança que nos envia aos largos campos da injustiça e do pecado”.

Quando passo por esta questão, lembro-me sempre de Pasolini (1922-1975), marxista confesso, poeta e cineasta, realizador de um filme célebre e muito belo —O Evangelho segundo S. Mateus —,  a quem algum dia, depois de apresentado o seu Evangelho…, perguntaram se acreditava que Jesus era Filho de Deus e que respondeu assim: “Eu não acredito que Cristo seja filho de Deus porque não sou crente, pelo menos conscientemente. Mas acredito que Cristo seja divino, isto é, porque nele a humanidade foi tão elevada, tão rigorosa e ideal que ultrapassou os termos comuns da mesma humanidade”. Esta afirmação não é ainda uma profissão de fé cristã – “Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo” (Mt 16,16) -, mas anda lá perto.

Aqui tens, Igreja, o teu Senhor, a tua fé e a tua tarefa.

Arlindo de Magalhães, 19 de Junho de 2016

À sua imagem

PA NEWS PHOTO 20/4/98

PA NEWS PHOTO 20/4/98

Situada a Norte da Samaria, que já era praticamente pagã, Cafarnaum era-o ainda mais. Terra dos irmãos Pedro e André, Jesus andou muito por ali: era “a sua cidade” (Mt 9,1), pregou na sinagoga que ali existia (Lc 4,31), onde toda a gente ficava maravilhada com o seu ensinamento (Lc 4,32). Mas a verdade é que o êxito da sua pregação foi tão escasso que o mesmo Jesus, citando Isaías (6,9-10), disse da sua cidade: “O coração deste povo é duro” (Mt 13,15).

A provar isto que digo, Jesus entra em Cafarnaum e aparece-lhe logo um centurião romano, pagão.

O centurião era um soldado profissional do exército de ocupação de Roma que mantém a ordem militar na Palestina, o país de Jesus. O seu ofício não era fácil: os judeus conservaram sempre uma identidade nacionalista muito forte e não se resignavam a permitir que as águias de Roma controlassem os destinos da sua pátria. Aqui e ali levantavam-se mesmo vozes a contestar esta presença romana, o que levaria, algumas décadas depois da morte de Jesus, a um levantamento massivo contra o império. Iam ocorrendo também, aqui e ali, repressões sangrentas do poder estabelecido como a que refere Lucas (13,1/2) quando Pilatos mandou executar alguns galileus, sufocando assim, certamente, uma qualquer rebelião. Por tudo, ser militar romano na Palestina não era nada fácil.

E é sobre este pano de fundo que se situa o relato evangélico de hoje. A sua primeira surpresa vem do facto de um oficial romano ter a estima dos judeus. O texto afirma mesmo que ele «estima a nossa gente»; tinha até ajudado os judeus a construir uma Sinagoga. Tudo nos permite supor que podia tratar-se de um convertido, tornado portanto um prosélito. Prosélito era um grego ou romano que de alguma maneira aceitava a tradição religiosa de Israel, nomeadamente o seu monoteísmo, imitava a sua honradez moral e participava das suas esperanças. Alguns chegavam mesmo a circuncidar-se, tornando-se assim verdadeiros «Filhos de Abraão», marcados na carne. Isto é: convertia-se do paganismo ao Judaísmo.

Este proselitismo judaico era muito forte no tempo de Jesus, de tal modo que muitos chegaram a pensar que a religião judaica chegaria a conquistar espiritualmente o próprio império. Assim se entende a posição do centurião: conquistador de Israel militarmente falando, tinha sido religiosamente conquistado pelos judeus.

O Livro dos Atos fala muito destes prosélitos, abundantes na história da Igreja antiga: eles escutavam com alegria a Palavra de Deus, convertendo-se à Boa Nova de Jesus. No entanto, sobretudo depois da destruição de Jerusalém pelo exército romano no ano 70, com o esmagamento brutal e sangrento da resistência judaica, é o próprio judaísmo que se fecha sobre si, rejeitando estas conversões. E vai ser a jovem Igreja a herdar e levar à prática a velha postura de tipo universalista do antigo Judaísmo, de que já Salomão se faz eco na que foi a primeira leitura de hoje: a Igreja de Jesus (com uma missão universal de pregar o Evangelho) distancia-se dos judeus (fechados no seu nacionalismo religioso).

Já naquele tempo havia comunicação religiosa: são inúmeros os encontros de Jesus e crentes de outras religiões, os Atos dos Apóstolos dão notícias do mesmo.

O Concílio Vaticano II — num documento titulado “A Igreja e as religiões não cristãs” — disse claramente que “é função da Igreja fomentar a união e caridade entre os homens e até entre os povos … [pois que] ela nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo”. E do Islamismo diz assim:

«A Igreja olha também com estima para os muçulmanos. Adoram eles o Deus Único, vivo e subsistente, misericordioso e omnipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens e a cujos decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o coração, como a Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem o reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta, e honram Maria, sua mãe virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia do juízo, no qual Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitados. Têm, por isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, a esmola e o jejum.

E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais e a paz e liberdade para todos os homens.»

E termina assim o Concílio:

“Não podemos invocar Deus como Pai comum de todos se nos recusamos a tratar como irmãos alguns homens, criados à Sua imagem. De tal maneira estão ligadas a relação do homem a Deus Pai e a sua relação aos outros homens seus irmãos, que a Escritura afirma: «quem não ama não conhece a Deus» (1 Jo. 4,8) ”.

Tivemos muçulmanos entre nós e connosco. Espero que possamos ir visitá-los em sua casa (mesquita), de modo que sejamos todos filhos do Pai que está nos céus.

Arlindo de Magalhães, 29 de Maio de 2016

Corpo de Deus

Pieter Bruegel, o Velho | 1567 | Kunsthistorisches Museum, Viena

Pieter Bruegel, o Velho | 1567 | Kunsthistorisches Museum, Viena

Na primeira metade do século XI, um pobre filho dum pobre sapateiro francês, de nome Jacques Pantaléon, era o arcediago (arkô, o primeiro + dos diáconos) de Liège. Foi depois Bispo de Verdun e Papa com o nome de Urbano IV (1261-1264). Estava ele ainda em Liège e, num Sínodo diocesano ali realizado em 1246, criou-se uma festa litúrgica para se celebrar apenas e só a Eucaristia, a festa do Corpo de Deus, pois nela — na Eucaristia — está o “Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, tão real e perfeitamente como está no céu”. É verdade que havia já a Liturgia de 5ª Feira Maior…, mas isso era uma confusão pois se misturava a Eucaristia com o lava-pés, com a entrega do Mandamento Novo, nada como uma festa especial…, só da Eucaristia. E assim foi: no ano seguinte, 1247, já houve festa.

Era já Papa o antigo Arcediago de Liège, e um monge e duas religiosas, tudo agostinhos, lembram-se de lhe pedir que se estendesse por toda a Igreja essa celebração nascida em Liège. E o Papa disse que sim, claro! Era vivo ainda o conhecido São Tomás de Aquino (1225-1274), um dos mais importantes teólogos cristãos de todos os tempos, e pediu-se-lhe que escrevesse textos belos para a festa — porque é que não se faz isto hoje, textos belos para a Liturgia?! — e, entre outras poesias, ele escreveria o célebre Tantum ergo Sacramentum! (Um tão grande sacramento!).

Em pleno séc. XIII, Idade Média quase a terminar, já ninguém se lembrava de um decreto do imperador Constantino, datado do ano 321, proclamando que o até então 1º dia da semana, o dia do sol (o 2º seria o da lua: lunes > lundi > lúnedi, etc) passaria a ser o dia do descanso semanal, o dia do Senhor. Já ninguém se lembrava disso e, portanto, no die dominicæ ressurrectionis Domini, o dia da Ressurreição do Senhor, já quase se não cumpria a recomendação do Senhor “fazei isto em memória de mim”. Ninguém se lembrava, sobretudo os que pertenciam ao mundo agrícola e necessitavam de acudir aos animais e mesmo ao regadio dos campos.

Em 1264, o Papa Urbano decretou a solenidade anual do Corpus Christi que rapidamente se espalhou pela Europa, aqui e ali com uma soleníssima procissão, em algumas cidades ou vilas sobretudo. Em Portugal, pode referir-se Melgaço e Amarante, Porto e Lisboa, etc. Histórias de grande tamanho. Aqui ao lado, na vizinha Espanha, em Toledo, é um espanto a procissão do Corpo de Deus. Ao pálio pegava sempre o Primeiro Ministro, ateu que fosse. Um dia, julgo que no tempo do PSOE no governo, o Primeiro-ministro decretou: acaba-se com o feriado do Corpo de Deus! Muito bem!, responde o Cardeal, a procissão passa para o Domingo seguinte. A seu tempo, apresenta-se o Primeiro-ministro. Não, não pega no pálio! Grave problema Igreja – Estado!

A procissão do Porto era de arromba:

«Eu El Rey [D. Manuel I] faço saber aos que este alvará virem que os oficiais da Câmara da Cidade do Porto que nela serviram os anos passados, me envyaram dizer por sua carta que por alguns inconvenientes lhes pareceo que convinha ao serviço de Nosso senhor e meu tratar de por em melhor ordem a procissão de corpus Christi da dita cidade por nela irem alguns jogos E danças não decentes ao tempo por a muita antiguidade com que se ordenaram…».

Estes poucos apontamentos bastam para percebermos que a festa do Corpo de Deus, nos seus princípios e nos seus fins, realização religiosa que é, teve sempre intromissões do mundo político e laico: falei aqui no imperador Constantino, na des-evangelização da cristandade medieval, no empobrecimento da Liturgia eucarística em que as pessoas apenas assistiam à Missa e pagavam, que nem a Palavra lha davam pois era em latim de cabo a rabo, do domingo que se sabatizou, do “primeiro dia da semana”, que chatice!, ele podia ter ressuscitado num Sábado!, agora dava mais jeito!, em 1910, a República varreu a maior parte dos feriados religiosos e o Corpo de Deus lá foi até 1952, repescado pelo Estado Novo. Dizem que a História não se repete, mas nem sempre: há dias deitaram fora o Corpo de Deus, mas ele cá está outra vez! Não por razão religiosa!

Somos uma bola de bilhar: íamos pràli, mas vem outro e manda-nos pràcolá…, isto para lá do encontrão que recebemos. Cartão vermelho!

Arlindo de Magalhães, 26 de Maio de 2016