Corrupção

Vasily Kandinsky

Uma coisa, uma realidade, seja ela qual for, corrompe-se quando perde a sua natureza e se transforma em algo de diferente; quando isto acontece com um ser vivo, o que dele resta começa a cheirar mal. Da mesma maneira, uma sociedade ou uma pessoa estão corrompidas quando perdem a sua identidade. Também nestes casos, se percebe o seu mau cheiro.

Na vida da gente, há actividades sociais que se destinam a conseguir os bens internos que com elas se alcançam. A política, por exemplo, persegue o bem comum; a actividade empresarial, a satisfação das necessidades humanas; o jornalismo, a informação dos cidadãos e o enriquecimento da opinião pública; a educação, a transmissão de conhecimentos e valores que tornem as pessoas mais maduras; etc. O trabalho em geral, de resto, responde a necessidades pessoais e sociais, responde à criatividade de cada um e visa a obtenção de meios de vida. Estes bens são os que dão sentido às diversas actividades e lhes concedem legitimidade social.

Entretanto, estas actividades podem proporcionar também outro tipo de bens, que diria externos, pois que não sendo o que lhes dá nem sentido nem legitimidade social, têm também importância. Bens externos são, por exemplo, o lucro, a fama ou o poder que se podem conseguir pela dedicação à política, à arte, à medicina, à vida empresarial, ao desporto ou à investigação, ao próprio trabalho.

A verdadeira corrupção consiste em trocar os bens externos pelos internos, ou seja, consiste em alguém dedicar-se a uma actividade ignorando por completo os bens internos que ela proporciona, fixando-se unicamente nos bens externos que ela consegue. Nesse caso tudo se igualiza: o político, o empresário, o médico ou o jogador de futebol, todos eles o que querem é dinheiro ou fama e poder, e mais nada.

Quando uma sociedade troca os bens internos pelos externos, é a própria opinião pública que considera “gente de sucesso” aquele que alcançou mais dinheiro, mais fama ou mais poder, não importando à custa de quê. Hoje em dia, a maior parte dos meus contemporâneos quereria ser tão rica como não sei quem, e mais nada. “Qual é o doente que acreditaria na ciência de um médico que, para além de não ter fama, não tivesse móveis em casa?”, já no séc. XIX perguntava Balzac.

Chega-se ao ponto de considerar louco alguém que se dedica a uma actividade só na mira dos bens internos.

Este é o princípio do início da decomposição de uma sociedade. Dedicar-se a uma actividade só na mira de bens externos, fama, dinheiro ou poder (o trabalho é hoje, para muitos, apenas a ocasião de receber dinheiro), passando mesmo por cima dos códigos éticos que a deveriam reger, pensados para garantir os seus bens internos, é hoje norma comum e porta aberta à corrupção, coisa de que a gente até já nem se admira muito que aconteça como acontece.

De facto, a opinião pública já só fala de corrupção quando um político se apropria dos fundos públicos para seu uso próprio ou assina um determinado contrato a troco de uma recompensa pessoal. Mas a verdadeira corrupção não começa aí; apenas chegou, aí, na sua lógica, ao passo final.

A Liturgia dos domingos que celebramos é particularmente incisiva, nomeadamente pela boca do profeta Amós, eventualmente o mais violento de todo o Antigo Testamento.

Este homem exerceu o seu ministério profético no século VIII aC, época humanamente gloriosa em que o Reino do Norte se expandiu e engrandeceu (depois de Salomão o Povo tinha sido dividido em dois reinos, o do Norte ou Israel, e Judá ou do Sul), mas onde o luxo dos grandes era um insulto à miséria dos oprimidos e o esplendor do culto escondia a ausência de uma verdadeira religião. Com uma rudeza ingénua mas duríssima, o profeta condenou em nome de Deus a vida corrompida das cidades, a injustiça social e a falsa segurança procurada em ritos religiosos de que o espírito estava ausente. IAVÉ, Senhor do Mundo, que pune todas as nações, castigará duramente Israel em nome de uma grande justiça moral – ameaça o profeta. O dia de IAVÉ será de trevas e não de luz, a sua vingança será terrível. Ao falar assim, Amós está certamente a pensar na Assíria, o colosso vizinho, sempre à espreita de poder devorar o pequeno reino do Norte. Mas entreabre uma pequena janela de esperança a um pequeno resto de fiéis a IAVÉ.

Este ensinamento sobre o Deus de Israel – IAVÉ -, Senhor universal e todo poderoso, defensor da justiça e do pobre, é um dos pontos firmes da religião de Israel.

Amós de nada se inibe para o apresentar. Utiliza uma linguagem que parece de algum modo dirigida ao nosso próprio mundo. Já então os dias eram poucos para o negócio! O afã dos seus contemporâneos pelo terreno, pelo dinheiro e pelo material fazia-os sofrer particularmente nos sábados e noutros dias de festa (religiosa) pois que, por imposição da Lei, tinham de suspender nesses dias as suas actividades. Dizendo doutro modo, os contemporâneos de Amós lamentavam o facto de as superfícies comerciais não poderem abrir ao domingo. Sempre era mais um diita pró negócio!

Passados esses dias, no entanto, teoricamente dedicados ao Senhor, recomeçavam as medidas diminuídas, os preços aumentados, os pesos roubados. A cesta de compras do pobre era então presa das mais injustas violações. Os abusos chegavam a extremos desumanos. O pobre e o necessitado, poderemos falar do trabalhador de hoje?, tinham que vender a sua liberdade, o seu próprio constitutivo de Pessoa, aquilo em que nem Deus ousa tocar, para poderem subsistir.

É difícil dar uma imagem mais capaz e com maior valentia do pecado social de todos os tempos.

“Escutai bem, vós que espezinhais o pobre
e quereis eliminar os humildes da terra” (Am 8,4).

Mas Deus ama particularmente este pobre espezinhado pela injustiça. Jesus Cristo é mesmo a visibilidade de um amor gratuito e preferencial do nosso Deus pelos mais pobres e marginalizados, que ele acolhe com escândalo dos bem pensantes e poderosos e com quem convive e fala.

É para responder aos pensamentos injustos e iníquos dos fariseus e escribas, mas sobretudo para introduzir e ensinar os seus discípulos a caminhar na religião nova, que no Evangelho Jesus fala – sobretudo nas parábolas da ovelha e da moeda perdidas (domingo passado) – do coração cheio de misericórdia e da compaixão de um Deus que acolhe com simplicidade e se alegra quando algum “pobre” (pecador) se encontra com ele.

Arlindo de Magalhães, 22 de setembro de 2019

Seguimento

Domenico Fetti (séc. XVII)

O capítulo 15 do Evangelho de Lucas é o conjunto de três parábolas que se não podem separar. Têm de ser lidas em conjunto, o que se não pode fazer aqui, na execução litúrgica. José Maria Castillo afirma que “são três pilares sobre os quais se construiu um genial monumento do mistério profundo de Deus”. Esse “genial monumento”:

  1. Quem de entre vós que possua cem ovelhas e tenha perdido uma delas não deixa as outras noventa e nove no deserto para ir à procura da que anda perdida? (Lc 15,4)…;
  2. Qual é a mulher que, possuindo dez dracmas e tendo perdido uma, não acende uma lâmpada, varre a casa e procura cuidadosamente a moeda até que a encontre? (Lc 15,8)…;
  3. Filhos, vós estais sempre comigo … (15,31). 

Deus representado pelo pastor que sai à procura da ovelha que anda perdida, pela mulher que procura a moeda, e pelo pai perante os seus dois filhos, que culpa tem Deus? A culpa é do pagador! Quer dizer: o pastor que procure, a mulher a mesma coisa e o pai se o filho lhe fez o que fez, o pai que o castigue.

Era assim que a antiguidade entendia a doença: a doença era um castigo. Naquele tempo e na sua mentalidade, os doentes eram doentes porque se pensava que a doença era um castigo de Deus. Castigado porque doente.

Era por isso também que, naquele tempo, havia muitos doentes porque havia muitos pecados: e depois homens de espírito maligno, paralíticos, leprosos, cegos, possessos, surdos, mudos, etc… 

O caminho que levava Jesus aos pecadores — aos aleijados, aos perdidos… — não era para os condenar, mas exatamente ao contrário. Jesus seguia o caminho dos pobres e dos doentes que levava à amizade e à convivência. Não se tratava de lhes ensinar uma teoria nem rituais religiosos. 

Por isso, Jesus disse ao cego de Jericó: “a tua fé te salvou” (Lc 18,43).

Digamos que para se conseguir a alegria do céu se exige até um convívio comensal terreno, não a observância de práticas religiosas, mas sim a experiência de práticas humanas, de convivências fraternas e caritativas.  

Jesus convivia com extraviados e perdidos e com pecadores que corriam a escutá-lo e a conviver com ele. E ele conviveu com eles porque havia compreensão, tolerância, respeito, acolhimento, e nunca se escutou uma mínima recusa nem uma suspeita sequer.

Foi aí então que Deus se “incarnou”, se “humanizou”. E a nós ensinou-nos a sermos “profundamente humanos”. 

A ideia de todo o capítulo 15 é que os letrados e pecadores murmuravam uns com os outros: “Este  acolhe os pecadores e come com eles!!!”. Mas todo o capítulo 15 do Evangelho de Lucas explica que as três parábolas de Jesus — a do pastor, a da mulher, e a do filho perdido (dizêmo-lo pródigo) — não andam atrás nem dos pecadores nem dos perversos mas simplesmente dos perdidos, isto é, dos queridos que se extraviam. O Deus de Jesus não julga, não recusa, não censura. O Pai de Jesus, que nos revela Jesus, compreende sempre, acolhe e alegra-se sempre, seja qual for o extravio do perdido,

Temos de refazer uma “cristologia a partir do seguimento” de Jesus, diz Castillo.

Arlindo de Magalhães, 15 de setembro de 2019

A conversão

Hyatt Moore, ‘Conversão de Paulo’

Há muitos séculos que a Igreja exige muito pouco. Na maior parte dos casos, vai-se à sacristia, marca-se, paga-se e já está. Não interessa quem, nem praquê, e a missinha já está celebrada. À missinha podia juntar-se o baptismo, depois a primeira comunhão e a solene, e, no fim, o funeral!

Mas não acabou aí: a igreja já começou a deixar-se transformar num lugar de catering não só em casamentos de luxo, pois que meteram já a mão em funerais de qualidade! E toda esta gente, na maior parte dos casos, nunca terá entrado numa igreja.

Aos próprios discípulos Jesus punha condições tramadas que os levavam a pensar no caso seriamente.

1ª: “Se alguém vier ter comigo sem renunciar ao amor para com o pai, a mãe, a esposa, os filhos, os irmãos, as irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26).

2ª: “Quem não carrega a sua própria cruz para me seguir não pode ser meu discípulo” (Lc 14,27).

3ª: “Quem quer de vós que não renuncie ao que possui não pode ser meu discípulo» (Lc 14,33).

Passei a minha vida a dizer que somos uma Igreja de não convertidos, de cristãos – assim ditos – não praticantes. De facto, as nossas igrejas estão cheias de gente que nunca se decidiu por nada, muito menos por Jesus e seu Evangelho, que se pensa ou diz cristã e foi batizada do mesmo modo que recebeu dos pais e dos vizinhos a língua portuguesa (mas nenhuma outra).

Os nossos bispos disseram isto já há 25 anos (A formação cristã de base dos adultos, 1994):

“As profundas mudanças socio-religiosas são uma razão a exigir uma fé adulta, esclarecida, assente em convicções pessoais. Esbate-se o ambiente cristão da sociedade portuguesa, formado por hábitos, gestos, imagens e exemplos que, anteriormente, criavam referências e transmitiam uma determinada cultura cristã. É notória a ruptura entre a cultura e a fé (…): avançam o secularismo e a indiferença religiosa; crescem o pluralismo religioso e a confusão moral; atacam as seitas. Nesta situação, não basta o cristianismo exterior tradicional, apoiado no ambiente social e favorecido pela cultura envolvente. A fé tem, assim, de corresponder a uma tomada de posição pessoal, fruto de uma evangelização autêntica e de uma sólida formação”. Acrescentam depois: “A fragilidade do catolicismo português provém, em grande parte, do analfabetismo religioso. É uma fé sentimental e pouco esclarecida. Para superar esta insuficiência, é necessário cuidar do conhecimento dos conteúdos da fé, de modo a fundamentar convicções seguras que criem uma prática coerente” (2.c).

Aqui é que está o busílis da questão.

“O secularismo … penetra cada vez mais a consciência e a vida das pessoas, levando-as a pensar e agir sem Deus. E isto até em muitos que ainda se dizem cristãos, mas que toma decisões e adoptam estilos de vida absolutamente adversos à fé. E quando Deus está ausente, também os fundamentos antropológicos se diluem, perdendo-se o sentido da transcendência e da dignidade humana” (Catequese: A alegria do encontro com Jesus Cristo, 2017, p. 7).

Mas “As atuais circunstâncias requerem uma formação cristã de base, preocupada especialmente com a consolidação da fé, em ordem à maturidade cristã e à participação ativa na vida e missão da Igreja; requerem uma formação que tenha em vista não só o conhecimento mais atualizado da fé mas também a iniciação cristã integral aberta a todas as componentes da vida cristã; requerem ainda uma formação que se oriente para o aprofundamento da mensagem cristã em relação com as experiências concretas das pessoas, de modo a fazer com que a fé, ilustrada pela doutrina, se torne viva, explícita e operante”.

 “Hoje, os antigos modos de formação não bastam. As atuais circunstâncias requerem uma formação cristã de base, preocupada especialmente com a consolidação da fé…” (A formação…).

Formação cristã de base: que é isso? Porque não há formação cristã de base é que as igrejas se confrontam sempre e só com niquices, não com questões.

Assim dizia o Pe Anselmo Borges, há duas semanas, no artigo semanal do Diário de Notícias:

«A religião, concretamente na Europa, também entre nós, está em queda. O número de agnósticos e de ateus aumenta, para não falar na chamada “prática religiosa”, que desce a olhos vistos. O padre José Antonio Pagola escreveu recentemente um texto com o título “Depois de séculos de ‘imperialismo cristão’, os discípulos de Jesus têm de aprender a viver em minoria”

Qual é então o sentido da vida? “Redimir o mundo. Colocar luz onde há trevas, amor onde há desamor, esperança onde há inesperança e desespero, claridade na dúvida. Na medida em que fizermos isso, estamos bem e semeamos o bem.” (…).

Está aí, bem à vista, a chave para entender a crise da religião e perceber a conversão de que a Igreja urgentemente precisa para ser o que Jesus quer. Ele passava noites na montanha a rezar e fez a experiência inexcedível do mistério de Deus como Abbá … A consequência: amou a todos, por palavras e obras, a começar por aqueles e por aquelas que ninguém ama, porque Deus é o sentido último da existência, não caminhamos para o nada, porque Deus é Amor. Tomás Muro disse-o, numa síntese perfeita: “O fundamento da religião é o medo. O fundamento do cristianismo é o amor”».

Arlindo de Magalhães, 8 de setembro de 2019

Comer em comum

Diego Rivera, ‘Banquete en Wall Street’ (1928)

  1. Comer em comum — um simpósio, assim se chamava — tinha nas culturas antigas uma importância que hoje se perdeu. Comer em comum é ainda hoje um acontecimento de medição e até de integração social. A categoria social de cada comensal refletia-se na postura e no lugar que ele ocupava no banquete. Os importantes da classe superior comiam recostados em divãs, os pobres e escravos comiam de pé ou no chão. É importante saber isto, pois que “a grande maioria da gente que vivia no império romano era pobre” (Robert knapp).

E por isso se compreende a importância que têm, nos evangelhos, as comidas de Jesus. E entende-se também a importância e o cuidado que Jesus punha naquelas comidas que, compartidas, se celebravam conforme a determinada ordem social. Por isso, Jesus não tolerava as pretensões de importância e honra que os fariseus mostravam. Eles consideravam-se os primeiros, na “ordem do religioso”, e empenhavam-se em deixar isso claro igualmente na “ordem do secular”.

  1. Por isso, Jesus viu claramente que, entre “importantes” e “plebeus”, o mais eficaz era cortar pelo são. Daí, o empenho de Jesus pôr os “últimos” no sítio dos “primeiros”, os primeiros mandá-los lá para trás e pôr nos lugares de cima os últimos e os pobres. Se isso fosse possível, dava-se um passo decisivo para o nascimento de uma sociedade igualitária, em que todos fossem irmãos humanos.

«Quando alguém te convidar para um banquete nupcial, não tomes o primeiro lugar. Pode alguém de maior consideração do que tu ter sido também convidado por ele, e ele, que te convidou a ti e ao outro, ter de vir dizer-te Cede o teu lugar a este convidado. Tu, envergonhado, terás então de passar para o último lugar. Quando fores convidado, vai tu para o último lugar, e quem te convidou dir-te-á assim que chegar Amigo, chega-te mais cá para cima.» (Lc 14, 8-11)

  1. Jesus fala de uma comida compartida, de uma reunião comensal…: as comidas de Jesus. Comer a uma mesma mesa é partilhar da mesma vida: à mesa se fala da saúde, da alegria, da intimidade, da aproximação humana, do sofrimento… Que mais se pode pedir ou fazer?

Não se tratava nem de baixar ou melhorar a qualidade da comida posta na mesa por causa deste ou daquele que… Os privilégios, as distinções, as maiores ou menores importâncias…

Jesus cortava “pelo santo” estabelecendo assim a escala da prioridade: os primeiros da mesa têm de ser os últimos na escala social e os convidados ao almoço têm que ser os que ninguém convida nem os querem ser. Isto é, o que Jesus apresenta é uma inversão total de valores, de critérios éticos e de princípios sociais.

A desprestigiada religião bem como a desprestigiada Igreja (que ainda não existia) terão de assumir, no futuro, critérios de subversão sem contemplações.

  1. Neste episódio não se fala simplesmente de um publicano, mas de um chefe de publicanos. Zaqueu. Era um chefe.

Um “chefe de publicanos” era uma pessoa importante. Tinha publicanos a seu serviço que tratava como escravos, homens odiados pelo povo, pois que extorquiam os mais débeis, obrigando-os a pagar impostos muito gravosos, isto é, roubavam-nos no sentido exato da palavra: roubavam na quantia que haveriam de entregar ao chefe, chefe dos publicanos, e na quantia que ficava para eles. Por isso publicanos e chefes dos publicanos eram muito ricos.

Profetas

Sidival Fila | https://snpcultura.org/beleza_e_espiritualidade_do_descartavel_em_sidival_fila.html

Nos tempos pré-históricos, a pouca população que habitava o nosso planeta agrupava-se em pequenos núcleos espalhados e isolados por montanhas e florestas (os caçadores), depois pelas planícies (lavradores) e até pela orla marítima (pescadores). Constituíam assim pequenas sociedades, todas muito fechadas e quase sem comunicação entre si, que se defendiam umas das outras e se atacavam sempre que podiam. As culturas eram fechadas, as línguas locais faladas por poucos, as técnicas e outros bens não se trocavam, não havia leis…

Acontecia o mesmo com as religiões. Claramente locais, crenças e ritos decorriam da cultura dos lugares em que surgiam: a montanha, a floresta, a árvore mesmo, a terra, fértil e mãe, o rio, fonte de vida, o sol ou a lua, os antepassados, tudo era “sombra e imagem” de um Deus que o homem primitivo procurava mas não encontrava (LG 16), embora, “desde os tempos mais remotos… se encontre nos diversos povos uma certa perceção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos: encontra-se até por vezes o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai. Perceção e reconhecimento esses que penetra[va]m as suas vidas de um profundo sentido religioso” (NA 2).

Mas eram sempre pequenos os grupos humanos, pequenos e fechados, e pequenas as religiões.

Aconteceu então – os primeiros escritos cristãos falam da “plenitude do tempo” (Gl 4,4) – uma coisa que os historiadores e os estudiosos das religiões valorizam particularmente e que varreu o mundo: alguns homens religiosos – chamemos-lhe “profetas” – romperam com o “caseirismo” das suas religiões fechadas e pequenas, e provocaram uma espécie de onda que percorreu o planeta até então conhecido, a que se daria o nome de “revolução profética”: Europa, Ásia e Norte de África. Esta época da História humana surge por volta do ano 500 aC e processa-se até ao fim do séc. VI dC. Aconteceu aparecer o Taoísmo chinês (de Lao-Tsé), o Confucionismo (de Confúcio), depois o Budismo (de Siddarta), o Judaísmo (os Profetas que tão bem conhecemos), o Maniqueísmo (de Mani), o Zoroastrismo (de Zoroastro), e finalmente o Cristianismo (Jesus) e o Islamismo (Maomé)…

A revolução profética foi no fundo uma rutura, polémica e radical, uma crise salutar carregada de um imenso poder destruidor, fortemente crítica da tradição religiosa anterior paralisada em formas estáticas e incapazes de expansão. Mas as religiões que a sofreram logo se tornaram ricas em capacidades “missionárias”, digamos assim, criadoras e inventivas, apontando praticamente todas no sentido de um Deus único e capaz de congregar “todos os povos”.

Na religião de Israel, Isaías (nome que reúne num só três profetas com o mesmo nome) é o maior desta revolução: «Algo de novo está a aparecer, não vedes?» (43,19). O Livro dito com o seu nome abre logo, no 1º cap., com uma crítica dura e violenta à religião [antiga] de Israel, para se abrir todo ele a um Deus “novo” e diferente, mais rico e dito com toda uma capacidade de expressão até então impossível de se imaginar, Deus de “todos os povos”. O Deus que Isaías anuncia tem duas facetas: reúne crentes de todos os povos, rumo a um banquete final e escatológico.

“Eu sou Iavé. Não há outro Deus além de mim. Eu sou um Deus justo e Salvador. Para além de mim não há outro. Convertei-vos a mim e sereis salvos, todos vós, [mesmo] os que habitais os mais longínquos confins da terra. Todos os joelhos se dobrarão diante de mim e toda a língua jurará pelo meu nome” (Is 45,21-22). Esta reunião converge, portanto, para a assembleia final, a realizar “no monte Sião, [em que] o Senhor do universo preparará para todos os povos um banquete de boas carnes e vinhos finíssimos… Aí, ele arrancará o véu de luto que cobre todos os povos e encobre todas as nações. E então aniquilará a morte para sempre” (Is 25,6-7).

Jesus entrará também, clarissimamente e por maioria de razão, neste grande movimento universal, que poderíamos enriquecer visitando, ainda que rapidamente, todos os mais profetas de outras religiões, o que aqui se não pode fazer: “Ide por todo o mundo – dizia Jesus aos discípulos – anunciar a Boa Nova a todas as criaturas” (Mc 16,15).

Mas deixai-me ler um texto de Maomé:

“Alá! Não há nenhum deus inferior a Ele! Ele, é o Vivo, o Eterno. Não necessita nem de descanso nem de sono. É seu tudo aquilo que existe nos céus e na terra. Quem pode interceder junto dele sem o seu consentimento? Ele sabe o que existe nas suas mãos e atrás delas, o presente e o futuro. O seu trono ergue-se muito acima dos céus e da terra e não lhe custa vigiar nem esta (a terra) nem aqueles (os céus). Porque Ele é o Sublime, Ele é o Altíssimo” (Corão 2,256).

O nosso Deus libertou-nos de todas as amarras que o aprisionavam. Depois de Isaías e dos Profetas de Israel, depois de Jesus, o seu Enviado – “Apareceu entre nós um grande Profeta, Deus visitou o seu Povo!” (Lc 7,16) -, Deus não está mais ligado nem a uma raça (como pretendiam os Judeus) ou a uma nação (como se cantava em Portugal, “enquanto houver portugueses”), não está preso a qualquer tradição ou costume religioso, a uma moral ou a qualquer interesse (“Senhor, nós comemos e bebemos contigo à mesa…”! [Lc 13,26]).

O nosso Deus chama-nos a todos, do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e, por muito que a gente estranhe, sentar-nos-á a todos à mesa do Reino de Deus.

Esta imagem está carregada de simbólica religiosa, de Isaías a Jesus de Nazaré e chegando aqui à Comunidade que somos. Todos somos convidados para ela: para que nos não esqueçamos, cada semana comemos pão e bebemos vinho, fraternalmente, “mistério da fé”. Mas também aqui “há últimos que serão primeiros e primeiros que serão últimos”, porque “eu, o Senhor, digo e faço” (Ex 37,14).

Arlindo de Magalhães, 25 de agosto de 2019

Vocação profética

Sidival Fila | https://snpcultura.org/beleza_e_espiritualidade_do_descartavel_em_sidival_fila.html

Desde o último domingo de Junho que, a par e passo com o Evangelho de Lucas, seguimos Jesus na sua longa subida a Jerusalém. Pouco a pouco, ele vai tomando consciência da inevitabilidade do que o espera: a morte. Não era tolo e, no contexto da sociedade do seu tempo, tudo o fazia crer: não escapava. A esta perceção que diria física, juntava-se um entendimento psicológico do que começava a desenhar-se e acabaria por tornar-se realidade.

A par, portanto, de ensi­namentos e acontecimentos que ocorriam ao logo dessa peregrinação até à cidade santa, Jerusalém, Lucas dá-nos conta do drama que engrossava na alma de Jesus. Ele começava a fazer como que o balanço da sua vida que pressentia breve: como quem olha para trás, percebia que muitas coisas tinham sido duras, mas que, também, o caminho tinha de ter sido por ali…!

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Vigiar

Sidival Fila | https://snpcultura.org/beleza_e_espiritualidade_do_descartavel_em_sidival_fila.html

Nestes dias “de ir a banhos”, a liturgia, e particularmente a Palavra de Deus que se faz de novo ouvir e é proclamada por nós, reveste-se de uma especial acutilância, faz-se verdadeiro Magnificat!

Depois do “Come, bebe, descansa e diverte-te, pois tens riqueza que chegue para muitos anos” (Lc. 12, 19), hoje recorda-nos que somos “peregrinos sobre a terra” (“Meu pai era um arameu errante! – Dt. 26, 5). “Não temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino”… mas (há sempre um MAS) “Felizes aqueles que, ao chegar, o senhor encontrar vigilantes!” Porque, apesar de o Reino estar ao alcance de todos e ser para todos… há que vigiar. Continue reading

Tempo Comum

Vincent van Gogh, ‘Still life with a plate of onions’. January 1889

“Que o Deus de Israel/ nos abençoe para sempre/ E guie os nossos passos/ na Alegria e na Paz” – cantávamos ao iniciar esta ruptura no tempo que toda a acção litúrgica significa, enquanto irrupção da ordem do diferente na mesmidade e na banalidade dos dias.

Paradoxalmente, o tempo comum é um lugar da temporalidade litúrgica em que a banalidade dos dias se apresenta tendencialmente monótona e arrogante. São os “dias sem metáforas”, como diria o poeta [José Rui Teixeira]. Mas são também os dias da vida que se resigna cinicamente a este mundo. Nessa capitulação ante o sentido pragmático das coisas, cresce a arrogância de tudo arrumar no tempo ordinário de uma vida. Diria, por isso, que o tempo comum é o tempo da vaidade, o tempo da auto-suficiência, o tempo da acumulação que, por medo ao vazio, paradoxalmente o empanturra com mais vazio. É para essa consciência de enfermidade espiritual que o tempo comum da liturgia nos alerta.

Tecido na noite penelopiana dos paradoxos, o cristianismo cedo percebeu – talvez demasiado cedo – que o tempo não se mede pela monotonia de uma narrativa fechada, ainda que a lógica etiológica e sacrificial da culpabilidade difusa a tenha acabado por impor como única grelha de leitura da realidade. A narrativa salvífica é sempre, sob pena de deixar de o ser, uma narrativa aberta. É para essa consciência que o evangelho de hoje nos acorda.

Penso muito naquilo que Hugo Mujica – presbítero da arquidiocese de Buenos Aires, outrora monge trapista, e poeta – escreveu no prólogo às suas poéticas do vazio:

“No princípio não há nada, depois há depois, algo, uma marca no tempo, um é. Aquilo que o vazio, o nada, o impossível ou a ausência deram ao ser.
Marcaram na página em branco ou na intempérie: na paisagem da possibilidade.
Na nudez, a espera”.    

A sabedoria do coração, de que a liturgia da palavra faz eco, lembra que a resistência ao inesperado, ao novo, ao diferente e ao incontrolável não são verdadeiros caminhos de salvação. Todo o desejo de encerrar numa narrativa fechada, com as suas morfologia e sintaxe estáticas, são pura vaidade: desilusão, tempo monótono, pó, húmus, erva seca, palha.

A salvação não se negoceia na estática de um verbo que tudo pretende captar e traduzir. Não se negoceia sequer, porque não é da ordem do manipulável. A salvação é da ordem do impossível. De nada serve acumular. Por isso, habitar o vazio, o tempo comum dos “dias sem metáforas” é habitar a espera, a possibilidade de um mundo novo que talvez aqui não tenha lugar (utopia), única via de acolhimento do que é gratuito.

Assim meditava José Augusto Mourão a propósito do evangelho de hoje:

“Conhecer é receber. Ser espaço livre a modo de uma vasilha pronta para receber o líquido. Isso sabiam as beguinas, essas mulheres que transportam o tema da alma nobre da literatura da corte para o domínio espiritual. Desapego, humildade, pobreza até ao aniquilamento ¾ tanto no plano da vontade (caminho real para o país do não querer) como no do conhecimento (nesciência e desimaginação). Chama-se a isso vacuidade, que se deve traduzir por vacância ou disponibilidade. […]

Nós temos horror ao vazio, por isso acumulamos. Por isso nos é tão difícil a vida espiritual. Por isso o inegociável nos é tão estranho. Uma nobre claridade brilha docemente em nós/ E quer ser acolhida no ócio fiel (Hadewijch). O ócio não é sinónimo de preguiça, inércia, mas refere-se ao otium no sentido de não estar preso a negócio nec-otium, portanto à disposição de uma acção livre, que tem o móvel da sua acção a partir de dentro de si mesma. Em negócios andamos sempre metidos (com Deus e os outros). É a partir daí que o vazio de um cálice pronto a receber o precioso vinho da hospitalidade nos pode acenar para o que é a afeição pura da cordial recepção grata do ser humano”.  

Habitar permanentemente o espaço e o tempo do negociável é iludir a liberdade e desiludir o coração. Aquilo que é absolutamente necessário é ancorar a vivência do tempo, que é aberto e progressivo, à sua potencialidade máxima. Talvez fosse isso, mutatis mutandis, em que pensava Oscar Wilde quando escreveu que “um mapa do mundo que não inclua Utopia, não merece que lhe demos uma vista de olhos sequer, pois exclui o país em que a Humanidade está constantemente a desembarcar”. Talvez fosse essa intuição fundamental de Paulo, quando se dirigia aos Colossenses: “Uma vez que ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo se encontra, sentado à direita de Deus; afeiçoai-vos às coisas do alto, não às da Terra. Pois vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, se manifestar, então também vós vos haveis de manifestar com ele na glória”.

José Pedro Angélico, 4 de agosto de 2019

Da oração

[antes de ir à questão da oração]

De onde venho? : da Foz do Douro, que vemos daqui do adro, depois d’Arrábida, com o interesse de que lá, para o controlo da Barra, o ‘arquiteto’ Francesco da Cremona, no cinquecento italiano, projetou a torre-capela de São Miguel Arcanjo; o mesmo Francesco da Cremona que trabalhou no projeto desta igreja rotonda onde nos encontramos, no então Mosteiro do Salvador, ia o ano de 1542. Assim completava o programa de monumentalização da barra, com o domínio da paisagem do centro histórico.

Venho, portanto, aos domingos, da Foz do Douro para a Serra, subindo o rio, à nascente, com esta metáfora de que a celebração eucarística dominical é isto mesmo, renascimento, porque é preciso renascer de novo, como Jesus desafiava a Nicodemos «Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer do Alto não pode ver o Reino de Deus.» (Jo 3,3). Parece um caminho contrário à lei natural, pois as águas correm para a Foz, mas assim é o desafio ao cristão, remar contra corrente, rumo à nascente, renovando o nosso Batismo, pelo menos na dinâmica dominical.

Cresci na Foz do Douro, dizia, lá numa casa cor-de-rosa onde em criança tive a primeira intuição do que é a oração:

Do tempo em que a grande brincadeira era a espionagem, qual polícia detetive, por entre aquela [então] enorme casa, fica-me uma imagem muito especial.

No silêncio do seu quarto, a mãe recolhia-se num mistério do ‘por detrás da cortina’, numa transparência sedutora, sentando-se no chão, ao vão da janela, sob o conforto da parede grossa de meio metro, de casa antiga. E ficava…

Esta imagem, como outras, foi para mim rica de catequese. Marca pela interrogação d’o que é que a leva a fazer isso?

Agora, inspirado pelo nosso presbítero que diz que ponhamos o Pai-nosso na boca das nossas crianças, rezo-o com a Maria do Carmo de dois anos ao colo, antes de a pôr no berço. Já com o Henrique, de sete, e com a Maria, de dez, é mais difícil, já nos são mais fugidios…

O Pai-nosso dirá do essencial da nossa Fé, começando por evidenciar por um lado a relação filial que temos com Deus que é próximo e carinhoso e que por isso mesmo chamamos de Abbá = Pai e por outro lado que esta relação é para ser vivida e partilhada em comunidade, é nosso não meu; duas dimensões, a pessoal e a comunitária que na oração também existem, oração pessoal e oração comunitária. A comunitária acontece aqui na Missa onde nos reunimos todos para sermos devolvidos à missão, ou à semana por exemplo quando alguns de vós se reúnem com o Torne.

Mas e a oração pessoal, aquela que cada um de nós experimenta no seu quarto, para lá da cortina, na ombreira da janela, charneira entre o mundo interior e o mundo exterior?

«Tu, porém, quando orares, entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai, pois Ele, que vê o oculto, há de recompensar-te.» (Mt 6,6)

Como rezo? Quanto rezo? Sei rezar?

Partilho dois pontos: 1) que se aprende a rezar rezando, experimentando, treinando: exercitando. Técnicas, havê-las-á – mas ultimamente é a entrega de um tempo meu ao Senhor que vale, não importará o como, mas “este tempo que Te entrego Senhor, aqui e agora, que independentemente das consolações e desolações, sugestões e distrações, é para Ti, só isto vale” e isto já é rezar. 2) que se reza conversando com Jesus, como entre amigos, recomenda Santo Inácio de Loyola nos Exercícios Espirituais; e, curioso, recomenda terminar com o Pai-nosso!

«[a oração] faz-se, propriamente, falando, assim como um amigo fala a outro [amigo], (…) ora pedindo alguma graça, (…) ora comunicando as suas coisas e querendo conselho nelas. E dizer um Pai Nosso.» (EE54)

A oração vale a pena! É tempo útil?! Sim, mas nesta medida: a oração é lugar de reconciliação, comigo mesmo, com os outros, com o próprio Deus – que até com Ele me zango, neste quotidiano por vezes tonto; a oração é lugar de verdade, de humildade, de esperança, de avanço, de renascer de novo. A oração é pessoal, mas também pode ser partilhada: eu, com a minha mulher Marta, partilho, partilhamos, no pequeno grupo de dinâmica quinzenal que é a CVX – Comunidade de Vida Cristã. A oração vale a pena!

Pedro Castro Cruz, 28 de julho de 2019

Ao nosso encontro

Ain Vares

Há duas semanas ouvíamos que Jesus tinha enviado 72 discípulos e que exultou de alegria quando regressaram. Há uma semana escutamos a parábola do bom samaritano. Hoje vemos a Jesus ser recebido por Marta em sua casa: esta servia-O e Maria escutava-O. Estes três episódios são um tríptico do capítulo 10 de Lucas que nos mostra imagens distintas de como o Senhor se encontra com o seu Povo. Hoje há um encontro com duas mulheres, irmãs de Lázaro, e até lhes sabemos os nomes! É um encontro inesperado, numa cena de vida quotidiana. É nosso tempo cronológico (chronos) que o Senhor vem ao nosso encontro abrindo-o ao tempo de Salvação (Kairós). Todas as leituras nos falam do Encontro Inesperado! É na nossa história, nesta vida, que o Senhor vem ao encontro e de uma forma inesperada.

Ao ler o Evangelho de hoje lembrei-me uma história dos Padres do deserto. Diz assim:

«Um irmão foi visitar o pai Silvano no monte Sinai e, vendo que os seus monges estavam a trabalhar, disse ao ancião:
Não trabalheis por um alimento que perece, Maria escolheu a melhor parte (Jo 6, 27; Lc 10,42).”
O pai Silvano disse ao seu discípulo Zacarias:
“Dá um livro a este irmão e fecha-o numa cela sem mais nada.”
Chegada a hora da refeição o dito monge esperou que alguém o viesse chamar para comer, mas vendo que tal não sucedia, perguntou a Silvano:
“Pai, os teus irmãos não comem?”
Perante a resposta afirmativa de Silvano, perguntou então porque não o tinham chamado, e o ancião respondeu:
“Porque tu és um homem espiritual e não necessitas deste alimento, mas nós que somos carnais queremos comer e por isso trabalhamos. Em contrapartida, tu escolheste a melhor parte, lês todo o dia e não queres comer o alimento material”.
Perante tais palavras o monge prostrou-se por terra pedindo perdão. Silvano disse-lhe então:
“Também Maria necessita absolutamente de Marta; e é por mérito de Marta que também Maria é louvada”».

(In Padres do Deserto, org. Isidro Lamelas, Lisboa 2018)

«Maria necessita absolutamente de Marta; e é por mérito de Marta que também Maria é louvada». Lembra-me São Paulo quando diz na primeira carta aos Coríntios «Se todos fossem um só membro, onde estaria o corpo? Há, pois, muitos membros, mas um só corpo. Não pode o olho dizer à mão: “Não tenho necessidade de ti”, nem tão pouco a cabeça dizer aos pés: “Não tenho necessidade de vós”».

José Augusto Mourão, frade dominicano, diz que «o encontro reconhece-se pelos seus efeitos no corpo. O que de facto somos, nunca o encontraremos na projeção dos nossos pensamentos». Mourão, quando aqui fala de corpo, refere-se ao nosso corpo biológico e não “ao corpo que é a Igreja” de que nos fala Paulo nas suas cartas. Quem nos trazem hoje as Escrituras? Abraão, Sara, Paulo, Marta e Maria. Cada um deles encontrou-se com Aquele que não anuncia a hora, que irrompe sem avisar. Como reagiu Abraão? Diz-nos o livro dos Génesis que Abraão, cabisbaixo, ergueu os olhos, correu ao Seu encontro, prostrou-se por terra e fez festa. Abraão e Sara, como lhes prometera o Senhor, tornaram-se fecundos como as estrelas do céu. E Paulo? Paulo, segundo as suas próprias palavras, tornou-se ministro do corpo de Deus, anunciando que Deus é fiel à sua Promessa. E Marta e Maria, as irmãs de Lázaro? Marta recebe-O em sua casa e serve-O. Maria senta-se aos seus pés e, como judia que reza o Shemá, escuta-O. Com Abraão, Sara, Paulo, Marta e Maria fazemos parte do Corpo que continuamente ressuscita.

É na nossa história, no dia-a-dia, na nossa rotina, nas nossas feridas, nos nossos desejos, nas nossas derrotas, quando nos rimos de nós próprios, nos olhares cabisbaixos, a tratar dos filhos – quero acreditar também que a mudar as fraldas – a fazer o almoço e depois juntos à mesa – e não «na projeção dos nossos pensamentos» que Deus vem ao nosso encontro, ao encontro da sua obra que era muito boa. Carlos Maria Antunes, monge cisterciense, diz-nos a respeito:

«Precisamos da ternura e da compaixão infinita de Deus para aprender a olharmos com essa mesma ternura e compaixão. Esta é a grande dádiva daquele que irrompe na nossa vida sempre e como nunca esperávamos. Ele é o Inesperado! Oxalá se gravasse em nós, de uma vez por todas, que a perfeição de Deus e, portanto, a nossa perfeição, não é a impecabilidade senão a misericórdia».

A primeira pergunta que o autor bíblico põe na boca de Deus continua a atravessar o jardim da criação e a ecoar pela nossa história: «Onde estás?».

Adelaide Miranda, 21 de julho de 2019

O próximo

Uma vez um doutor da Lei fez uma pergunta a Jesus, para o experimentar: “Que fazer para ter a vida eterna?” (Lc 10,25-26). E Jesus retribuiu-lhe com outra pergunta: “Que está escrito na lei? Como lês” (Lc 10,26).

 — Tenho de explicar que os chamados doutores da Lei eram laicos letrados que conheciam e ensinavam bastante bem a Escritura no pátio do Templo. Com 12 anos, Jesus, “encontraram-no no Templo, sentado entre os doutores, a ouvi-los e a fazer-lhes perguntas” (Lc 2,46) —.

Outro doutor da Lei fez-lhe também uma pergunta e Jesus respondeu-lhe: “Ama o Senhor, teu Deus, … e o teu próximo…” e também com a parábola do bom samaritano (10,30-36).

Com ela, Jesus não fez teoria nenhuma. Pegou é nas dificuldades de Israel daquele tempo e atacou as feridas de quem se julgava justo: um sacerdote e um levita, ambos judeus. Um sacerdote, pessoa importante, e um levita, um coitado ministro inferior que tratava das coisas (assim como eu e um dito ministro aqui do altar ou da comunhão”!).

A questão do pobre é hoje uma questão teologal.

Desde logo abandonar o pobre à sua sorte é passar ao lado da imagem e semelhança de Deus: sempre que o fizeste a um destes mais pequeninos, a mim próprio o fizeste  (Mt 25,40)

Mas quando se fala do pobre não se refere exclusivamente o pobre de bens materiais. O verdadeiro pobre é agora um pobre do projeto humano, aquele para quem o futuro deixa de ser um motivo de esperança capaz de modificar o presente. O homem pobre de bens materiais, esse tem quase sempre uma grande dignidade e uma grande esperança: quem de nós não é filho de gente pobre? Mas um homem antropologicamente pobre – e há muitos destes que são filhos de ricos – é muito mais pobre que o primeiro. Por isso, o pobre não pode mais ser considerado o destinatário da caridadezinha. É que dar dinheiro aos pobres, qualquer um dá. E daí para a frente, nada mais haverá para dar a um pobre?

Jesus era amigo de (materialmente) pobres, de pecadores, de doentes e de mulheres. Mas o que reunia estes quatro grupos de pessoas não era o fator económico, mas o fator marginalização. Por outro lado, o mesmo Jesus entrou em conflito com outros quatro grupos, os fariseus, os letrados (escribas), os senadores (anciãos) e os sacerdotes. A todos estes, o que os unia não era a riqueza económica (muitos escribas e fariseus não eram ricos), mas a instalação no sistema político-religioso que configurava aquela sociedade.

O que se aproximou, o samaritano, é que foi o próximo daquele que vinha certamente do Templo onde teria ido louvar IAVÉ. O próximo é sempre aquele que se aproxima de alguém: aproximou-se, ligou-lhe as feridas em que deitou azeite e vinho, e, depois de o ter posto em cima da sua própria montada, levou-o para uma estalagem e prestou-lhe assistência.

Esta é a atitude cristã: Próximo é aquele que se aproxima, com respeito e veneração, não para julgar nem para castigar, mas para salvar, próximo dos corações abatidos, como diz o Salmo 33.

Os pobres, sejam quais forem, mas de uma maneira particular os antropologicamente pobres são hoje uma grande questão também teologal. A Igreja tem de ser um grande lugar de solidariedade; mas pode efetivamente distanciar-se do mundo dos pobres. Por isso, os pobres, quer se queira quer não, foram sempre, uma pedra no sapato da Igreja, continuam a exigir-lhe que repense o seu lugar e que-fazer na sociedade e a sua maneira de ser e de estar no mundo.

Mas isto não basta. A Igreja tem também de evangelizar o próprio mundo económico, inspirando-lhe princípios solidários, da empresa à decisão política. Não é só levantar a voz para denunciar as injustiças; não é só também lutar pela mudança de estruturas. Há que combinar denúncia e anúncio, inspirando assim a criação de práticas e costumes que tornem o mundo e o tempo mais fraternos. Porque a conversão não tem uma dimensão apenas individual; mas parte de decisões individuais.

Arlindo de Magalhães, 14 de julho de 2019

Povo de Profetas

Joseph Mallord William Turner
Snow Storm: Steam-Boat off a Harbour’s Mouth
c. 1842

Desta vez, Jesus enviou 72 discípulos a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir. E digo desta vez porque de outra vez tinha enviado apenas 12, a pregar o Reino de Deus e a curar os enfermos (9,1-6). A uns e a outros, aos 12 e aos 72, deu praticamente os mesmos conselhos: Não leveis nem bolsa, [nem bordão], nem mochila, [nem pão], nem dinheiro, [nem duas túnicas] (Lc 9,3 e 10,4). No contexto da Última Ceia, repetiria isto mesmo, mas então só aos 12 (Lc 22,35/36).

Isto quer, portanto, dizer que Jesus enviou discípulos por duas vezes: uma primeira 12, e outra 72. Nestas coisas, e no contexto bíblico, é sempre preciso reparar no simbolismo dos números. Enviou 12, numa clara alusão às 12 tribos de Israel, a todo o seu povo, portanto, e não apenas à tribo de Levi, àquela a que pertenciam os sacerdotes da Antiga Aliança. Os 72, eram uma clara alusão aos 72 povos que, no contexto da cultura judaica, existiam à face da terra.

Ou seja, Jesus enviou todo um Povo a evangelizar todas as nações da Terra. E de ambas as vezes enviou-os [pelas aldeias] a anunciar que Está perto o Reino de Deus (Lc 10,9).

Porque a Igreja não é um Povo que tem Profetas: a Igreja é um Povo de profetas. A Igreja de Jesus cumpre o antigo desabafo de Moisés: Oxalá que todo o Povo do Senhor fosse um Povo de Profetas (Nm 11,29). Por isso, o Vaticano II deixou dito que todo o Povo Santo de Deus participa da função profética de Cristo (LG 12); e acrescenta um pouco à frente: a todo o discípulo de Cristo incumbe o encargo de difundir a fé, cada um à sua medida (LG 17). De resto, como sabemos todos, a própria Liturgia batismal deixa tudo muito claro desde o início: Deus … te regenerou pela Água e pelo Espírito … para que … sejas para sempre membro de Cristo sacerdote, profeta e rei.

É preciso definitivamente termos ideias claras. Pensa mal quem pensa que, na Igreja, só aos ministros ordenados compete continuar a missão profética de Jesus. De maneira nenhuma: compete, sim, a todo o novo Povo de Deus, à Igreja que é, pelo Batismo, um Povo de Profetas e um Povo em que reina uma igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à atuação, comum a todos os crentes, em favor da edificação do corpo de Cristo (LG 32), uma igualdade entre todos os batizados que constitui radicalmente este sacramento universal de salvação que é a Igreja.

E então os ministros ordenados, os Bispos, os presbíteros e os diáconos? Sim, a eles compete também. E por duas razões: primeiro, e antes de mais nada, porque são batizados como todos os mais batizados, isto é, são membros deste corpo de profetas, de sacerdotes e de reis; e depois, porque pela graça do sacramento da Ordem são especialmente associados ao ministério e função de Cristo-Cabeça-da-Igreja.

Os ordenados não são uma espécie de funcionários superiores a quem é pedido um empenhamento exclusivo ou maior na missão da Igreja. Não! Pelo Batismo, somos todos associados ao Corpo de Cristo e à sua missão; e, pelo Sacramento da Ordem, alguns são especialmente configurados com Cristo-Cabeça na sua função de congregar e presidir à Igreja de Deus, digamos que especialmente vivificados pelo Espírito de Cristo para o crescimento do Corpo

Cada vez mais é preciso clarificar teologicamente estas coisas, e estas categorias, para que percebamos que passou já o tempo de as confundir referindo ao ministério presbiteral em exclusivo o que compete a todo o Povo de Batizados. Basta de fazer da Igreja um rebanho de ovelhas mudas e mansas conduzidas por pastores que tudo podem e em tudo são [in]competentes.

É por isso, meus irmãos, que há muito penso e digo que só quando todo o Povo de Deus tomar em mãos a sua missão, a Igreja de Deus do nosso tempo poderá ter os presbíteros que merece e de que necessita.

Há pouco mais de 15 dias, os jornais noticiavam que a Igreja Católica vai ponderar a ordenação de homens casados e que o Papa está disponível para abrir a porta à ordenação de homens casados, assim os bispos o requeiram.

Depois dos homens casados virão as mulheres, depois de presbíteros as diáconas ou diaconisas. Umas linhas mais à frente do documento em que o Papa Francisco diz da possibilidade de casados, reconhece que a presença feminina na igreja não tem sido devidamente valorizada, pelo que “se reclama o reconhecimento” do seu papel. “Também se propõe que as mulheres tenham garantida a sua liderança, assim como espaços cada vez mais amplos e relevantes na área formativa: teologia, catequese, liturgia e escolas de fé e política”, precisa a Igreja. Diz também o Papa que as mulheres devem ser ouvidas, têm de ser ouvidas, consultadas e participantes no processo de tomada destas decisões.

Ainda não li o documento, mas espero, antes de morrer, ouvir e ver tudo isto, ao menos a começar. As minhas irmãs não são menos que eu, nem eu sou mais que elas.

Uma outra breve palavra.

Espantoso esse homem chamado Paulo, o perseguidor da Igreja nascente mas que rapidamente se pôs do seu lado. Apóstolo dos gentios, passados 2.000 anos, ainda nos espanta. Convertido, explicava tudo: com a sua voz e a sua escrita, ensinava os pagãos, os judeus, os gregos, os romanos (6,3-6)…, que o Batismo é uma espécie de representação da morte e ressurreição de Jesus.

Ele que morreu na cruz e desceu depois à terra no sepulcro mas que seu Pai, o Deus de Israel, o retirou ressuscitado do buraco para viver uma vida nova, assim um homem velho (no início a igreja só baptizava adultos, ie, idosos), mergulhado na água (baptismal), morre para essa velhice e ressuscita homem novo, para uma vida nova, homem novo a viver à luz de Cristo e dele revestido.

Hoje em dia, já não é assim. Hoje em dia, baptizar bebés… é um costume! Não foi isso que Paulo ensinou! Tempo virá em que a igreja voltará à verdade: baptizar, sim, depois de morrer o homem velho e de ressuscitar de novo.

Vamos, portanto, como é costume, baptizar o Daniel. Queremos água, elemento fundamental para que possa haver vida. Água, roupa branca, luz, sinal de Cristo, e medicamento (óleo). E cristãos adultos, os pais sempre, padrinhos e madrinhas…, para já falam por ele.

Arlindo de Magalhães, 7 de julho de 2019

Viajar

A história das civilizações ficou sempre escrita nos caminhos, na calçada romana, no Caminho de Santiago, no Caminho das Cruzadas, na Rota da Seda … A história bíblica, a do Antigo e do Novo Testamento, deixa perceber um povo em contínua peregrinação: “Meu Pai era um arameu errante, baixou ao Egipto e os egípcios oprimiram-no. Mas Deus tirou-os de lá com um braço forte e trouxe-os para esta terra” (Dt 26,5-10).

De alguma maneira se descreve a trajetória do Povo de Deus como a de um povo em contínuo movimento. O Novo Testamento noticia uma série de viagens: Maria vai à montanha da Judeia (Lc 1,39), depois a Belém (Lc 2,3-7), foge para o Egipto e regressa a Nazaré (Mt 2,13-23). Jesus andou por todo o lado e, no fim, subiu a Jerusalém (Lc 9,51…). S. Paulo é já há muito tempo considerado o maior dos andantes europeus: percorreu todo o Médio Oriente Norte, subiu ao território hoje Turquia e, navegando para Ocidente, passou em Creta e Malta…, e logo estava em Roma…

Sempre este viajar foi no tempo antigo importante ao homem: a liberdade, a educação, a descoberta, uma outra vida, etc. Mas, ao lado positivo do viajar aparecia o negativo: a insegurança, o desastre, perder-se o viandante, a dificuldade do caminhar…

Mas com o tempo aparece o tráfico (ou tráfego). Esta palavra, muitos pensarão logo em viagem, em deslocações rápidas e frequentes, divertidas e úteis… Não, tráfico é muito mais, constitui um fenómeno social, histórico, económico e jurídico. Nele — no tráfico — imerge o homem e toda a sociedade. O tráfico é uma questão e um problema social. Não bastam soluções normativas, castigos legais, etc, são necessárias soluções morais.

O automóvel não é uma máquina de matar nem para matar. Creio que há muito poucas pessoas que estejam convencidas que conduzir implica um risco, que conduzir mal ou imprudentemente é um possível homicida ou suicida. Espanta a contagem das vítimas dos acidentes de viação a nível nacional ou mundial!

Nós, os cristãos, entendamos que a estrada é um lugar teológico-moral. Que é que isto quer dizer?

O condutor tem como modelo esse grande viajante que foi Jesus pelos caminhos da Palestina. Hoje continua a viajar porque, disse ele, “eu estarei convosco sempre convosco, até ao fim dos tempos” (Mt 28,20). Com a caridade desaparecem automaticamente todas as transgressões do código; com a caridade se facilitam as estradas aos irmãos. A caridade é inimiga irreconciliável da imprudência, da temeridade e da insensatez” (Carta pastoral dos Bispos da Bélgica, 1966)

“O condutor, consciente das suas limitações e da importância da sua vida e da dos outros, tem de conduzir com prudência. A prudência na maneira de conduzir exige sempre um perfeito domínio de si e do carro para poder prever e remediar todos os inconvenientes que aconteçam. O condutor tem permanentemente de prestar atenção a todas as circunstâncias que possam tornar mais difícil e perigosa a circulação” (Bispos espanhóis, 1966)

”Os condutores, conhecedores do Código da Estrada, têm de cumprir por Justiça os direitos e deveres que lhe competem. A prática desta virtude impõe ao condutor importantes normas de comportamento: não pôr em perigo nem a sua vida nem a dos outros, não atentar contra os direitos do próximo, e não prejudicar os seus bens materiais. É preciso prestar atenção a todas as circunstâncias que podem tornar mais difícil ou mais perigosa a circulação” (Vicente Hernández García)

“Nenhum transeunte (pedestre, ciclista, motociclista, motorista) pode desprezar o Código da Estrada sob pretexto de que o mesmo contém leis meramente penais. Nesta matéria de tão alta importância, a lei civil nada mais faz senão interpretar em minúcias a Lei de Deus. Nenhuma ignorância pode servir de escusa, nem outra interpretação pode ser admitida senão a da prudência e a da caridade, as quais chegam a ultrapassar a letra da lei, a fim de serem mais fiéis ao seu espírito” (a afirmação é do Pe. Häring, um dos maiores do Vaticano II).

Ouviste, Arlindo?: Caridade, Prudência, Justiça.

Arlindo de Magalhães, 30 de junho de 2019

O Tempo

A Cronologia (o estudo do tempo) é uma das invenções fundamentais da espécie humana! Para compreendermos esta necessidade tão quotidiano é preciso recuar à aurora da humanidade.

Os caçadores do Período Paleolítico, à volta de 3 milhões de anos — era a Idade da Pedra —, olhavam a posição dos astros, do Sol e da Lua sobretudo…

Mas o homem primitivo percebeu que estes fenómenos, porque eram periódicos, ajudavam a contar o tempo. Por isso, estes fenómenos naturais tornaram-se a ferramenta mais favorável naquele momento onde despontava a aurora da nossa civilização. E estes fenómenos periódicos passaram a determinar ao homem primitivo as estações do ano, os meses e os anos.

Descobertas arqueológicas mais ou menos recentes indicam que em todas as civilizações antigas, desde os primeiros hominídeos se preocuparam com a medição do tempo, tenha sido por motivos religiosos, agrícolas, pastoris ou de estudo dos fenômenos celestes (uma primeira astronomia).

Por aqui fico que disto sei nada! Mas sei ainda que, depois dos Sumérios, os Egípcios também tinham um calendário que utilizava os ciclos das fases da Lua, e repararam que cada 365 dias aparecia a estrela Sirius e o seu rio Nilo gerava uma inundação, fenômenos celestes que determinavam o período de fertilidade da terra e o comportamento dos animais, grande preocupação de todos os povos.

Com o passar dos anos, muitos instrumentos para contar o tempo surgiram: relógios de areia, de sol, de água, … Até chegar aos modernos relógios atômicos. Mas isto é outra história!

Apenas e só uma palavrinha pelo tempo cronológico. Outra pelo Tempo Histórico.

Os Judeus contavam o Tempo a partir da criação do Mundo ocorrida 6.000 anos antes. Assim julgavam (ver o Livro do Génesis, cap. 1). Os Muçulmanos tinham como referência o ano em que Maomé fugiu de Meca para Medina, isso ocorreu 622 anos depois do nascimento de Cristo. Em países como a Arábia Saudita este é o calendário observado. Os Cristãos registam o que aconteceu antes de Cristo (aC) e depois do nascimento de Cristo (dC).

A cultura europeia divide o tempo em Pré-História, Idade Antiga, Média ou Moderna.

Foi sempre muito difícil medir o tempo.

Mas afinal o que é o tempo, coisa assim tão difícil de contar? Sempre que chego aqui vou a Sto. Agostinho que, sobre ele, escreveu uma daquelas páginas que se leem vezes atrás de vezes, é assim como uma Sonata de piano de Mozart ou uma Sinfonia de Beethoven, a gente ouve 1, 2, 3, 20, 30 e mais vezes, e nunca cansa, tem sempre para ouvir o que nunca ouviu, e sempre que ouve dá graças a Deus e ao Homem.

Santo Agostinho dizia assim do tempo:

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir, por palavras, o seu conceito? … Se ninguém mo perguntar, eu sei; mas se o quiser explicar a quem me faz a pergunta, já não sei. Mesmo assim, atrevo-me a dizer, sem receio de ser contestado, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro; e se agora nada houvesse, não existia tempo presente. De que modo podemos dizer que existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –, se o passado já não existe e o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se ele fosse sempre presente e não passasse a passado, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar a pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual ele deixa de existir?

A reflexão de Santo Agostinho alonga-se ainda por mais páginas e páginas das suas Confissões, mas esse não é hoje o nosso assunto.

Estamos a entrar no Solstício do Verão – o dia do solstício é o dia maior do ano, antigamente pensava-se que a 24 de Junho, hoje em dia sabemos que a 21 ou 22 -, dia que se contrapõe ao Solstício do Inverno, o dia mais pequeno do ano, antigamente a 25 de Dezembro.

Hoje, civilização urbana e técnica, não ligamos nada a estas coisas, mas antigamente eram muito importantes. Estes dias carregavam-se de um profundíssimo sentido religioso – quem está por detrás disto tudo, desta regularidade temporal?

Por isso, em todas as religiões estes dias deram festas religiosas. O cristianismo nascente já as encontrou. E – inteligente! – em vez de as combater, cristianizou-as: ao Solstício de Inverno entregou o nascimento de Jesus, e ao de Verão o de S. João, o precursor.

Porquê? Boa pergunta: não se sabe bem, mas tudo terá a ver com a dupla afirmação de Jesus (At 1,5) e de Pedro (11,16), segundo a qual João batizou com água, mas vós sereis batizados no [fogo do] Espírito Santo. E, de facto, em noite de S. João, o calor do Verão e da fogueira, e a frescura da orvalhada ou da água. Ainda amanhã, em muitos casos, a noitada termina com um banho em qualquer fonte ou na praia da Foz. E não é só no Porto; estes rituais cumprem-se religiosamente em muitos lugares europeus.

Com toda esta simbólica, a festa de S. João carregou-se de um forte sentido utópico, como aliás a do Natal, que ambas vinham do paganismo. As festas dos Solstícios eram, nas primitivas culturas europeias, as grandes festas de uma fraternidade desejada, mas não possível. Em Roma, por exemplo, no Solstício de Inverno, os escravos passavam momentaneamente a senhores e vice-versa, os senhores a servos dos escravos a quem serviam à mesa. O que é ainda hoje, no Porto, a noite de S. João? Presidente da República que se preste, nacional ou estrangeiro, leva e dá com o alho-porro como todos os mais cidadãos, e não é precisa segurança. Noite de uma fraternidade utópica, apesar de tudo. Isaías dizia tudo na primeira leitura: o lobo será hóspede do cordeiro e a pantera deitar-se-á junto do cabrito…

Em noite de S. João, a Utopia, anterior ao tempo cristão, como que antecipava a Boa Nova de Jesus: todos os homens se entendam e confraternizem, víboras e touros, leões e ursos, com martelinho ou alho-porro, à volta de uma fogueira ou mergulhando num apreciado banho, todos, porque todos somos irmãos.

Antigamente, isto foi só utopia. Mas nós, os cristãos, sabemos que tem também de ser prática. E por isso seremos perguntados, como diz Mateus 25 (“quando te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede de beber? Quando te vimos peregrino e te acolhemos?”).

Arlindo de Magalhães, 23 de junho de 2019

O Espírito e as Comunidades

Peter Warden, ‘Pentecost’, 1985

As comunidades, quaisquer que sejam, são como as pessoas: todas iguais, todas diferentes. Se têm vida, cada qual tem a sua peculiaridade. Se a não têm, são cadáveres.

A de Jerusalém, por exemplo, foi sempre particularmente sensível aos pobres: “tinham tudo em comum “ (At 2,44) e “entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. A de Antioquia que era uma cidade pagã, embora ali se tenham refugiado muitos discípulos de Jesus, fugidos à perseguição que se armou em Jerusalém (At 8,1). Em Corinto, a grande comunidade dos tempos apostólicos, cidade cosmopolita e de uma imensa riqueza cultural, riquíssima em carismas e ministérios, mas que viveu porventura desafios maiores que qualquer outra (1Cor 1,10).

E Roma? Foi na capital do império que tombaram as duas colunas da Igreja, Pedro e Paulo. Mas não foi por isso que a Igreja “que preside na região dos romanos” emergiu no contexto das muitas Igrejas que já existiam. Não, foi porque “aliviais a pobreza dos necessitados e apoiais os irmãos que vivem nas minas”, escreveu Dionísio de Corinto, bispo, numa carta enviada à Igreja de Roma, ali pelo ano 170. Este é o verdadeiro bilhete de identidade da Igreja de Roma. 

Quantas comunidades mais? Éfeso (“conheço tão bem as tuas obras, as tuas fadigas e a tua constância”, (Ap 2,1), Esmirna (“és pobre, o que é uma riqueza!”, Ap 2,9), Pérgamo (“minha testemunha fiel”, Ap 2,12-13), em Tiatira (“Conheço as tuas obras a tua fé  e a tua dedicação”, Ap 2, 2,19), Sardes (“tens fama de estares viva mas estás morta”, Ap 3,1), Filadélfia (“tu guardaste a minha palavra”, Ap 3,8), Laodiceia (“não és fria nem quente, és morna”, Ap 3,15).

E quantas mais?

Por tudo isto é que “o Espírito do Senhor encheu o universo”, ele que ”dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável providência” (LG 26). Por isso é que “em toda a terra os homens serão estimulados à esperança viva para que finalmente sejam recebidos na paz e na felicidade infinitas, na pátria que refulge com a glória do Senhor” (GS 93).

Porque o Espírito do Senhor é derramado sobre toda a terra, sobre toda a carne e sobre todo o tempo é que Jesus pôde dizer ao escriba: “Não estás longe do Reino dos Céus!” (Mc 12,34). E não disse ele ao centurião?, um pagão: “Nunca em Israel encontrei semelhante fé!” (Mt 8,10)?, acrescentando de seguida: “Muitos virão, do Oriente e do Ocidente sentar-se à mesa com Abraão, Isac e Jacob, no Reino do Céu” (Mt 8,12)? E a Zaqueu, não acabou também por chamar-lhe “filho de Abraão” (Lc 19,9)? E não foi um soldado romano o primeiro a reconhecer que “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39)? E de Cornélio, outro centurião, outro pagão, não nos dizem os Atos dos Apóstolos que, muito antes de ouvir falar de Jesus, já levava Deus a sério, tanto que as suas orações e esmolas subiam à presença de Deus? (At 10,2 e 4). É melhor parar por aqui pois que os Atos dos Apóstolos, para contarem como os discípulos de Jesus se abriram progressivamente aos pagãos, narram mais acontecimentos que reflexões. Cumpria-se a profecia: “Muitos virão, do Oriente e do Ocidente…”.

É que “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8). O Espírito de Deus não está aprisionado por nada, nem amarrado a nada. Deus está em toda a parte – aprendemos no catecismo – e com ele o seu Espírito, que é Espírito de Deus. A misteriosa realidade do Espírito Santo, que é o Espírito de Deus e de Jesus — ele “procede do Pai e do Filho”, como diz o Credo —, não se deixa manipular por nenhuma Igreja nem por nenhuma teologia, por nada nem por ninguém.

Durante muito tempo, na Igreja, as coisas passaram-se como se o Espírito de Deus fosse dado apenas a alguns, e muito poucos. Aos outros competia apenas obedecer aos monopolistas. Mesmo assim, foi sempre muito difícil explicar certas coisas: chamassem-se Francisco de Assis ou Ozanam, João XXIII ou o apelo dos pobres e dos sinais dos tempos. O Papa Francisco é um exemplo claro: por isso sofre uma oposição por vezes frontal. Já quando o Papa Leão XIII (1878-1903) falou das “Coisas Novas” (Rerum Novarum), pela Igreja adiante muitos ou até quase todos rezaram pela sua conversão!

Como difícil foi, no Ocidente, perceber “o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2)! Ou não acreditamos que o Espírito é dado às Igrejas? Por isso há muitas coisas que “competem às comunidades cristãs” (OA 3) mais que aos cristãos tomados individualmente. Não me sai nunca da cabeça o que diz o Livro dos Atos (15,28) a propósito das resoluções tomadas em Jerusalém: “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…”. João explicaria: “O dom do Espírito permanece em vós. Não tendes por isso necessidade de que ninguém vos ensine. O Espírito que recebestes de Jesus ensina-vos todas as coisas. E ele é verdadeiro e nele não há engano” (1 Jo 2,27). Está aqui refletido o difícil equilíbrio entre a dimensão institucional e carismática da Igreja: e nenhuma delas pode abafar a outra. Por isso, nunca esquecer quanto, de Mateus a Paulo, de João ao Apocalipse, se nos diz como, na Igreja apostólica, havia consciência de que o Espírito era dado às comunidades.

Estas coisas não se acreditam sem mais; experimentam-se e por isso se acreditam, “Viu e acreditou” (Jo 20,8): no crer, o ver é muito importante, como já notava o evangelista João.

Ao longo da nossa história – Serra do Pilar – temos visto muitas coisas. Será a nossa cabeça coisa assim tão importante para as explicar? Embora com uma afirmação seca, sequíssima, das mais esqueléticas do Credo (o que é significativo), eu “Creio no Espírito Santo”.

As comunidades, quaisquer que sejam, são como as pessoas: todas iguais, todas diferentes. Se têm vida, cada qual tem a sua peculiaridade. Se a não têm, são cadáveres.

Uma breve (outra) palavra

Já São Paulo explicava aos Romanos (6,3-6) que o Batismo é uma espécie de representação da morte e ressurreição de Jesus.

Assim como ele morreu na cruz e desceu depois à terra no sepulcro, donde seu Pai, o Deus de Israel, o retirou ressuscitado para uma vida nova, assim o batizado, mergulhado na água, morre para o homem velho e ressuscita homem novo, para uma vida nova a viver à luz de Cristo e dele revestido. Precisamos, portanto, de água, causadora de morte, é verdade, mas elemento fundamental para que haja vida, de roupa branca, que signifique tanta novidade, e de luz, que seja sinal de Cristo.

Isto é o Batismo. Isto celebrava a Igreja, nos seus primórdios, na grande noite pascal. Isto começou a fazer a Igreja na manhã do primeiro dia pascal, quando começou a batizar os recém-nascidos, filhos de cristãos.

Arlindo de Magalhães, 9 de junho de 2019

Atos dos Apóstolos

Livro dos Atos dos Apóstolos, Manuscrito MS G.67 (Egipto, séc. V – Morgan Museum, Nova Iorque)

O Livro dos Atos dos Apóstolos é um formidável livro para o Tempo Pascal: como temos visto.

No capítulo 6, foi, em Jerusalém, o grito das viúvas gregas: sentiam-se descriminadas perante as de origem judaica. Reclamaram e foram ouvidas. Depois o martírio de Estêvão, a perseguição e a conversão de Paulo e, no capítulo 13, em Antioquia da Pisídia, o empurrão dado pelo Espírito a Paulo e Barnabé (13,1-3) para que avançassem para os mundos do paganismo, perante a recusa da Boa Nova por parte dos judeus…

Hoje, capítulo 15, ainda a mesma questão (a Boa Notícia de Jesus o Evangelho — é só para Judeus, ou também para pagãos?), e agora em Antioquia. Em todos os casos, o que entrou em jogo foi a questão da missão da Igreja nascente: só para judeus ou também para pagãos? Em ambos os casos – Antioquia (11,19-30) e Jerusalém (15,4-33) – tudo se resolveu com duas assembleias, uma em Jerusalém e outra em Antioquia.

É verdade que, na de Jerusalém, houve debate e posições contrapostas (“depois de uma longa discussão”, At 15,7); no entanto, no final, conseguiu-se um consenso: “O Espírito Santo e nós decidimos…” (At 15,28).

Um consenso humano, que implicou uma solução de compromisso, isto é, ambas as partes – Antioquia e Jerusalém — cederam alguma coisa: triunfou a posição de não impor aos pagãos a obrigação de circuncisão, mas quanto aos interditos alimentares teve de haver concessões.

Os cristãos de origem grega surgem no Livro dos Atos como um grupo missionário por excelência: a missão da Igreja dirige-se a todos, sem exceção. Os judeus, pelo contrário, têm dificuldade em cortar com o tradicionalismo judaico.

Lucas apresenta a sensibilidade judaica da comunidade de Jerusalém em contradição com as autoridades hebraicas, é verdade, mas ainda em continuidade com a tradição do antigo Povo de Israel: “frequentavam diariamente o Templo” (2,46) onde se reuniam “no pórtico de Salomão” (5,12). Os próprios Pedro e João, um certo dia, “subiram ao Templo para a oração das três da tarde…” – como de costume, subentende-se – e, “estando [aí] a falar ao povo, viram chegar os sacerdotes (do Templo judaico), o comandante do mesmo Templo e os saduceus que, irritados ao ver Pedro e João a ensinar o povo e a anunciar, na pessoa de Jesus, a ressurreição dos mortos, lhes deitaram a mão e prenderam-nos” (3,1-3).

Não foi fácil à Igreja de Jerusalém rebentar com as amarras judias. Portanto, na assembleia que ali se reuniu para dirimir um assunto levantado em Antioquia, debateram-se duas grandes questões: a da circuncisão (11,2), os neocristãos têm de a respeitar?, e a dos interditos alimentares (15,20) também?

E houve nesse debate – em Jerusalém – duas intervenções importantes e diferentes, as de Pedro e de Tiago dito o “irmão do Senhor”.

Pedro, que era um judeu, tinha enfrentado as suas dificuldades: “todos os circuncisados que tinham vindo com Pedro ficaram estupefactos ao verem que o dom do Espírito Santo fora também derramado sobre os pagãos…!!!. Poderei eu opor-me a Deus?” (At 10 e 11).

E Pedro não teve mesmo qualquer dificuldade em explicar-se em Jerusalém: “Se Deus concedeu aos pagãos o mesmo dom que a nós, judeus, por terem acreditado no Senhor Jesus, poderei eu opor-me a Deus?” (11,17). Já mais tarde, na assembleia reunida em Jerusalém, no debate que preparou a resolução hoje lida (2ª leitura), pão pão queijo queijo: “O Espírito Santo não fez qualquer distinção entre os cristãos vindos do paganismo, e nós, vindos do judaísmo. Porque tentais agora a Deus querendo impor aos discípulos um jugo que nem os nossos pais nem nós suportamos”? (15,9-10). Aqui, assembleia de Jerusalém, Pedro refere-se só à questão da circuncisão – nem pensar nisso! – que a dos interditos alimentares, bem!, é uma questão menor, posso ceder! Foi o que fez diante das posições de Santiago.

E Tiago, que pensava a missão, mas apenas na continuidade das instituições de Israel, esse teve mais dificuldade. E para ceder na questão da circuncisão, exigiu que Pedro cedesse na dos interditos alimentares. Assim, no discurso de Jerusalém diz: “Sou de opinião que se não devem importunar os pagãos convertidos a Deus [com essa questão da circuncisão, está bem?, pronto!]. [Mas] Que se lhes diga que se abstenham de tudo quanto foi conspurcado pelos ídolos, pela imoralidade, pelas carnes sufocadas e pelo sangue! [Ao menos isso!]” (15,19-20).

Lucas assiste a todo este debate e faz-lhe a crónica. “O Espírito Santo e nós próprios resolvemos” (At 15,28), todo este problema, seu debate e resolução.

Arlindo de Magalhães, 26 de maio de 2019

Imagem de Deus

Emil Nolde, ‘Cristo e as Crianças’ (1910)

Os três evangelhos sinópticos escreveram-nos os evangelistas Mateus, Marcos e Lucas.

E todos os três, cada um à sua maneira — Mt em 26,17, Marcos em 14,12 e Lucas em 22,7 — explicam que a Ceia Pascal judaica se preparava durante a semana anterior, sobretudo na véspera da Ceia Pascal que se chamava o “dia dos Ázimos” (Dt 16,3). Nessa anterior semana se aprontava o pão ázimo pão sem fermento — ázimo — e se imolava o cordeiro.

Assim ordenava o Êxodo. “Durante sete dias comereis pão sem fermento. No primeiro dia fá-lo-eis desaparecer [o fermento] das vossas casas. Todos aqueles que, nessa semana, comerem pão fermentado, será eliminado de Israel“ (Ex 12,15). Nesse mesmo dia “escolhereis do vosso rebanho um cordeiro ou um cabrito, sem defeito, macho, com menos de um ano”. Isto se fazia no dia 10 (Ex 12,5) do primeiro mês do ano, mês de Abib (donde Tel Aviv). O animal escolhido, que haveria de chegar para todos, “tê-lo-eis depois debaixo do olho até ao dia 14” (Ex 12,5).

No dia seguinte ao “dos Ázimos, era o da festa da Páscoa…, todas as famílias ou assembleias da comunidade de Israel comerão o pão e o cabrito” (Ex 12).

Ao tempo de Jesus, toda esta simbólica se respeita(va) rigorosamente. Segundo Mateus, Marcos e Lucas, Jesus e os discípulos celebravam a Páscoa, respeitando todas as regras. João, evangelista diz simplesmente que tudo se passou “antes da festa da Páscoa” (Jo 13,1).

Seja como for, Jesus percebia já o que se passava e ia acontecer.

No fim da celebração pascal, Judas saiu do cenáculo (Jo 13,31), e então Jesus disse:

— “Agora vai manifestar-se a glória do Filho do Homem, e Deus será nele glorificado.
Mas se Deus vai ser glorificado pelo Filho do Homem, vai o Filho do Homem glorificar a Deus.
O que acontecerá de imediato“ (Jo 13,31).

“Os discípulos não compreenderam isto. Mas, quando se manifestou a glória de Jesus, lembraram-se que estas coisas estavam escritas acerca dele: foi, de facto, precisamente o que lhe fizeram” (Jo 12,16).

Este pequeno texto exige meditação, não explicação nem ensino: Deus manifesta-se em Jesus e Jesus manifesta-nos Deus:

“Pai, chegou a hora!
Manifesta a glória do teu Filho,
de modo que ele manifeste a tua glória
conforme ao poder que lhe deste sobre toda a Humanidade,
a fim de que ele dê a vida eterna a todos os que lhe entregaste.
A vida eterna é que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro,
e a Jesus Cristo, a quem tu enviaste.
Eu manifestei a tua glória na terra,
Levando a cabo a obra que me entregaste para eu realizar.
E, agora, tu, ó Pai, mostra a minha glória junto de ti!
— aquela glória que eu tinha junto de ti,
antes de o mundo existir” (Jo 17, 1-3).

Por mais que Jesus seja “imagem de Deus”, ele mesmo diz que não é igual a Deus: “O Pai é mais do que eu” (Jo 14,28). Jesus sabe e afirma a sua condição de “criatura”, o “primogénito da criação” (Col 1,15). Que enormidade a do que Jesus está a pedir aos discípulos e a todos os seus seguidores: serem capazes de ver Deus num ser humano!

É pedir, não digo, de mais!, porque é forte de mais!

Por mais que o tentemos ou nos esforcemos, o reflitamos ou o meditemos, a verdade é que Deus, um humano não é capaz de o ver. Pela simples razão de que o humano é humano, isto é, é débil, insignificante, feio, impossível, precário, numa palavra um humano é humano,

enquanto que Deus é quem pode dizer “eu sou o que sou” (Ex 3,14), misericordioso (Dt 4,31) e Deus dos deuses (Dt 10,17), “Só tu és Deus”, disse o Salmista (Sl 86,10), …

… e por aqui me fico.

Arlindo de Magalhães, 19 de maio de 2019

Paulo

Romanow Vladimir – ‘The Journey of the Apostle Paul’

Ficara já para trás o tempo dos beijos e abraços, por terras de Jerusalém, já o Sinédrio tinham matado Estêvão que “era certamente de origem grega e o primeiro dos diáconos, homem cheio de fé e do Espírito Santo” (At 6, 8-60), de Santiago, um pouco a mesma coisa (At 12, 1-3), já Paulo tinha passado de perseguidor a convertido, já haviam sido batizados os primeiros pagãos (At 10,44-48), temos agora um Paulo em missão.

Anunciador da Boa Notícia — isto é, do Evangelho, em grego — começou a correr o grande mundo do mundo de então: de Jerusalém à atual terra turca saltou para a grega, pelo Mediterrâneo, pousando nas ilhas de Creta e de Malta, pôs um pé na Sicília e estava já outro na Itália; morreu depois em Roma.

Paulo, grande caminhante e grande pregador! Lucas deixou-nos um resumo do seu grande sermão em Antioquia da Pisíada (At 13, 16-41), digamos que situada no meio do território hoje dito da Turquia.

Grande pregador! Tão grande que, acabado este sermão, à saída, pediram-lhe que continuasse a falar da mesma Boa Notícia no Sábado seguinte. E assim aconteceu; “no Sábado seguinte, toda a cidade se reuniu para ouvir a Palavra do Senhor”!

Conta Lucas que os judeus, vendo que os gentios, também chamados prosélitos, participavam da mesma Boa Notícia, “responderam com blasfémias ao que Paulo dizia” (13,45). E então Paulo e Barnabé responderam-lhes: “Era primeiramente a vós que a palavra de Deus devia ser anunciada. Visto que não a quereis, … nós voltámo-nos para os pagãos” (At 13, 45-46).

Ao ouvirem isto, claro, os pagãos… “cheios de alegria, glorificavam a Palavra do Senhor que se divulgava por todo o ali” (At 13,48).

Os Judeus, vingativos e rancorosos “incitaram as senhoras devotas mais distintas e os homens de maior categoria da cidade a provocar uma perseguição contra Paulo e Barnabé, e expulsaram-nos daquela terra” (At 13,50). Mas “os discípulos estavam cheios de alegria e do Espírito Santo!” (At 13,52).

É que “As minhas ovelhas – disse-lhes Jesus – ouvem a minha voz, eu conheço-as e elas seguem-me. Eu dou-lhes uma Vida que a Morte não dominará! E ninguém as arrancará da minha mão. O Pai que mas deu é maior que todos, e ninguém as pode arrancar da sua mão. O Pai e eu somos um só!” (Jo 10,3).

Arlindo de Magalhães, 12 de maio de 2019

Sinais dos Tempos

Pavel Ryzhenko, ‘Páscoa em Paris’ (2007)

 

Em Jerusalém, era ainda um tempo de beijos e abraços. Era ainda o princípio.

Os Apóstolos realizavam sinais e prodígios entre o povo, era um bodo aos pobres!, o povo falava deles com apreço, cada vez aderia mais gente, traziam os doentes para as ruas e colocavam-nos em enxergas e catres, para que, à passagem de Pedro, a sua sombra cobrisse ao menos alguns deles, e das cidades vizinhas de Jerusalém acorria a multidão. Uma maravilha! Um mar de rosas!

Mas, logo a seguir, alguns Apóstolos foram presos (At 5,17). Claro que foram o mauzão do Sumo-sacerdote e seus sequazes os autores da brincadeira. O único que teve lucidez foi o fariseu Gamaliel, o que haveria de ser o professor de Paulo em Jerusalém (At 22,3), que disse assim: “Homens de Israel, tende cuidado com o que ides fazer! … Não vos metais com eles! Deixai-os em paz! Se a sua iniciativa vem dos homens, cairá por si; mas, se vem de Deus, não tendes nada a fazer!” (At 5,35-39).

E assim aconteceu. Meteram-se mesmo com eles, mataram Estêvão (7,54-60), fariam o mesmo a Tiago (12,2); entretanto, Paulo, apesar de discípulo do liberal Gamaliel, desdobrar-se-ia em “ameaças e morte contra os discípulos do Senhor” (9,1). Estes foram os mais importantes ataques vindos de fora. Mas, de dentro, as coisas seguiriam também caminhos que os inícios não faziam prever.

Dentro da comunidade, pouco a pouco, começaram também a surgir diferendos, fundamentalmente entre a ala judaica da comunidade de Jerusalém, atada à Lei de Moisés, e a grega, que foi lesta a perceber que “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Por isso mesmo, não se entende que alguns ou muitos pretendam agora ser justificados pela Lei (Gl 5,4). Esta é que era a questão. Paulo, que começara por ser defensor da Lei e de espada na mão, acabaria por ser o maior defensor da Liberdade que Cristo nos ganhou face à Lei antiga.

Embora fosse esta a questão, o Livro dos Atos informa que o início dos desentendimentos internos tinham outra razão: que as viúvas dos hebreus, isto é, dos judeus, não eram bem servidas à mesa (At 6,1)! Mas a razão não era essa: era que os cristãos-judeus da comunidade de Jerusalém se tinham começado a desentender mas por causa de uma questão bem mais complicada e profunda, que era a de saber se os seguidores de Jesus — os cristãos — tinham ou não de cumprir a Lei de Moisés.

E, perante esta questão, a Comunidade, ou seja, uma parte dela, a judaica, não percebeu nada do que começava a acontecer. Por isso, pensava e agia agarrada a um passado que já não era presente: a Lei é que era importante.

Enquanto isto, a outra parte, essa sim, percebeu logo que estava em causa uma questão bem mais complicada. E por isso é que Estêvão foi assassinado, que a Tiago lhe tiraram a tosse também e que algumas figuras importantes do cristianismo nascente saíram de Jerusalém – Filipe, Pedro, Barnabé e o próprio Saulo – saíram de Jerusalém e acabaram, mesmo longe de Jerusalém, por ter graves problemas com essa mesma ala judaica (Paulo perseguido por eles, de Filipos até Tessalónica e, depois, em Corinto e em Éfeso…).

O Senhor bem os tinha prevenido: “Não sois capazes de interpretar os sinais dos tempos!” (Mt 16,3). É sempre muito mais fácil pretender que a razão do que se está a passar tem a ver com uma questãozeca qualquer: as mulheres eram mal servidas à mesa! (At 6,1).

Valha-me Nossa Senhora! Pensar assim é não ser capaz de perceber o que se está a passar!

… … …

Uma rápida explicação do que é um Credo (que todos os domingos recitamos no fim da Liturgia da Palavra: Creio em um só Deus, Pai … e Criador do céu e da terra… de todas as coisas visíveis e invisíveis…

Credo é a 1ª pessoa do indicativo do verbo latino, credere. Credo > eu creio. Eu, cristão, creio > acredito nas afirmações fundamentais de nossa fé. Rapidamente, crédulos, os primeiros cristãos, reuniram essas afirmações num símbolo ou emblema (um símbolo ou um emblema é uma coisa que representa outra), uma espécie de cartão do cidadão. Há palavras, escritas ou não, que são emblemas. Se, em Lisboa, eu disser carago!, todo o lisboeta entende que sou do Porto!

Não vou fazer a história do Credo cristão, mas tenho de dizer que o primeiro credo pode ter sido este: “Jesus é o Senhor”! (Carta de Paulo aos Filipenses, 2,11). Deste pequeníssimo Credo ao niceno-constantinopolitano (o que recitamos normalmente ao domingo) passaram 4 séculos e houve muitos credos. Nos dois primeiros concílios ecuménicos, o de Niceia (ano 325) e o de Constantinopla (ano de 381), fixou-se  um — o tal que ainda hoje recitamos todos os domingos —  e foi aceite nos dois primeiros concílios ecuménicos, o de Niceia (ano 325) e o de Constantinopla (ano de 381), e mais tarde pelas Igrejas católica, ortodoxas orientais, anglicana e maioria das reformadas.

Muitos mais credos houve antes e depois do niceno-constantinopolitano mas este fixou-se. Não seria mal um outro, novo, em linguagem teológica do nosso tempo…

Muitos credos…

… eu não passo à frente sem ler um Credo que Paulo escreveu, na primeira carta que endereçou a Timóteo:

«Aquele que se manifestou na carne
Foi tornado justo em Espírito,
Apresentado aos anjos,
Anunciado às nações,
Acreditado em [todo o] mundo
E exaltado na glória» (3,16)

Há muitos anos que, aqui, nos 7 domingos do Tempo Pascal, recitamos 7 desses Credos primitivos — digamos assim. Até para percebermos a capacidade dos nossos primeiros.

Arlindo de Magalhães, 28 de abril de 2019

Renovar o Corpo

Povo mais numeroso que as estrelas do Céu; Povo de mulheres e de homens cuja condição é a dignidade e a liberdade dos Filhos de Deus, cuja lei é o mandamento novo e que caminha para o Reino de Deus? (LG 9); Povo em que todos são chamados à santidade e cujos membros não conhecem desigualdade alguma, por motivo seja de raça ou de nação, de condição social ou de sexo; Povo em que, embora nem todos sigam pelo mesmo caminho, reina igualdade quanto à dignidade e quanto à [capacidade] de atuação em favor da edificação do Corpo de Cristo (LG 32).

Somo-lo — um Povo — por força da Ressurreição e pelo Batismo.

Um Povo! Um Povo ou é vivo, cheio de vida e de força, ou gravemente enfermo, com rosto já enfezado e definhado, corpo já não criador porque anda mas é com uma enorme dívida de Graça às costas…

Que povo somos nós? Um povo velho e de velhos, a viver do antigo?

Que Igreja somos nós? Acossados de toda a parte, ele é a pedofilia, ele a falta de diálogo interno, a separação e a diferença entre homens e mulheres, entre clérigos e leigos, diferença em que a maioria continua a ser leiga em toda a matéria, lugar onde o serviço se tornou poder, e cada vez mais quer ser grande quando tem é de tem de se fazer pequeno (Mc 10,43) …

Morremos se não nos renovamos. E eu já disse muitas vezes que corpo ou grupo social que se não renova, morre. A Igreja, se não se renova, morre! Ecclesia semper reformanda!, dizia já Santo Agostinho no séc. IV.

Vamos deixá-la morrer ou somos ainda capazes de reunir os que andam perdidos, distraídos, ocupados com mil e uma ninharias?

Se, no tempo que corre, nós ainda encontrámos a Boa Nova de Jesus, porque não a podem também encontrar aqueles que a procuram? Se eu ainda sei aonde a encontre, porque não o direi a quem o quer saber?

Esta tarefa, este que fazer não é (só) para os outros: esta tarefa é de todos e cada um. E, se cada um trouxer outro, este corpo velho reencontrará a vitalidade que a ressurreição de Jesus e o seu Espírito nos garantiram.

É a Serra do Pilar capaz de levar a cabo este desafio — de voltar a reunir os que andam perdidos?… — ou já está morta?

Arlindo de Magalhães, 21 de abril de 2019