Tempo Comum

Vincent van Gogh, ‘Still life with a plate of onions’. January 1889

“Que o Deus de Israel/ nos abençoe para sempre/ E guie os nossos passos/ na Alegria e na Paz” – cantávamos ao iniciar esta ruptura no tempo que toda a acção litúrgica significa, enquanto irrupção da ordem do diferente na mesmidade e na banalidade dos dias.

Paradoxalmente, o tempo comum é um lugar da temporalidade litúrgica em que a banalidade dos dias se apresenta tendencialmente monótona e arrogante. São os “dias sem metáforas”, como diria o poeta [José Rui Teixeira]. Mas são também os dias da vida que se resigna cinicamente a este mundo. Nessa capitulação ante o sentido pragmático das coisas, cresce a arrogância de tudo arrumar no tempo ordinário de uma vida. Diria, por isso, que o tempo comum é o tempo da vaidade, o tempo da auto-suficiência, o tempo da acumulação que, por medo ao vazio, paradoxalmente o empanturra com mais vazio. É para essa consciência de enfermidade espiritual que o tempo comum da liturgia nos alerta.

Tecido na noite penelopiana dos paradoxos, o cristianismo cedo percebeu – talvez demasiado cedo – que o tempo não se mede pela monotonia de uma narrativa fechada, ainda que a lógica etiológica e sacrificial da culpabilidade difusa a tenha acabado por impor como única grelha de leitura da realidade. A narrativa salvífica é sempre, sob pena de deixar de o ser, uma narrativa aberta. É para essa consciência que o evangelho de hoje nos acorda.

Penso muito naquilo que Hugo Mujica – presbítero da arquidiocese de Buenos Aires, outrora monge trapista, e poeta – escreveu no prólogo às suas poéticas do vazio:

“No princípio não há nada, depois há depois, algo, uma marca no tempo, um é. Aquilo que o vazio, o nada, o impossível ou a ausência deram ao ser.
Marcaram na página em branco ou na intempérie: na paisagem da possibilidade.
Na nudez, a espera”.    

A sabedoria do coração, de que a liturgia da palavra faz eco, lembra que a resistência ao inesperado, ao novo, ao diferente e ao incontrolável não são verdadeiros caminhos de salvação. Todo o desejo de encerrar numa narrativa fechada, com as suas morfologia e sintaxe estáticas, são pura vaidade: desilusão, tempo monótono, pó, húmus, erva seca, palha.

A salvação não se negoceia na estática de um verbo que tudo pretende captar e traduzir. Não se negoceia sequer, porque não é da ordem do manipulável. A salvação é da ordem do impossível. De nada serve acumular. Por isso, habitar o vazio, o tempo comum dos “dias sem metáforas” é habitar a espera, a possibilidade de um mundo novo que talvez aqui não tenha lugar (utopia), única via de acolhimento do que é gratuito.

Assim meditava José Augusto Mourão a propósito do evangelho de hoje:

“Conhecer é receber. Ser espaço livre a modo de uma vasilha pronta para receber o líquido. Isso sabiam as beguinas, essas mulheres que transportam o tema da alma nobre da literatura da corte para o domínio espiritual. Desapego, humildade, pobreza até ao aniquilamento ¾ tanto no plano da vontade (caminho real para o país do não querer) como no do conhecimento (nesciência e desimaginação). Chama-se a isso vacuidade, que se deve traduzir por vacância ou disponibilidade. […]

Nós temos horror ao vazio, por isso acumulamos. Por isso nos é tão difícil a vida espiritual. Por isso o inegociável nos é tão estranho. Uma nobre claridade brilha docemente em nós/ E quer ser acolhida no ócio fiel (Hadewijch). O ócio não é sinónimo de preguiça, inércia, mas refere-se ao otium no sentido de não estar preso a negócio nec-otium, portanto à disposição de uma acção livre, que tem o móvel da sua acção a partir de dentro de si mesma. Em negócios andamos sempre metidos (com Deus e os outros). É a partir daí que o vazio de um cálice pronto a receber o precioso vinho da hospitalidade nos pode acenar para o que é a afeição pura da cordial recepção grata do ser humano”.  

Habitar permanentemente o espaço e o tempo do negociável é iludir a liberdade e desiludir o coração. Aquilo que é absolutamente necessário é ancorar a vivência do tempo, que é aberto e progressivo, à sua potencialidade máxima. Talvez fosse isso, mutatis mutandis, em que pensava Oscar Wilde quando escreveu que “um mapa do mundo que não inclua Utopia, não merece que lhe demos uma vista de olhos sequer, pois exclui o país em que a Humanidade está constantemente a desembarcar”. Talvez fosse essa intuição fundamental de Paulo, quando se dirigia aos Colossenses: “Uma vez que ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo se encontra, sentado à direita de Deus; afeiçoai-vos às coisas do alto, não às da Terra. Pois vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a vossa vida, se manifestar, então também vós vos haveis de manifestar com ele na glória”.

José Pedro Angélico, 4 de agosto de 2019