Jesus, que tinha nascido em Belém, a sul de Jerusalém, mas era filho da Galileia, começou a pregar na sua terra o Reino de Deus: “o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré…” (Lc 1,26). Ele próprio, Jesus, crescera na Galileia, em Nazaré (Lc 2,51), e na Galileia começou a pregar: “veio de Nazaré da Galileia” (Mc 1, 9) procurar João, nas margens do Jordão (Mc 1,5).
Pregar o quê?: “O Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15). O Reino, no entanto, não é para depois, é agora, começa aqui. Jesus é o anunciador do Reino, mas também o seu começador e um protestador: os muitos milagres que Jesus faz são um protesto contra a miséria humana, contra um mundo velho. Por isso Jesus é também um curador: cura cegos e surdos-mudos, cura mulheres e crianças, cura doentes que só em catres se deslocavam, etc., como por alto, vimos domingo passado. Curava os mais débeis, os do último degrau da sociedade. Não consta que tivesse curado ricos e trapaceiros. Curava e desafiava as leis da própria Natureza: acalmava tempestades (Mc4,35) e caminhava por cima das águas (6,45), multiplicava o pão para chegar para todos (Mc 6,34 e 8,1), …
Claro que isto ouvia-se ao longe. Lá em baixo, em Jerusalém, soube-se logo. Claro que apareceu de imediato uma onda de entusiasmo: “Todos se maravilhavam e glorificavam a Deus, dizendo: nunca vimos coisa assim!” (Mc 2,12), mas logo começaram também os problemas: “os fariseus reuniram-se com os partidários de Herodes para deliberar como haviam de matar Jesus” (Mc 3,6) e “os doutores da Lei que tinham descido de Jerusalém afirmavam: ele tem, mas é Belzebu no corpo!” (Mc 3,22). Como sempre, Política (“os partidários de Herodes”) e Religião (“os doutores da Lei”) do mesmo lado.
Afirmaram: “ele tem Belzebu no corpo”. Belzebu quer dizer, à letra: “deus de m…” (Baal era o maior deus do panteão cananeu).
Estavam, pois, lançados os dados do conflito que o levariam à morte. O próprio Jesus, no fim da 1ª parte deste Evangelho de Marcos, dirá aos discípulos: «Acautelai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes» (8,15). Jesus tinha de morrer porque tudo se havia já precipitado nesse sentido.
Mas surgiram dificuldades vindas de «os seus». «Os seus», isto é, «sua mãe e seus irmãos» (Mc 3,31), que andavam à procura dele porque tinham tido notícia de que ele andava pirado da cabeça. Vinham, muito naturalmente, repreendê-lo e dar-lhe bons conselhos. Aponta nesse sentido o facto de ele andar já metido com uns tipos no mínimo raros, pescadores – a Galileia ficava longe do mar, eram todos rurais e tinham reminiscências da vida pastoril; um deles devia ser mesmo um estoura-vergas, à letra Filho do Trovão (é o nosso conhecido Tiago), gente com quem, ainda por cima, se sentava à mesa a comer (1,31; 2,16).
Tudo o que Jesus fazia por terras da Galileia levantou um certo burburinho, positiva e negativamente: uns maravilhavam-se (5,20), outros preocupavam-se. Entre eles os familiares.
A certa altura, ele próprio, certamente já preocupado com o que começava a acontecer, “partiu dali e foi para a sua terra” (6,1). Pior ainda! Foi então que os conterrâneos e familiares entraram em rutura com ele. Sabemos como é a família! Os novos têm de seguir as passadas dos progenitores. Caso contrário… E Jesus tinha rompido com a família.
Os próprios Doze eram o núcleo de uma nova comunidade reunida à sua volta. A história é velha. Já a Jeremias tinham apontado o mesmo: «Os teus próprios irmãos e a casa de teu pai, até eles te atraiçoaram. Até eles te criticam pelas costas». Ao que o profeta acrescentara: «Deixei a minha família, abandonei a minha herança e entreguei a mãos inimigas o que de mais caro possuía no coração» (Jr 12,6/7).
Quando os velhos «filhos de Abraão» – isto é, os filhos de sangue – recusam, outros (filhos de Abraão) nascerão das pedras” (Lc 19,40).
É no seguimento de todo este processo que os seus familiares dizem a seu respeito: «Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria? E ficaram perplexos a seu respeito» (6,3).
Só para vermos como é hoje difícil ler o texto evangélico. A palavra – carpinteiro – que Jesus utilizou na sua língua foi traduzida para grego por uma outra que quer dizer simplesmente trabalhador da construção civil (que tanto podia ser pedreiro como carpinteiro: naquele tempo, a maior parte das casas era de madeira). São Jerónimo, na tradução para latim, pôs lá faber (operário da construção civil, carpinteiro ou pedreiro). Claro que, depois das invasões bárbaras, deixou de se construir em pedra na Europa; só muito mais tarde se voltou a ela. Daí que se não estranhe que a palavra latina que designava o trabalhador da construção civil se tenha restringido à significação de carpinteiro. Nas nossas cidades antigas, as casas eram (quase) só de madeira. Por isso é que havia muitos incêndios!
No entanto, na mesma língua de Jesus, a palavra que ele utilizou não queria só dizer artesão/trabalhador da construção civil. Aplicava-se um trabalhador perito e perfeito na sua arte e profissão. Aquilo é que ele é ou era um artista! Um Ronaldo numa carpintaria!
A ser assim, ser chamado carpinteiro (Mc 6,3) ou filho de carpinteiro ((Mt 13,55) tanto pode ser depreciativo como um elogio: um carpinteiro, isto é, um tipo sem nada de especial, ou exatamente o contrário.
Seja como for, por isto se vai vendo como os dias de Jesus, com o que fazia e dizia, o iam conduzindo para um drama supremo, o da sua morte.
Temos hoje mais dificuldade em perceber a sua humanidade que a sua divindade? Apesar de tudo, creio que não. A sua divindade atrapalha-nos mais que a humanidade. Mas a verdade é que só percebendo bem e até ao fundo a sua humanidade se pode entender porquê e como ele é o salvador da Humanidade.
Arlindo de Magalhães, 8 de julho de 2018