O Carpinteiro

Jyoti Sahi (Indian, 1944–), “The Resurrection.” Oil on canvas.

Jesus, que tinha nascido em Belém, a sul de Jerusalém, mas era filho da Galileia, começou a pregar na sua terra o Reino de Deus: “o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré…” (Lc 1,26). Ele próprio, Jesus, crescera na Galileia, em Nazaré (Lc 2,51), e na Galileia começou a pregar: “veio de Nazaré da Galileia” (Mc 1, 9) procurar João, nas margens do Jordão (Mc 1,5).

Pregar o quê?: “O Reino de Deus está próximo; arrependei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15). O Reino, no entanto, não é para depois, é agora, começa aqui. Jesus é o anunciador do Reino, mas também o seu começador e um protestador: os muitos milagres que Jesus faz são um protesto contra a miséria humana, contra um mundo velho. Por isso Jesus é também um curador: cura cegos e surdos-mudos, cura mulheres e crianças, cura doentes que só em catres se deslocavam, etc., como por alto, vimos domingo passado. Curava os mais débeis, os do último degrau da sociedade. Não consta que tivesse curado ricos e trapaceiros. Curava e desafiava as leis da própria Natureza: acalmava tempestades (Mc4,35) e caminhava por cima das águas (6,45), multiplicava o pão para chegar para todos (Mc 6,34 e 8,1), …

Claro que isto ouvia-se ao longe. Lá em baixo, em Jerusalém, soube-se logo. Claro que apareceu de imediato uma onda de entusiasmo: “Todos se maravilhavam e glorificavam a Deus, dizendo: nunca vimos coisa assim!” (Mc 2,12), mas logo começaram também os problemas: “os fariseus reuniram-se com os partidários de Herodes para deliberar como haviam de matar Jesus” (Mc 3,6) e “os doutores da Lei que tinham descido de Jerusalém afirmavam: ele tem, mas é Belzebu no corpo!” (Mc 3,22). Como sempre, Política (“os partidários de Herodes”) e Religião (“os doutores da Lei”) do mesmo lado.

Afirmaram: “ele tem Belzebu no corpo”. Belzebu quer dizer, à letra: “deus de m…” (Baal era o maior deus do panteão cananeu).

Estavam, pois, lançados os dados do conflito que o levariam à morte. O próprio Jesus, no fim da 1ª parte deste Evangelho de Marcos, dirá aos discípulos: «Acautelai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes» (8,15). Jesus tinha de morrer porque tudo se havia já precipitado nesse sentido.

Mas surgiram dificuldades vindas de «os seus». «Os seus», isto é, «sua mãe e seus irmãos» (Mc 3,31), que andavam à procura dele porque tinham tido notícia de que ele andava pirado da cabeça. Vinham, muito naturalmente, repreendê-lo e dar-lhe bons conselhos. Aponta nesse sentido o facto de ele andar já metido com uns tipos no mínimo raros, pescadores – a Galileia ficava longe do mar, eram todos rurais e tinham reminiscências da vida pastoril; um deles devia ser mesmo um estoura-vergas, à letra Filho do Trovão (é o nosso conhecido Tiago), gente com quem, ainda por cima, se sentava à mesa a comer (1,31; 2,16).

Tudo o que Jesus fazia por terras da Galileia levantou um certo burburinho, positiva e negativamente: uns maravilhavam-se (5,20), outros preocupavam-se. Entre eles os familiares. 

A certa altura, ele próprio, certamente já preocupado com o que começava a acontecer, “partiu dali e foi para a sua terra” (6,1). Pior ainda! Foi então que os conterrâneos e familiares entraram em rutura com ele. Sabemos como é a família! Os novos têm de seguir as passadas dos progenitores. Caso contrário… E Jesus tinha rompido com a família.

Os próprios Doze eram o núcleo de uma nova comunidade reunida à sua volta. A história é velha. Já a Jeremias tinham apontado o mesmo: «Os teus próprios irmãos e a casa de teu pai, até eles te atraiçoaram. Até eles te criticam pelas costas». Ao que o profeta acrescentara: «Deixei a minha família, abandonei a minha herança e entreguei a mãos inimigas o que de mais caro possuía no coração» (Jr 12,6/7).

Quando os velhos «filhos de Abraão» – isto é, os filhos de sangue – recusam, outros (filhos de Abraão) nascerão das pedras” (Lc 19,40).

É no seguimento de todo este processo que os seus familiares dizem a seu respeito: «Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria? E ficaram perplexos a seu respeito» (6,3).

Só para vermos como é hoje difícil ler o texto evangélico. A palavra – carpinteiro – que Jesus utilizou na sua língua foi traduzida para grego por uma outra que quer dizer simplesmente trabalhador da construção civil (que tanto podia ser pedreiro como carpinteiro: naquele tempo, a maior parte das casas era de madeira). São Jerónimo, na tradução para latim, pôs lá faber (operário da construção civil, carpinteiro ou pedreiro). Claro que, depois das invasões bárbaras, deixou de se construir em pedra na Europa; só muito mais tarde se voltou a ela. Daí que se não estranhe que a palavra latina que designava o trabalhador da construção civil se tenha restringido à significação de carpinteiro. Nas nossas cidades antigas, as casas eram (quase) só de madeira. Por isso é que havia muitos incêndios!

No entanto, na mesma língua de Jesus, a palavra que ele utilizou não queria só dizer artesão/trabalhador da construção civil. Aplicava-se um trabalhador perito e perfeito na sua arte e profissão. Aquilo é que ele é ou era um artista! Um Ronaldo numa carpintaria!

A ser assim, ser chamado carpinteiro (Mc 6,3) ou filho de carpinteiro ((Mt 13,55) tanto pode ser depreciativo como um elogio: um carpinteiro, isto é, um tipo sem nada de especial, ou exatamente o contrário.

Seja como for, por isto se vai vendo como os dias de Jesus, com o que fazia e dizia, o iam conduzindo para um drama supremo, o da sua morte.

Temos hoje mais dificuldade em perceber a sua humanidade que a sua divindade? Apesar de tudo, creio que não. A sua divindade atrapalha-nos mais que a humanidade. Mas a verdade é que só percebendo bem e até ao fundo a sua humanidade se pode entender porquê e como ele é o salvador da Humanidade.

Arlindo de Magalhães, 8 de julho de 2018

Um mundo novo

Jenny Olsson

Acabámos de ouvir uma página difícil de Marcos, uma espécie de sande literária: pão por cima e pão por baixo (o relato da filha de Jairo partido ao meio) e, no meio, outra coisa, a mulher com fluxo de sangue (ou seja, um episódio metido dentro de outro).

Reunidos, os dois relatos têm coisas em comum. A filha de Jairo tinha 12 anos, e a mulher há outros tantos que tinha uma perdida de sangue. Mas, sobretudo, em ambos os casos, é fundamental a fé de Jairo que Jesus reconhece – “Não tenhas receio. Crê somente!” – e da mulher a quem diz – “Minha filha, foi a tua fé que te salvou”.

O Evangelho de Marcos começa com o anúncio do Reino: «O Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho» (1,15). Jesus explicava depois que o Reino estava a chegar e que, por isso, era uma realidade futura, embora acrescentasse que está aí «à mão» de semear (Mc 1,15), está mesmo «no meio de vós» (Lc 17,20), «já chegou» até (Mt 12,28), embora a sua presença esteja ainda oculta.

Logo de seguida, Marcos apresenta Jesus como um grande taumaturgo, um homem que faz milagres, sobretudo curas. Vamos ver: só hoje (5,21/43) cura a filha de Jairo e a mulher que sofre um derramamento de sangue; logo depois, em Genesaré (6,53), ocupa-se dos que ”acorreram àquela região… doentes nos seus catres…, [que] colocavam nas praças e que pediam que os deixassem tocar pelo menos as franjas das suas vestes”; curou depois a filha de uma mulher cananeia (7,24), um surdo-mudo (7,31), um cego em Betsaida (8,22, um jovem epilético (9,14) e outro cego em Jericó (10,46). Enquanto isto, fez alguns milagres mais: por duas vezes, multiplicou o pouco pão que por ali havia para dar de comer às multidões que o procuravam e seguiam (6,34 ss e 8,1 ss), caminhou depois sobre as águas (6,45 ss) e transfigurou-se (9,2 ss). Não se trata de curas a mais e de milagres a torto e a direito?

O que Marcos quer dizer é que está a despontar um mundo novo, estão a começar a aparecer os fundamentos do Reino. Por isso é que Jesus ocupa um lugar singular na história das religiões. Combina dois mundos que nunca haviam estado unidos: em todas as religiões a salvação é só uma questão de futuro; mas com Jesus ela realiza-se já neste mundo e neste tempo, é uma salvação atual. Não há, em nenhuma religião, um taumaturgo como Jesus, que traz ao homem uma salvação que é o fim de um mundo velho e o começo de um mundo novo. Os milagres de Jesus que acontecem na história temporal dos homens são já um mundo novo que começa e uma terra nova que nasce.

Os milagres de Jesus são, pois, antes de mais, um protesto contra a miséria humana. Eles não esquecem que há muita gente que passa fome, que para muitos doentes não há cura, que para muitos concidadãos não há trabalho. Mas não é verdade que um simples doente se vê já curado se tem quem o trate e medicamentos para se tratar? E um pobre a quem se garante comida e teto? E um desempregado que a assistência social ou o cuidado dos vizinhos não desconhece?

As palavras têm muitos sentidos. E a mesma palavra dita hoje e há 2.000 anos atrás tem conteúdos insuspeitados.

Vou ler um texto escrito entre os anos 105 e 110 por Tácito (55-120), historiador romano, no seu livro Histórias: conta ele como (9-79), aclamado imperador romano pela tropa, foi taumaturgo sem querer.

«Durante os meses de Verão em que Vespasiano aguardava em Alexandria os ventos propícios para uma navegação segura, aconteceram não poucos milagres (miracula) que indicavam o favor do céu e as preferências dos deuses por Vespasiano.

Um homem simples do povo, natural de Alexandria e muito conhecido por ser cego, foi ajoelhar-se diante de Vespasiano e, a chorar, pediu-lhe a cura do seu mal; que o fazia por ordem de Serapis, um deus venerado pelo povo com especial fervor. Suplicou a Vespasiano que lhe permitisse ungir as faces e as pálpebras com a saliva da sua boca. [Naquele tempo ninguém se lavava: até ou ouvidos ficavam tapados de lixo! E sobretudo os mais velhos pensavam ter perdido a audição!  Descobriram mais tarde que, com a saliva, às vezes —por milagre! — a recuperavam! E com saliva levada pela língua ao interior do ouvido, por vezes humedeciam o tampão do lixo e recuperavam a audição! Milagre!] Outro homem que tinha um aleijão na mão pediu-lhe também, por mandado do mesmo deus, que lha tocasse com a planta do pé.

A Vespasiano, pareciam-lhe ridículos estes pedidos, e por isso os recusou. Mas os homens insistiram e ele começou a titubear: tinha receio de falatórios caso nada pudesse fazer por eles. E, ante as súplicas repetidas dos dois homens e a instâncias dos seus aduladores, acabou por lhe parecer atrativa a proposta. Pediu um relatório médico sobre as hipóteses de cura daquela cegueira e do aleijão da mão. A resposta dos médicos foi ambígua: quanto ao primeiro caso, a cegueira não era total, disseram os médicos; quanto à mão, que o paciente tinha era os dedos deslocados e que, usando adequadamente os meios curativos, eles seriam recolocados na sua posição normal. Talvez os deuses estivessem até interessados em que o príncipe (Vespasiano) fosse escolhido como instrumento da divindade! E disseram mais os médicos: que se a aplicação dos medicamentos ou dos tratamentos tivesse êxito, este seria atribuído ao Príncipe, caso contrário, toda a gente se riria, mas dos dois infelizes doentes.

Então Vespasiano, acreditando na fortuna que há bastante tempo o acompanhava e que no futuro nada lhe resistiria, acedeu aos pedidos que lhe tinham sido feitos, e com cara alegre. E toda a gente esperava expectante o que aconteceria. E, de facto, a mão recuperou a normalidade e ao cego brilhou de novo a luz do dia.

Testemunhas oculares ainda hoje contam o que então aconteceu.»

 

Entre os milagres de Jesus e os de Vespasiano, seu contemporâneo, há enormes diferenças: no caso de Jesus, só os que tinham fé eram curados, primeiro; mas protestar contra um mundo velho – segundo – não chega, tem de ser o lançamento dos fundamentos de um mundo novo a que o próprio Jesus dava o nome de Reino de Deus.

Vejamos o que diz o Vaticano II:

«Ignoramos o tempo em que a terra e a humanidade atingirão a sua plenitude: Deus ensina-nos que se prepara uma nova habitação e uma nova terra na qual reina a justiça e cuja felicidade satisfará e superará todos os desejos de paz que se levantam no coração dos homens. (…) Todos estes bens da dignidade humana, da comunhão fraterna e da liberdade, frutos da natureza e do nosso trabalho, … voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de qualquer mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal (…). Sobre a terra, o Reino já está misteriosamente presente; mas só quando o Senhor vier atingirá a perfeição» (GS 39).

Arlindo de Magalhães, 1 de julho de 2018

São João

Ivan Filichev, O Batismo de Jesus

Foi sempre muito difícil medir o tempo. Os povos antigos faziam-no, uns pela Lua e muitos mais pelo Sol: do nascer ou do pôr, a partir dos Solstícios (o sol no seu mínimo – Inverno, ou no seu máximo – Verão) ou dos Equinócios, os dois dias do ano em que a noite e o dia são iguais.

Foi sempre muito difícil medir o tempo. O tempo cósmico medido a partir dos astros, o tempo histórico contado a partir de um acontecimento: do nascimento de Jesus, por exemplo, fazemo-lo nós desde o séc. XIV, mas já se contou a partir de muitos outros acontecimentos, a fundação de Roma, o nascimento de Maomé, na Revolução Francesa…, houve na nossa Península a era hispânica (a conquista da Hispânia por César Augusto), a era da República Francesa (a partir de 1792), que durou pouco, há ainda a era judaica moderna, etc., etc.

Nunca foi muito fácil ao homem antigo contar os anos: em Roma o Solstício do Inverno era a 25 de dezembro, no Oriente a 6 de janeiro…!

Mas afinal o que é o tempo, coisa assim tão difícil de contar? Sempre que chego aqui, vou a Sto. Agostinho, que, sobre ele, escreveu uma daquelas páginas que se leem vezes atrás de vezes, é assim como uma Sonata de piano de Mozart ou uma Sinfonia de Beethoven, a gente ouve 1, 2, 3, 20, 30 e mais vezes, e nunca se cansa, tem sempre para ouvir o que nunca ouviu, e sempre que ouve dá graças a Deus e ao Homem.

Santo Agostinho dizia assim do tempo:

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir, por palavras, o seu conceito? … Se ninguém mo perguntar, eu sei; mas se o quiser explicar a quem me faz a pergunta, já não sei. Mesmo assim, atrevo-me a dizer, sem receio de ser contestado, que, se nada sobreviesse, não haveria tempo futuro; e se agora nada houvesse, não existia tempo presente. De que modo podemos dizer que existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro -, se o passado já não existe e o futuro ainda não chegou? Quanto ao presente, se ele fosse sempre presente e não passasse a passado, já não seria tempo, mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar a pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual ele deixa de existir?

A reflexão de Santo Agostinho alonga-se ainda por mais páginas e páginas das suas Confissões, mas esse não é hoje o nosso assunto.

Nós, hoje, civilização urbana e técnica, não ligamos nada a estas coisas, mas antigamente eram muito importantes. Estes dias — solstícios e equinócios — carregavam-se de um profundíssimo sentido religioso: quem está por detrás disto tudo, desta regularidade temporal?

Por isso, em todas as religiões, eram dias de festas religiosas. O cristianismo nascente já as encontrou. E – inteligente! – em vez de as combater, cristianizou-as: no dia do Solstício de Inverno (de então!), colocou o nascimento de Jesus e, no do Verão, o de S. João, o precursor.

Porquê? Boa pergunta: não se sabe bem, mas tudo terá a ver com a dupla afirmação de Jesus (At 1,5) e de Pedro (11,16), segundo a qual João batizou com água, mas vós sereis batizados no [fogo do] Espírito Santo (Mt 3,11). E, de facto, em noite de S. João, o calor do Verão e da fogueira, e a frescura da orvalhada ou da água. Ainda hoje, em muitos casos, a noitada termina com um banho em qualquer fonte ou na praia da Foz. E não é só no Porto; estes rituais cumprem-se religiosamente em muitos lugares europeus.

Com toda esta simbólica, a festa de S. João carregou-se de um forte sentido utópico, como aliás a do Natal, que ambas vinham do paganismo. As festas dos Solstícios eram, nas primitivas culturas europeias, as grandes festas de uma fraternidade desejada, mas não possível. Em Roma, por exemplo, no Solstício de Inverno, os escravos passavam durante esse dia a senhores e vice-versa, os senhores a servos dos escravos, a quem serviam à mesa. É exatamente isto que se faz aqui no Porto, em Braga e em tantos lugares, na noite de S. João: todos com todos, em sã e alegre convivência, não há notícia de conflitos na noite em que a cidade se derrama nas ruas e, se vier o Presidente da República, não digo que não haja seguras, também leva com o alho-porro, ai não!, ele talvez o martelinho! Noite de uma fraternidade utópica, como desenhou Isaías para o tempo do Messias: o lobo será hóspede do cordeiro e a pantera deitar-se-á junto do cabrito… (11,6).

Em noite de S. João, a Utopia, anterior ao tempo cristão, como que antecipava a Boa Nova de Jesus: entendam-se e confraternizem com os todos os homens, as víboras e os touros, os leões e os ursos, com martelinho ou alho-porro, à volta de uma fogueira ou mergulhando num apreciado banho, todos, porque todos somos irmãos.

Isto mai-lo quando somos campeões, é verdadeiramente uma descarga de emoções contidas.

Arlindo de Magalhães, 24 de junho de 2018

As parábolas do Reino

Parece impossível que, passados 50 anos sobre o Vaticano II, muitas cabeças não tenham ainda encaixado que Jesus nunca pregou nem falou da Igreja, anunciou sim o Reino de Deus. Jesus nunca pensou numa Igreja de cima para baixo, piramidal, nunca fundou Igreja nenhuma, falou sim muitas vezes mas do Reino de Deus.

Logo no início do seu Evangelho, Marcos faz um resumo-resumido de tudo quanto vem a seguir. Diz assim: «O Reino de Deus está próximo; convertei-vos e acreditai no Evangelho» (1,15). E todos os Sinóticos (os Evangelhos de Mateus, de Marcos e de Lucas) estão cheios de parábolas acerca do Reino. E digo os Sinóticos porque são eles que recolhem mais diretamente a pregação de Jesus. O Evangelho de João é diferente: escrito mais tarde, é uma reflexão posterior, digamos que mais refletida, mais teológica de comunidades do fim do século I, sobre a pregação de Jesus.

Como todos os Rabis (Mestres) do seu tempo, Jesus recorria muito na sua pregação a uma pedagogia, uma maneira de falar, que ele utilizava com verdadeira mestria: as parábolas. Parábolas são, no fundo, comparações tiradas da vida do dia-a-dia, cheias de vivacidade e colorido (por elas passam campos e vinhas, sementeiras e ceifas, ovelhas e pastores, lobos, pássaros, cizânia, lírios, trigo, mostarda e cevada, árvores de fruto, peixes e pescarias, meninos a brincar nas praças dos mercados, jornaleiros e comerciantes, pescadores, sacerdotes e militares, sei lá que mais, cobradores de impostos e outros ladrões e malfeitores…), tudo numa grande ternura pela vida comum da gente do seu tempo, principalmente da difícil vida pastoril, rural ou piscatória. E fazia-o de modo que todos entendessem com clareza: «Dirigia-lhes a palavra com muitas parábolas, conforme eram capazes de entender» (Mc 4,33).

As parábolas são muito importantes não tanto para se compreender «o que é» o Reino de Deus — essa seria a questão do filósofo —, mas sim para se perceber «como e quando o Reino?» — essa, sim, a preocupação do Mestre.

Jesus disse que o Reino estava a chegar, por isso, que era uma realidade futura, embora acrescentasse que está aí «à mão» de semear (Mc 1,15), está mesmo «no meio de vós» (Luc 17,20), «já chegou» (Mt 12,28), embora a sua presença esteja ainda oculta.

Conhecemos todos as parábolas da semente que germina, que cresce caladamente, já hoje, embora só no futuro tenhamos, maduro, o seu fruto: “a semente germina e cresce, sem ele saber como. A terra produz por si, primeiro, o pé; depois, a espiga; por fim, o trigo maduro na espiga. E, mal o trigo o permite, logo o homem mete a foice; a seara está pronta” (Mc 4,26-29.

Por isso é que, falando do Reino, Jesus o explica como uma semente que cresce, já hoje, caladamente. Se o Reino de Deus é futuro relativamente ao hoje, tempo virá em que terá um passado, porque então presente. E daí o tive fome e tive sede…, vinde benditos de meu Pai, receber como herança o Reino que vos está preparado, ou afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno que vos está preparado (Mt 25, 31-46). Quando, Senhor, dar-te ou não de comer e de beber, quando é que isso aconteceu?

O Reino de Deus começa na História, constrói-se hoje. Mas hoje tem ainda muito de utópico; e, por isso, só será realidade plena no tempo futuro. O fruto da semente, cereal ou o que seja, que é para muitos uma esperança, é para outros uma crítica radical.

Quando Jesus diz que «o Reino é como um homem que deita a semente à terra» (Mc 4,26), de que estava ele a falar? No seu tempo, que semente deitava um homem à terra a não ser a do «pão nosso de cada dia»?

De que semente, de que pão falava Jesus? Ou seja, de que Reino falava Jesus? E a Igreja, o que é? A Igreja é apenas um sinal – sacramento -, um lugar e tempo de construção do Reino? A Igreja – a que “o Senhor Jesus deu início pregando a alegre novidade do advento do reino de Deus” (LG 5) – tem “o dever de trabalhar na implantação e consolidação do Reino de Cristo” (LG 44). E foi o Reino, não a Igreja, que Jesus anunciou e que iniciou. A Igreja – una, santa, católica e apostólica – é “sinal, sacramento e instrumento” do Reino: mas é para o Reino que caminhamos, não para uma Igreja triunfalista, verticalista e poderosa.

Permitam-me a leitura breve de parte de um texto do séc. III em que Tertuliano (160-220), um grande autor do primeiro tempo do Cristianismo, digamos assim, explicava aos magistrados romanos o que era uma comunidade cristã:

«É sobretudo a prática da caridade, que, aos olhos de muitos, nos imprime uma marca infamante. Vede – dizem eles – como se amam uns aos outros!; dizem-no porque eles se detestam uns aos outros. Vede – dizem eles – como estão prontos a morrer uns pelos outros!; mas dizem-no porque eles estão prontos é a matar-se uns aos outros. Quanto ao nome de irmãos com que nos tratamos uns aos outros, só dizem asneiras, penso eu. É que, entre eles, os nomes de família são exigência, sim, mas de uma afeição apenas simulada: mas nós somos realmente vossos irmãos pela Natureza, nossa mãe comum. É verdade que vós não sois homens, sois maus irmãos. Mas com quanta mais razão se chamam e consideram irmãos aqueles que reconhecem como Pai o mesmo Deus, que beberam do mesmo espírito de santidade, que, saídos do mesmo seio de ignorância, viram luzir, maravilhados, a mesma luz da verdade!

Vivemos convosco, comemos convosco o mesmo alimento, usamos o mesmo vestuário, temos o mesmo modo de vida, estamos submetidos às mesmas necessidades da existência. Não somos brâmanes nem faquires da Índia, habitantes das florestas ou exilados da vida. Frequentamos o vosso fórum, o vosso mercado, os vossos banhos, as vossas lojas e estalagens, as vossas feiras e outros locais de comércio. Habitamos este mundo convosco. Convosco navegamos, convosco servimos como soldados, trabalhamos a terra, comerciamos.»

Arlindo de Magalhães, 17 de junho de 2018

Corpo de Deus

‘The Guardian Angels carry the Holy Eucharist’ | Jan Toorop (1858–1928)

Lucas apontou nos Atos dos Apóstolos as quatro coordenadas essenciais que definem a comunidade. São elas, a didakê (ensino dos Apóstolos), a koinonía (a comunhão ou união fraterna), a fração do pão (Eucaristia) e a oração (2, 42). Quando, porém no séc. IV, S. Jerónimo traduziu a Bíblia para latim (Vulgata), reduziu estas quatro coordenadas a três: o ensino dos Apóstolos, a comunhão da fração do pão e a oração. Consagrava-se assim na letra uma das maiores confusões da teologia acontecidas na história.

Desde o princípio, diz o Novo Testamento insistentemente, que a Igreja se reunia, na comunhão da fé, à volta da Mesa do pão e vinho que se comia, aquele, e bebia, este, tal como Jesus fizera na véspera da sua Paixão, em memória da sua Morte e Ressurreição: fazei isto em memória de mim, disse Jesus. Esse pão partia-se à frente de todos e entre todos (à própria celebração se chamava mesmo a Fração do Pão) para poder ser distribuído por todos (como se fazia ao vinho aliás), em sinal de comunhão. Exatamente como acontece quando eu vou comer à tua casa, em sinal de amizade e de partilha, isto é, de comunhão; se acontece que a nossa comunhão diminui, seja pelo que for, eu deixo de ir e/ou tu de me convidar. Em sinal de comunhão na fé, na memória da morte e ressurreição de Jesus, e como expressão da fraternidade que somos e vivemos, comemos esse pouco de pão, expressão visível da nossa comunhão fraterna e da nossa união por Cristo, com Cristo e em Cristo.

Quem come este pão e bebe este vinho é o corpus vere (o verdadeiro corpo de Cristo), ou seja, o corpo real da Igreja na qual Jesus está realmente presente (sempre que dois ou três se reunirem em meu nome eu estarei no meio deles, Mt 18,20; vós é que sois o corpo de Cristo, dizia Paulo aos Coríntios, 1 Cor 12,27; fomos todos batizados para formar um só corpo, 1 Cor 12.13). A koininía (comunhão) dos que somos membros do Corpo de Cristo exprime-se no facto de comermos todos o corpus mysticum (corpo místico de Cristo), o sacramento ou sinal que é o pão e o vinho da Eucaristia.

Uma coisa é, portanto, o verdadeiro corpo de Cristo (a Igreja, a assembleia dos que estão em comunhão), e outra o corpo místico, o sinal sacramental da comunhão desse corpo de Cristo.

Ou seja, o pão da Eucaristia é o sacramento da presença real de Cristo.

Com os maus velhos tempos, porém, trocaram-se as coisas: passou a chamar-se “a comunhão” ao pão da Eucaristia que era (e é) apenas o sinal da comunhão eclesial ou fraterna (por isso comiam em conjunto), mesmo que os que comiam esse pão andassem à batatada uns com os outros. E vieram depois palavras raríssimas – trans-substanciação, trans-significação e outras mais – a tentar explicar o inexplicável.

Quando não há comunhão no corpo real (corpus vere) de Jesus que é a Igreja, isto é, se há fraturas mortais no corpo de Cristo, que ninguém ouse comer desse pão ou beber desse cálice, porque o faz indignamente; “que cada um se examine, portanto, porque comendo e bebendo sem perceber que se trata do sinal da comunhão do corpo de Cristo, come e bebe a sua própria condenação” (1 Cor 11,27-29).

Estamos todos a ver porque é que a Ceia do Senhor, a Fração do Pão, a Eucaristia, a expressão da comunhão do corpus vere através do corpus mysticum, foi sempre uma coisa tão importante para os cristãos.

Por isso, teimosamente a celebramos, todas as semanas no mínimo, orando assim: primeiro, “Nós vos damos graças porque nos admitistes à vossa presença para vos servir nestes santos mistérios”, isto é, porque sendo um só corpo, participamos do Corpo e Sangue de Cristo; segundo, “humildemente vos suplicamos que, porque participamos do Corpo e Sangue de Cristo, sejamos um só corpo (e isso nós to pedimos, Senhor).

Resumindo: dando graças por sermos o verdadeiro Corpo de Cristo – o que significamos comendo e bebendo do mesmo pão e do mesmo vinho colocados sobre a mesa, à volta da qual, como irmãos, nos reunimos -, mas ao mesmo tempo, participando desse sinal sacramental, pedimos que sejamos, continuemos a ser, esse corpo.

Nós, os cristãos, nunca nos sentamos em cima de nada, nunca temos certezas definitivas, se somos o que somos, sabemos que podemos deixar de o ser. Damos, portanto, graças por ser o que somos, mas ao mesmo tempo pedimos que continuemos a sê-lo. Damos-te graças, Senhor, e pedimos-te, Senhor. É alimento que se toma ao chegar a casa, cansado, em fim de dia; mas é-o também para dar forças para a jornada que prossegue, que somos um povo a caminho.

Por tudo isto é que o Vaticano II disse que a Eucaristia é ponto de chegada e ponto de partida, fonte e cume da vida da Igreja e o centro da assembleia dos batizados (PO 5).

Arlindo de Magalhães, 31 de maio de 2018

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Diante de Deus

Niku Guleria, ‘Trinity’, https://www.mojarto.com/artworks/niku-guleria-26057/trinity-227965

Esta questão de Deus – do Criador ao Redentor – está presente em todas as páginas da Escritura, ele e a sua revelação a Israel: “Vós dizeis: a maneira de proceder do Senhor não é justa”. Dificuldade de Israel e nossa, a de acusarmos Deus quando qualquer coisa (parece que) não funciona. É também o nosso modo de o procurarmos, de nos interrogarmos sobre Ele: quem é Deus?, que é Deus?

O Pe. Congar, um dos maiores teólogos do Vaticano II, escreveu uma vez que “talvez a maior desgraça do catolicismo moderno tenha sido a de haver-se convertido numa teoria sobre o em si de Deus e da religião, esquecendo-se da dimensão do para o homem que o próprio Deus e a religião encerram. O homem e o mundo sem Deus com que nos enfrentamos atualmente nasceram em parte como reação contra esse Deus sem homem e sem mundo”.

Para que serve Deus ao mundo e ao homem? Parece que, na prática, Deus é mais facilmente abordável pela negativa que pela positiva. Antigamente, o catecismo e a própria filosofia procediam pela afirmativa: Deus é um ser eterno, omnipotente e omnisciente, criador e senhor de todas as coisas.

Mas esse Deus morreu. Digamos que Jesus acabou com ele: Pai nosso (Aba!) e Reino de Deus são agora duas palavras indispensáveis para entendermos o Deus de Jesus Cristo. Pai nosso, expressando assim a intensa relação que o próprio Jesus mantinha com ele e mantém connosco, e Reino porque a paternidade de Deus só tem sentido se nos aponta a vida nova de Jesus que nos falou com a sua vida e ensinamentos.

Perante um Deus legal ou moral, fechado em normas e preceitos positivos, Jesus falou-nos de um Deus que aponta o amor sem fronteiras, convidando-nos a que sejamos bons como Deus o é (Mt 5,21-48).

Diante do Deus que se afirmava à custa do homem – e por isso o homem estava ao serviço do Sábado (de Deus) e do Templo – Jesus falou de um Deus que quer saciar toda a fome e toda a sede do homem, um Deus para quem até o sábado e o Templo estão ao serviço do homem (Mc 2,23 ss.).

Diante de um Deus com quem o homem unicamente se podia relacionar chamando-lhe “Senhor! Senhor!” e a quem devia oferecer sacrifícios sem se preocupar com o irmão, Jesus falou de um Deus que prefere a misericórdia ao sacrifício e que exige a reconciliação e a fraternidade para que o culto seja verdadeiro e o templo não se converta numa choça num pepinal (Is 1,8).

Diante do Deus dos que viviam aferrados às tradições humanas (os que lavavam sempre as mãos antes de comer mas não se preocupavam com o mal que lhes saía do coração) e que passavam ao largo dos caídos na valeta do caminho para não incorrerem em impureza, Jesus falou de um outro Deus que nos remete sempre para o fundamental, o Deus do bem, da honradez e da justiça, da sinceridade, da compaixão e da misericórdia (Mt 5,1-8 e 23,13-28; Lc 10.30-37).

Diante do Deus do perdão calculado – até sete vezes? -, Jesus falou do Deus do perdão sem limites – setenta vezes sete, isto é, sempre (Mt 18,21-22).

Diante do Deus que tolerava o serviço a outros senhores – dinheiro incluído -, Jesus reclamou a entrega exclusiva ao Deus verdadeiro e o abandono de todos os ídolos (Mt 6,24, 13-44-46, 19,16-24).

Diante do Deus do fariseu e do irmão mais velho do pródigo que se apresentavam com créditos recolhidos e se julgavam com direito de desprezar os pecadores, o Deus de Jesus optou por estes últimos, publicanos e prostitutas, os perdidos e os que não contam (Mt 21,28-32; Lc 15,1-32 e 18,9-14).

Diante do Deus do poder que se impunha e que castigava, do triunfo que esmagava e deslumbrava, o Deus de Jesus que respeita o homem e a sua liberdade, que possibilita e pede a resposta de uma fé livre e adulta (Mt 4,1-11, 12,38-40, 16,1-4).

Diante do Deus dos sábios e entendidos > o Deus dos pequenos e dos simples (Mt 11,25); do Deus dos arrogantes e poderosos > o dos humildes (Lc 15,32); do Deus dos ricos, dos saciados e dos que riem > o Deus dos pobres, dos famintos e dos que choram.

Podíamos continuar com as contradições, mas ficamos por aqui. Jesus falou de um Deus Pai e do seu Reino de quem nos aproximamos pelo amor pessoal e livre, pela bondade infinita, pelo amor fraterno, pelo perdão sem limites, pela misericórdia escandalosa, pela graça incomodativa que se derrama sobre todos os homens. Ele apresenta-se como pai de todos mas proclama claramente a sua preferência pelos perdidos e pelos simples, pelos pecadores e pelos pobres. Um Deus possessivo e exigente, mas ao mesmo tempo um Deus que declara a vaidade dos ídolos (chamem-se dinheiro, nacionalismo, terrorismo, o que for) e a validade do ser humano. Para este Deus de Jesus, a pessoa tem um valor único e nada pode ser feito contra ela, tão pouco a lei, o culto ou o sacrifício, isto é, possa embora tudo isso apresentar-se enganosamente como seu serviço.

… por isso é que ele – Jesus, o Servo de Iavé, ontem e hoje – foi crucificado!

E diante de um Deus assim, nada nem ninguém, nem a letra da Lei, nem qualquer dos seus sacramentos ou sinais, a Igreja que seja, pode mais ou é mais que o significado, o próprio Deus.

Arlindo de Magalhães, 27 de maio de 2018

No Mundo, para o Reino

Caspar David Friedrich, ‘Templo de Juno em Agrigento’, 1830

Não há dúvida, meus irmãos: “Em virtude da dignidade batismal comum (a todos os batizados), o leigo é corresponsável, juntamente com os ministros ordenados e os/as religiosos/as da missão da Igreja” (CL 15,1). Ponto final parágrafo.

Todos somos, portanto, sujeitos da ação pastoral da Igreja. E, “os leigos, sejam quais forem, são todos chamados a concorrer, como membros vivos e com todas as forças que receberam da bondade do Senhor e por graça do Redentor, para o crescimento da Igreja e sua contínua santificação” (LG 33,1).

Mas o pós-Concílio faria uma precisão:

“a vocação específica dos leigos coloca-os no meio do mundo e à frente das tarefas as mais variadas na ordem temporal. (…) A sua primeira e imediata tarefa não é nem a instituição e o desenvolvimento da comunidade eclesial — esse é o papel específico dos Pastores — mas sim o pôr em prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes nas coisas do mundo. O campo próprio da atividade evangelizadora dos leigos é o mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos mass media e, ainda, de outras realidades abertas à evangelização como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional …” (EN 70,2).

Recordado isto, é preciso não esquecer o que já o Concílio prevenira: “A ação dos leigos dentro das comunidades eclesiais é tão necessária que, sem ela, o próprio apostolado dos pastores não pode conseguir, a maior parte das vezes, todo o seu efeito” (AA 10).

Nesta linha, porém, o mesmo Concílio deixou bem claro que “os presbíteros têm como primeiro dever anunciar a todos o Evangelho de Deus”, “exercem de modo eminente na Liturgia o seu múnus sacerdotal” e assumem “o múnus de Cristo-cabeça reunindo, em nome do Bispo, a família de Deus como fraternidade bem unida” (PO, 4, 5 e 6).

Resumindo. Cuidar da comunidade como um sinal do Reino dado ao Mundo é tarefa que cabe prioritariamente aos pastores; e construir o mundo segundo o Reino de Deus é a tarefa prioritária dos leigos.

É de Novembro de 75 um dos nossos grandes textos fundantes Destruir o Templo e descer o Monte (Folha dominical 28). Hoje, admiro-me dele, até da qualidade da formulação. Andou aqui por certo outra mão!

“Estamos habituados a enterrar os talentos, cá dentro do templo! E por isso não se sente no mundo a presença salvadora da Igreja. Mas como se há de sentir, se ela enterra os talentos debaixo de telhas? (…) É uma linguagem figurada esta. Precisamos de destruir o Templo. (…) Precisamos de deitar abaixo esta igreja velha, para que possa surgir a nova, Igreja de Pedras vivas, de cristãos conscientes e fortes na sua fé, caminhando seguros na Esperança do Reino, unidos, portanto na verdade da Caridade; Igreja que seja, de facto, Povo de Deus peregrino, em comunhão. Tudo o mais não interessa, tudo o mais é para destruir: destruir o Templo. E ao mesmo tempo, descer o Monte. A vida é lá em baixo, o mundo é lá em baixo, e a Igreja é para o Mundo, a Igreja não existe só nem principalmente dentro de portas. O horizonte da Igreja é o Mundo. (…) Destruir o Templo e descer o Monte – é a tarefa. Descer o Monte para lá em baixo, no Mundo, investirmos o nosso capital, a Palavra de Deus e o seu Espírito, originando presença salvadora. Descer o Monte para voltarmos a subi-lo, constituídos já um Templo Novo, Igreja de Pedras vivas”.

Leonardo Boff explicou muito bem: “a Igreja é aquela parte do Mundo que, na força do Espírito, acolheu o Reino de forma explícita na pessoa de Jesus Cristo… Não é o Reino, mas o seu sinal (concretização explícita) e o instrumento (mediação) da sua implementação no Mundo”.

É já um pouco velhinha esta linguagem, não é? Mas, não há muitos anos, os bispos portugueses disseram que “as profundas mudanças sócio-religiosas da sociedade portuguesa exigem uma fé adulta, esclarecida e fundamentada, que acompanhe a marcha da vida humana”.

É que — formulo eu — a Igreja caminha no Mundo e com ele para o Reino (Vaticano II, Gaudium et Spes, n.os 44 e 45).

Arlindo de Magalhães, 20 de maio de 2018

Abertura

Mosaico, igreja de Sant’Apollinare Nuovo, Ravenna (Itália), séc. VI

Nestes domingos do Tempo Pascal, o Livro dos Atos dos Apóstolos conta-nos os grandes desafios e as enormes descobertas da Igreja Primeira. Porque os cristãos de Jerusalém vinham todos do judaísmo, viciados pelo seu particularismo, o Povo de Deus entendido como uma raça, filhos de Abraão segundo a carne. Todo o universalismo lhes aparecia como um perigo de que se defendem, e não como apelo.

Este perigo correu-o também a Igreja: foi um grande passo ela ter entendido que para se ser cristão não era necessário ser-se judeu, ter ela entendido que o cristão estava mesmo liberto de lei de Moisés.

É o episódio de Cornélio (10,1-45), um militar romano que, no mínimo, andava perto do Deus de Israel. Encontrando-se com Pedro, este começou, primeiro, por estranhar o facto, mas depois rendeu-se à realidade: “Reconheço, na verdade, que Deus não faz aceção de pessoas, pois que a qualquer povo que o leve a sério e ponha em prática a justiça lhe é agradável”. Este facto marca uma mudança de atitude da parte dos primeiros cristãos. O Livro dos Atos faz imediatamente uma síntese da nova postura, afirmando: “O Espírito desceu sobre todos os (pagãos) que ouviam a Palavra de Deus. E os crentes de origem judaica ficaram cheios de assombro por se ter derramado também sobre os pagãos o Espírito Santo”.

Esta mudança da atitude da Igreja Primitiva não foi certamente assim tão repentina como isso: foi preciso apontar e desbravar caminhos, no sentido de, com o tempo, toda a Igreja caminhar em conjunto.

E Pedro, presidindo à Igreja em nome de Cristo, terá sido o primeiro a abrir a porta da Boa Nova aos pagãos.

Porque todo e qualquer homem é membro de uma Humanidade amada por Deus e trabalhada pelo Espírito que não conhece fronteiras, pois sopra onde quer, quando quer e como quer. A Igreja não tem o exclusivo do Espírito, embora seja seu Sinal no meio de todos os povos da Terra. Entender a Igreja como um Povo de Deus tal como nos apresentou o Vaticano II gerou um dinamismo que a Teologia antiga desconhecia: porque todo o Homem está verdadeiramente “orientado” para o Povo de Deus que tem na Igreja a sua realização sacramental, Corpo de Cristo no Tempo e na História. Diremos que a Igreja é a “perspetiva” de todo o Homem.

A esta conceção dinâmica corresponde uma outra: todo aquele que não acredita que Jesus é o Filho de Deus pode estar, no entanto a caminho dele. Um dia, embora para muitos esse dia nunca nasça, um Homem entrará na sua casa, tal como um Irmão entre em casa de seu Pai.

A novidade desta perspetiva assim tão rapidamente esboçada, tem levado, quantas vezes, tratos de polé ao longo da História. Os muros abatidos por Pedro e seus contemporâneos na Igreja Primitiva foram de novo reedificados: estes ou outros.

A abertura da Igreja a áreas de pensamento ou de ação das quais tradicionalmente se defendia é do nosso tempo. O Ecumenismo, por exemplo. Não vão longe os tempos em que o “terreno” da Igreja terminava exatamente com o “muro” que a dividia dos “irmãos separados”, então chamados e considerados “hereges”.

O Ecumenismo é só um exemplo. Que, se recuarmos alguns séculos, a autonomia do Político, da Liberdade, da Democracia, dos novos caminhos e direitos do Social, a organização do Trabalho e da Economia e questões afins como, por exemplo, a Propriedade, ou questões de ponta como a Sociedade de Consumo e Globalização, a Biologia, a Genética…

O Homem, todo o Homem, é campo da criação e afirmação do Espírito. Será sempre grande, na Igreja, a tentação de o domesticar, de o não deixar romper os quadros do instituído; dizendo doutro modo: de não admitir que “Deus não faz aceção de pessoas”. Esta a tentação, a de o pensarmos.

Porque a atitude cristã tem de ser bem diferente: “o que vos mando é que vos ameis uns aos outros”. Porque ele, o Espírito de Deus, rebenta por aí, no coração e na casa de qualquer Cornélio, pagão que seja.

Não esquecerei nunca o que o Vaticano II disse quase no fim da sua realização: A Igreja

“verifica com gratidão que, tanto no seu conjunto como em cada um dos seus filhos, recebe variadas ajudas dos homens de toda a classe e condição. Na realidade, todos os que, de acordo com a vontade de Deus, promovem a comunidade humana no plano familiar, cultural, da vida económica e social e também política, seja nacional ou internacional, prestam não pequena ajuda à comunidade eclesial, na medida em que esta depende das realidades exteriores. Mais ainda: a Igreja reconhece que muito aproveitou e pode aproveitar até da oposição daqueles que a hostilizam e perseguem” (nº 44).

Assim seja!

Arlindo de Magalhães, 6 de maio de 2018

A videira

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Há oito dias, ouvimos que ele era pastor. Jesus utilizava estas analogias, fazia estas comparações, para explicar.

Nós, humanos, duros de cabeça, nem sempre o entendemos. “Eu sou um pastor bom,…, que cuida bem das ovelhas”. Foi isto que ele disse. Mas o séc. XIX acrescentou: se ele é pastor, nós somos ovelhas. Por isso, escreveu o teólogo do séc. XIX/XX:

“… Igreja é por essência uma sociedade desigual, isto é, uma sociedade que abrange duas categorias de pessoas, os Pastores e o rebanho, …. E essas categorias são tão distantes entre si, que só no corpo pastoral residem o direito e a autoridade necessária para promover e dirigir todos os membros ao fim da sociedade [que é a Igreja]; quanto à multidão, essa não tem outro dever senão o de se deixar conduzir e, rebanho dócil, seguir os seus Pastores” (Pio X, 1906).

Asneiras, palermas: Jesus nunca disse que a Igreja é uma carneirada. Disse, sim, que o pastor (eclesial, da Igreja) tinha de ser tão bom como o pastor do rebanho. Tão só!

Jesus utilizava estas analogias. Hoje, a da videira: «Eu sou a verdadeira cepa e meu Pai é o agricultor». Na Palestina, terra meia desértica, cultiva(va)-se o vinho; mas era um cultivo difícil, trabalhoso e pouco rentável. Por isso, particularmente cuidado e querido. Ou não dissesse a Escritura que “o vinho alegra o coração do homem”! (Sl 104,15). Não vou agora explicar que a cultura do vinho é complexa — podar, sulfatar, vindimar, pisar, trasfegar, engarrafar, e faltam ainda aqui muitos verbos correspondentes a outros tantos cuidados — mas chamo a atenção para a complexidade da planta a que podemos chamar videira: uma videira, que também pode ser bacelo, tem raiz, tem cepa (e não tronco), sarmentos, gavinhas e parras (não folhas), e também tem cacho. Apesar de tudo isto, no entanto, todas estas suas muitas partes – deixem-me dizer assim –, todas juntas, perfazem um todo.

Jesus quis explicar o que Paulo diria mais tarde aos coríntios: “Vós sois o corpo de Cristo”, “assim como o corpo é um só e tem muitos membros”. “O corpo não é composto de um só membro, mas de muitos”. “E cada um é um membro”. E cada membro (aqui, a palavra membro designa uma qualquer parte do corpo, seja o braço ou a bexiga), cada membro tem a sua função: “o olho não pode dizer à mão: não preciso de ti” (1 Cor 12,12-27).

Sabemos que esta analogia – comparação entre a Igreja e o corpo – fez um grande caminho na teologia que levou ao Vaticano II, mas que se tinha perdido no tempo longo da Igreja. E sabemos também que esta analogia (comparação) entre um corpo e a Igreja foi suplantada, no Vaticano II, pela imagem de Povo: a Igreja é um corpo, sim, mas é também — pode afirmar-se com clareza, e o Vaticano assim o fez — um corpo social onde cada um é cada um e todos são um, um Povo de iguais, mas também, sobretudo?, capaz de criar cultura.

Jesus falou aos homens na linguagem do seu tempo, na cultura do Povo a que pertencia, tão diferente da do nosso tempo. Muita da incapacidade de a Igreja falar aos homens de hoje nasce aqui: a questão da linguagem. Agarrada que está a uma cultura do passado, a Igreja tem dificuldade em falar a linguagem de hoje. Um homem com a cultura do séc. XIX, que sabe o que são as chedas, certamente não sabe o que é um Backup (embora, porventura, já saiba o que é um bar ou um fino).

Hoje é preciso fazer um grande esforço para traduzir as parábolas de Jesus de modo que as entendam os nossos «filhos do asfalto»!

Na antiga Palestina, a videira, a figueira, a oliveira e o cedro, até os sicômoros de Amós (7,14) eram as plantas mais características da paisagem. Por isso aparecem muitas vezes no imaginário do texto bíblico. A cultura da vinha, particularmente querida e trabalhosa, entrou também, por isso, no mundo simbólico da Escritura: a Vinha é o Povo de Israel. Todos recordamos, entre muitas outras passagens, o célebre Canto da Vinha, de Isaías (cap. 5). O que não fez o vinhateiro pela sua vinha! Assim Jesus: «Eu sou a verdadeira cepa e meu Pai é o agricultor».

Sempre que o evangelista põe na boca de Jesus a afirmação «eu sou», está a fazer uma comparação de valor simbólico. “Eu sou” aparece inúmeras vezes no 4º Evangelho: «eu sou» o pão da vida, sou a água viva, a luz do mundo, a porta, o bom pastor, o caminho, a verdade e a vida, a cepa, etc. “Eu sou a cepa”. Jesus é parte da realidade complexa – apetece-me dizer coletiva – que é a videira, mas não esquece nenhuma das partes em que ela se divide, explorando assim a evidência de que as vides (ou varas nascidas da cepa) não subsistem se cortada a ligação com a totalidade da planta.

O evangelista está assim a falar da e à Comunidade dos cristãos. E, aqui chegado, é muito claro: «Se alguém permanece em mim e eu nele, dará muito fruto, porque sem mim nada podeis fazer». Este discurso – que é de um discurso que se trata – terá um natural seguimento de hoje a oito: «Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor. É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros».

O que sejam uma videira, a cepa, as vides ou sarmentos, e mesmo os cachos, são palavra que hoje já não se usam, no supermercado ninguém pergunta “onde há cachos?”, mas simplesmente “onde há uvas?”.

Explicar estas coisas é muito complicado. Mas estas parábolas, alegorias ou até provérbios são carregadas de riqueza!

Arlindo de Magalhães, 29 de abril de 2018

Povo de Deus

Numa cultura – a bíblica – que era também, ou mesmo sobretudo, pastoril, a figura do pastor era determinante.

Porque convivia muito de perto com a realidade da vida pastoril, também a cultura bíblica de há muito se servira da analogia. Iavé é o verdadeiro pastor (Sl 23,1) e Israel o seu rebanho (Is 40,11). Daí a profissão de fé: “O Senhor é meu pastor, nada me pode faltar. Leva-me a descansar em verdes prados…”.

É nesta perspetiva que Jesus se diz um bom pastor: “Eu sou o bom pastor, … conheço as minhas ovelhas … e dou a vida por elas” (Jo 10,11, 14 e 15).

Esta é a genuína imagem bíblica.

Só que…, tirou-se dela uma conclusão indevida: … e vós sois as ovelhas, o rebanho, vós, isto é, aqueles que na Igreja não são pastores.

A autoconsciência da Igreja tinha chegado ao mais baixo, apesar de ter passado pela imagem da Igreja ser um corpo.

Porém, no Concílio Vaticano II, quase sem ninguém dar por ela, surgiu de repente a ideia que haveria de se impor: a Igreja é um Povo. Esta afirmação provocou uma verdadeira revolução eclesiológica. Porque um Povo é muito mais que um corpo, muito mais rico: primeiro, é verdade, é também, composto dos muitos que, pelo Batismo, são radicalmente iguais em direitos e deveres, não há mais pastor e ovelhas, não há mais os de cima e os de baixo; é composto de muitos igualmente capazes cada qual em seu lugar (de vida), e finalmente um organismo vivo que produz cultura (cada povo tem a sua, desde logo a língua que fala).

Passaram-se muitos séculos: Igreja é um rebanho?, sim mas… não é uma carneirada!, é um corpo?, sim mas… não doente nem mutilado!, é um povo?, sim…   mas não uma democracia! O mesmo Concílio Vaticano II o diz de outra maneira: “a igreja seja em Cristo como que — é muito importante este como que, veluti em latim — o sacramento ou sinal e o instrumento da íntima união Deus e com todo o género humano” (LG 1).

Tudo isto já está soprado pelo Espírito de Deus. O que falta para levar à prática numa Igreja universal, tão grande, composta de tantas igrejas locais tão diferentes, “ela [que] entra na história dos homens ao mesmo tempo que transcende os tempos e as fronteiras dos povos” (LG 9), ela que “fomenta e assume as qualidades, as riquezas, os costumes e o modo de ser dos povos” (LG 13). E isto é tão difícil! Tão difícil numa pequena comunidade de 300 ou 400 pessoas! Tão difícil numa igreja local, uma diocese! Tão difícil numa Igreja continental. Tão difícil na Igreja à escala mundial!

Mas isto é também tarefa. Tarefa das bases, das comunidades e das Igrejas, tarefas dos que, nas igrejas, presidem em nome do Senhor.

O Espírito do Senhor cubra com a sua sombra o presente da Igreja. “A condição deste Povo é a dignidade e a liberdade dos filhos de Deus, a sua lei é o mandamento novo, e tem por fim o Reino de Deus!” (LG 9).

Ouvi-nos, Senhor!

Arlindo de Magalhães, 22 de abril de 2018

Emaús

Rowan LeCompte (American, 1925–2014) and Irene Matz LeCompte (American, 1926-1970), “Third Station of the Resurrection: The Walk to Emmaus” (detail), 1970. Mosaic, Resurrection Chapel, National Cathedral, Washington, DC. Photo: Victoria Emily Jones.

Dois discípulos fugiam de Jerusalém, de tudo quanto ali se vivera, isto é, da recordação de Jesus. Não acreditaram nem sequer no testemunho das mulheres que tinham afirmado havê-lo visto ressuscitado. Pareceu-lhes definitivo que a aventura de Jesus fora um belo sonho, mas também um penoso engano. Portanto, esquecer, e quanto mais depressa melhor: a vida não se pode edificar sobre palavras loucas, como as das mulheres do sepulcro.

Fugiam, pois, pelos caminhos da Judeia, como certamente outros, que, como eles, se deixaram fascinar por Jesus, mas que, pouco a pouco, e mesmo antes da sua morte, concluíram que se haviam enganado. Não era aquilo nem aquele que eles esperavam. Eles mesmos o confessaram: esperávamos que fosse ele quem havia de libertar Israel!

Abandonaram, portanto, o grupo. Parecia o princípio do fim: a desagregação dos discípulos de Jesus.

Um deles chamava-se Cléofas. Do outro, nem o nome ficou. Fugiam de Jesus, mas não esquecidos dele. É assim que se foge de alguém que já se não ama… mas se não esquece.

Paradoxalmente, no entanto, a sua fuga foi o princípio de um novo encontro e agora definitivo. Diria talvez melhor que quem nunca duvidou não é capaz de acreditar. A intenção de refazer tudo tranquilamente e sem cruz é muito forte na vida de um homem. Mas só os mais audazes são disso capazes. Foi então que apareceu o terceiro.

Começou por se interessar pela dor dos dois, deixando-os falar e explicar-se. Disseram da sua desilusão, que não entendiam o sentido da morte de Jesus, que esperavam que ele viesse como messias triunfador, com a força da sua glória, talvez a restauração nacional e política de Israel, e, afinal, acabaram foi a assistir à morte de um pretendente messiânico.

Notável a maneira como o terceiro se posicionou perante eles. Entrou com jeito: Que palavras são essas que trocais? Será que, por baixo da deceção dos que fugiam, havia ainda qualquer coisa?

E, ao longo da estrada – andar a pé, mesmo que não seja numa peregrinação, faz muito bem! -, a conversa animou. Eles reconheceriam mais tarde que o nosso coração ardia quando ele nos falava pelo caminho.

Emaús não era muito longe de Jerusalém, mas dava tempo. Por isso foi possível, começando por Moisés e passando por todos os profetas, explicar-lhes em todas as Escrituras onde estava previsto que a história do Povo de Deus e, afinal, toda a Revelação culminassem na morte do Messias. Dar a vida para a ganhar, era a questão.

A caminhar, muita coisa se prepara! E depois as coisas acontecem. Quando chegaram, não vás, fica aqui!, já é noite!, então ele pegou no pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho…, onde é que eu já ouvi isto, ou, onde é que eu costumo ouvir isto?

Por isso é que só a Um Povo a caminho, a um povo pascal em marcha, se abrem os olhos.

Partir o pão é essencial. E era fundamental entre os primeiros: eram assíduos à fração do pão (At 2, 42).

É fundamental, mas é contrário ao que hoje se vê e faz. Perdeu-se o sentido do bem comum e o primado do destino universal dos bens: poucos com quase tudo e a maior parte com quase nada. Já passaram 2.000 anos, mas a política é sempre a mesma.

É preciso começar a voltar a Emaús. Um dia destes. Para vermos com os olhos.

Arlindo de Magalhães, 15 de abril de 2018

O primeiro dia da semana

La Capilla del Hombre. OSWALDO GUAYASAMÍN (1919-1999)

É a história que o garante: o «dies Domini» ou «dies dominica», o Dia do Senhor, o Domingo, é o dia 1 da Ressurreição, o dia da Eucaristia e da Assembleia, o dia que diz e faz a Igreja.

A Lei fizera o Sábado, mas o Domingo criaram-no os cristãos, olhos postos na Ressurreição de Jesus. O Domingo é o fruto histórico e temporal da Páscoa.

Na Igreja, é assim que se faz Teologia, porque a Igreja é o lugar onde a Fé trabalha os «materiais» (as pessoas, as coisas, os casos e as questões, os símbolos e os sinais), onde a Esperança aponta o Futuro e a Caridade anima os Irmãos com os olhos na Cidade de Amanhã.

Por isso a Igreja é capaz de rupturas, de cortar com o Passado, reinventando o Presente na mira do Futuro e na fidelidade às coisas essenciais. A Igreja rompeu com o Sábado do passado judaico e criou um Tempo Novo, mais do que um «primeiro dia» um «oitavo dia», um «dia a seguir ao Sábado», sinal antecipado e imagem do tempo Futuro (S. Basílio, sec IV).

Por tudo isto, o «primeiro dia da semana» foi desde o início uma referência fundamental para a Comunidade primitiva. Porque foi no «primeiro dia da semana» que o Senhor ressuscitou.

Veio a ter nome próprio este dia. Ficou o 1º da semana. Os Judeus chamavam-lhe o Sabat (o dia do descanso ou de Iavé), povos havia que o diziam dia do Sol, mas desde o princípio que para os cristãos foi sempre o primeiro dia da semana, pois que a ressurreição do Senhor, acontecida exatamente no «primeiro dia da semana» e não no último, marca e consagra a rutura com o universo e a prática religiosa do Antigo Testamento.

Os escritos do Novo Testamento – as primeiras reflexões levadas a cabo nas comunidades do início – dão conta disto mesmo: não é por acaso, por exemplo, que o Ressuscitado «aparece» invariavelmente no «primeiro dia da semana».

Por isto é que o Domingo é tão importante para os cristãos. E vamos lá entender-nos: o domingo é assim não por causa da Eucaristia que neste dia se celebra; a Eucaristia é que se celebra preferentemente neste dia por causa da importância do Domingo.

Por isso, este dia, «ordena e persuade o Povo a ser fiel em reunir-se, a fim de que ninguém diminua a Igreja por deixar de frequentá-la e assim o Corpo de Cristo não fique privado de nenhum dos seus membros» (Didascália, escrito do séc. III).

«Nós não podemos privar-nos da assembleia dominical… não podemos passar sem o Domingo», argumentavam no séc. III os Mártires do Domingo que resistiram até à morte ao decreto do imperador Diocleciano que proibia a sua observância.

Os tempos eram outros. Sabemos quanto o Domingo moderno se carregou de atrativos e chamarizes: do espetáculo ao desporto, da vida ao ar livre às possibilidades trazidas pela mobilidade moderna.

Eu penso, no entanto, que o Domingo está a morrer. Está a morrer o seu lado celebrativo cristão e está a morrer porque a Igreja ainda não pegou no tema “Quem para presidir à celebração da Eucaristia no primeiro dia da semana?”. 

Ma o domingo será a nossa marca distintiva. Queiramos ou não.

Há muitos anos já, de visita a um país não católico, quando me informei se e a que horas havia missa no dia seguinte, um domingo, disseram-me que às sete da manhã. Não me agradou muito a perspetiva de me levantar de madrugada, mas lá fui. Quando cheguei, encontrei um pequeno núcleo de cristãos: apenas 17. E só depois percebi tudo. País muçulmano que era, o dia sagrado defendido pela legislação civil era a nossa 6ª feira; no entanto, no «primeiro dia da semana», antes do trabalho, fábrica ou escritório, os 17 cristãos da cidade, na igrejinha católica que eu procurara, reuniam-se às sete da manhã para celebrar a Ressurreição do Senhor!

Arlindo de Magalhães, 1 de abril de 2018

Morte do Senhor

Fusilamiento. OSWALDO GUAYASAMÍN (1919-1999)

Contemplação da Paixão

Eu te bendigo, ó Pai, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos! (Mt 11,25). Porque é que a fé não é uma questão de inteligência?, perguntam muitos e temem tantos. Porque é que a fé não é uma simples questão de Lei ou de vontade? Como é difícil aos ricos, aos sábios e aos inteligentes! Um coração cheio já tem que chegue. Eu te bendigo, ó Pai!

Nós não saberemos, jamais entenderemos,

a dor que te causamos!

Aquele que eu beijar, é ele: prendei-o! (Mt 26,48). “Com uma prova de amor, fazes uma ferida! Com uma expressão do mesmo amor, derramas sangue! Com um gesto de paz, geras a morte!” (Sto Ambrósio). Com um beijo, entregas o Filho do Homem, Judas! (Lc 22,48). E um dos que come contigo e do mesmo prato, te entregará (Mt 26,23)!

Povo meu, que te fiz eu?,

Que mal te causei? Não me dirás?

Mete a espada na bainha, pois que quantos se servirem dela por ela morrerão trespassados! (Mt 26,52). A força da espada ou a paz da justiça? Diante dos milhões de vítimas de todos os conflitos e focos de guerra do nosso mundo, recordados das palavras que disseste: Dou-vos a Paz, deixo-vos a minha paz…, continuamos a pedir-te: Dá, Senhor, a paz aos nossos dias!

Nós não saberemos, jamais entenderemos,

a dor que te causamos!

A criada olhou-o e disse: Tu também és discípulo dele, Pedro! Mas ele disse: Não o conheço! (Lc 22,56-57). Mentira! Que amigos eles eram! Tinham-se encontrado havia muito tempo já, uma tarde, numa qualquer praia do mar da Galileia. Ele era um homem impulsivo, é verdade, mas débil. E um tinha ensinado ao outro aquelas artes do mar e da pesca. Depois, veio a profissão de fé em Cesareia: Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo! (Lc 4,41). E mesmo assim…

Povo meu, que te fiz eu?,

Que mal te causei? Não me dirás?

Pilatos fez-lhe muitas perguntas, mas ele nada respondeu! (Lc 23,9). Diante de tantas certezas — quem és tu?, que disseste? que fizeste?—, tu, o Verbo enviado pelo Pai, poderoso em palavras e em obras (Lc 24,19), calaste-te, enquanto a multidão gritava: Crucifica-o! À morte!

Também nós te damos graças, ó Pai, pelos grandes silêncios da Natureza e da Música, da Poesia e da Arte, da austeridade monástica e da penumbra do românico, da luminosidade do gótico e mesmo da sensualidade do barroco e da pobreza do romântico. É pelo silêncio de todos os homens que, podendo responder, não o fazem, que o silêncio é de ouro!

Nós não saberemos, jamais entenderemos,

a dor que te causamos! 

Pilatos mandou vir água, lavou as mãos e disse: Estou inocente! (Mt 27,24).

Claro que não estamos convencidos que Pilatos estivesse inocente. Mas não esquecemos, Senhor, os que, de facto, estão inocentes: todos os que não deixam ir os pobres de mãos vazias mas se esforçam por tirá-los da sua miséria; todos os que condenam as mãos cheias que se enchem sempre de mais bens e que todos os dias se banqueteiam diante de Lázaro; todos os que se aproximam dos caídos nos caminhos da vida e os conduzem às albergarias nas suas próprias montadas. E ainda pagam o azeite! O que fizerdes a um dos mais pequeninos…

Povo meu, que te fiz eu?,

Que mal te causei? Não me dirás?

Um dos guardas deu-lhe uma bofetada e Jesus replicou:Se disse mal, mostra-me o quê! Mas se disse bem, porque me bates”? (Jo 18,22-23).

No meio e no seio das economias do Horror Económico que vivemos e cujas vaidades e maldades é preciso continuar a desmascarar, urge testemunhar o poder da Economia da Graça! Não acumuleis tesouros na terra, que a traça e a ferrugem corroem-nos e os ladrões rebentam muros [e cofres]: acumulai antes tesouros no céu. Porque, onde estiver o vosso tesouro, aí estará o vosso coração! (Mt 6,19.21).

Nós não saberemos, jamais entenderemos,

a dor que te causamos!

Os sumos-sacerdotes e os anciãos convenceram a multidão a pedir Barrabás e a exigir a morte de Jesus (Mt 27,20).

Perante tanta mentira e tanto suborno que fazem de nós o que não somos, por medo, por incoerência, por não querermos perder e desejarmos sempre ganhar e subir, todos continuamos a gritar: Esse Jesus, mata-o, antes queremos Barrabás!

Nós não saberemos, jamais entenderemos,

a dor que te causamos!

Como diz o Apóstolo, ele rebaixou-se até à morte, e morte de cruz (Fp 2,8), a mais ignominiosa, a mais violenta e cruenta de todas as mortes. Não havia nele crime algum. Então porque foste condenado à mais brutal e atroz de todas as mortes? Depois de ti, quantos não perguntaram já: Onde está Deus?, porque é que ele não aparece?, porque não ouvimos a sua voz? Mas ele, para espanto de todos, orou assim: Perdoa-lhes, ó Pai, que não sabem o que fazem!

Povo meu, que te fiz eu?,

Que mal te causei? Não me dirás?

Ao vê-lo expirar, o centurião disse: Verdadeiramente este homem era Filho de Deus! (Mc 15,39). E foi um pagão, um soldado romano, a constatá-lo! Calados os filhos de Abraão, gritaram as pedras! (Mt 3,9).

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Ceia do Senhor

La ultima cena. OSWALDO GUAYASAMÍN (1919-1999)

Meus irmãos:

No nosso tempo, lavar os pés a alguém é gesto anacrónico, necessário apenas se se trata de pessoas muito idosas… e que não cheguem já aos pés! Era, no entanto, um gesto de respeito e muita atenção no mundo antigo, em que os caminhos estavam cheios de pó que entrava por todos os poros.

Chegado à Liturgia por via da cena evangélica de João, na Idade Média, era o primeiro gesto de uma celebração batismal (era o bispo que lavava os pés ao batizado, como que fazendo o que o Senhor deixara dito: “como eu fiz, fazei vós também” (Jo 13,15): o batizado tinha de frutificar em obras de caridade. Depois, o monge, na celebração da sua profissão religiosa, lavava os pés aos que passavam a ser seus irmãos). Finalmente, o gesto entrou na Liturgia de 5ª feira Maior: lavavam-se os pés aos penitentes que neste dia eram reintegrados na comunhão eclesial; o que quer dizer que tinham sido colocados fora da Comunidade; para serem reintegrados na comunhão da Igreja tinham de cumprir uma espécie de catecumenato penitencial, dando provas de que estavam arrependidos do pecado gravíssimo que tinham feito: homicídio, adultério ou apostasia.

Aqui estais, portanto, Irmãos, no fim do vosso catecumenado, a lavar os pés a um batizado. “Reconhecerão que sois meus discípulos se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). A provar que estais maduros para a lei da caridade.

Em princípio, regressais à geral. Se é que na Comunidade há especial. E a geral é que, “na Igreja, nem todos seguem pelo mesmo caminho, mas todos são chamados à santidade. Reina igualdade entre todos quanto à dignidade e quanto à atuação, ambas comuns a todos os fiéis” (LG 32), sabendo embora que “o estado de vida laical tem na índole secular a sua especificidade” (CL 55,4).

De facto, “Do mesmo modo que num corpo vivo nenhum membro tem um papel meramente passivo, mas antes, juntamente com a vida do corpo, também participa na sua atividade, assim também no Corpo de Cristo, que é a Igreja, todo o corpo ‘segundo a função de cada parte, opera o próprio crescimento’ (Ef 4,16)” (AA 2,1). Nesta perspetiva, sendo “própria e peculiar dos leigos a característica secular (…), compete-lhes, por vocação própria, procurar o Reino de Deus tratando das realidades temporais e ordenando-as segundo Deus … concorrendo para a salvação do mundo a partir de dentro como o fermento” (LG 31,2).

 Trocando isto em miúdos: “O campo próprio da atividade evangelizadora dos leigos é o mundo vasto e complicado da política, da realidade social e da economia, como também o da cultura, das ciências e das artes, da vida internacional, dos mass media e, ainda, de outras realidades abertas para a evangelização, como sejam o amor, a família, a educação das crianças e dos adolescentes, o trabalho profissional e o sofrimento” (EN 70), isto é, “Os leigos não podem absolutamente abdicar da participação na política, ou seja, da múltipla e variada ação económica, social, legislativa, administrativa e cultural, destinada a promover orgânica e institucionalmente o bem comum” (CL 42,2).

No entanto, “Porque participam no múnus sacerdotal, profético e real de Cristo, têm os leigos parte ativa na vida e ação da Igreja. A sua ação dentro das comunidades eclesiais é tão necessária que, sem ela, o próprio apostolado dos pastores não pode conseguir, a maior parte das vezes, todo o seu efeito” (AA 10). Mesmo assim, “A primeira e imediata tarefa dos leigos não é a instituição e o desenvolvimento da comunidade eclesial – esse é o papel específico dos pastores – mas sim o pôr em prática todas as possibilidades cristãs e evangélicas escondidas, mas já presentes e operantes, nas coisas do mundo” (EN 70,2).

O futuro nos dirá se estais agora maduros para, no Mundo e na Igreja, serdes neófitos, isto é, novos iluminados (pela Luz que é Cristo) nesta viagem para o Reino que é a vida intra-histórica.

O Senhor esteja convosco!

Arlindo de Magalhães, 29 de Março de 2018

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Jeremias

‘Pleurs des Jérémie’ | Marc Chagall, 1956

Lemos aqui, a semana passada, uma página do primeiro Livro das Crónicas, afinal uma síntese da história israelita que se estende desde as origens — de Adão a Abraão (Isaac, Ismael, David, Salomão, etc.) — e vai até ao édito da libertação de Ciro, o rei persa que no ano 538 aC permitiu que os judeus desterrados na Babilónia voltassem a Jerusalém.

O Cronista dá uma visão da História passada, desde a origem do homem até ao restabelecimento do culto depois do desterro babilónico. Deus está de novo com o Povo no Templo a construir na cidade santa!, alegra-se o povo, até porque, o rei “mantê-lo-ei em minha casa e no meu reino e o seu trono será firme eternamente” (1 Cro 17,14). Todos, os reis e os profetas, punham os seus olhos no Templo e na teocracia (política religiosa).

Mas chegaram depois novas questões e novos profetas. Estes tinham começado a aparecer lá pelo séc. VIII aC, mas houve muitos mais (Amós, Oseias, Isaías…) que prometiam o florescimento de uma nova e verdadeira paz, e a ida a Sião de todos os povos.

No seguimento de leitura das Crónicas, a Liturgia de hoje apresenta um destes Profetas mais novos, Jeremias, o profeta chamado por Deus que lhe respondeu: Aaaaaaah, meu Deus, eu nem falar sei! E Deus respondeu-lhe: Não digas que não sabes falar. Irás aonde eu te enviar e dirás tudo o que eu te mandar. Não terás medo diante de ninguém pois eu estarei contigo (Jer 1,4-8).

E Jeremias foi e dizia o que via: Olho a terra, é um caos informe. Olho o céu, está sem luz. Os montes tremem, as colinas estremecem. Homens, não há; as aves fugiram do céu. A terra fértil é agora um deserto. As povoações foram arrasadas pelo Senhor, pelo incêndio da sua cólera! (4,23-26). Ouvem-se gritos de pavor, de terror e não de paz (30,5). De terras longínquas vem-nos o inimigo lançar gritos de terror contra as cidades de Judá. Ao ouvirem a cavalaria e a infantaria, os habitantes fogem (4,16.29). Ouço um grito, parece de uma mulher a dar à luz; é o grito angustiado de Sião (4,31).

Porquê assim? O meu povo esqueceu-me (18.15). Abandonou-me (2,13). Dia e noite, os meus olhos desfazem-se em lágrimas; o meu povo tem uma grande ferida, mas é uma chaga que não tem cura (14,17). Abandonou-me, a mim que sou uma fonte de água viva, e preferiu construir cisternas rotas que não conseguem reter as águas (2,13). Quem se compadecerá de ti, Jerusalém? Quem, no seu caminho, vai agora fazer um desvio, pequeno que seja, para te vir perguntar como estás? Abandonaste-me e voltaste-me as costas! (15,5).

Ai!, as minhas entranhas e o meu peito! Estou nervosíssimo e já me não posso calar (4,19). A minha dor não tem cura e o meu coração desfalece (8,18). Oh! Se eu tivesse uma fonte de água que me refrescasse a cabeça e uma fonte de lágrimas nos meus olhos, dia e noite choraria as chagas do  meu povo! (8,23).

Nesta situação, o profeta quase desespera: Ai de mim, mãe que me geraste: sou um homem de provocar fraturas e abrir contendas com todo o mundo! (15.10).

Mesmo assim, cumpria a sua missão. O Senhor enviou-me a profetizar contra este templo e esta sociedade (26,12). Emendai a vossa conduta e as vossas ações, e eu – o Senhor – habitarei convosco neste lugar; mas não vos iludais com razões falsas, dizendo “o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor”. Se emendardes conduta e ações, se julgardes os pleitos com retidão, se não explorardes o imigrante, o órfão e a viúva, se não derramardes sangue inocente neste lugar, se não seguirdes – para vosso mal – deuses estrangeiros, então eu habitarei para sempre no meio de vós neste lugar, na terra que dei a vossos pais, nos tempos antigos e para sempre (7,1-8).

Deste modo, o profeta extirpava falsas seguranças e ilusões, religiosa e politicamente equivocadas. Todo o seu ministério profético foi uma luta aberta e declarada contra qualquer forma de falsidade. Mas sobretudo Jeremias soube fecundar a história com a notícia de um futuro de graça e de novidade.

Vou reunir­-vos de todas as terras para onde, no furor da minha ira e no fundo da minha indignação, vos exilei. Conduzir-vos-ei a este lugar, para que, aqui, habiteis em segurança. Sereis o meu povo e eu o vosso Deus. Dar-vos-ei um coração puro e uma conduta íntegra. Respeitar-me-eis toda a vossa vida, para vosso bem e bem dos filhos que vos hão de suceder. Farei convosco uma aliança eterna e não me cansarei de vos abençoar. Ajudar-vos-ei a respeitar-me, a que não vos separeis de mim. Terei alegria em fazer-vos bem. Instalar-vos-ei de verdade nesta terra, com todo o meu coração e toda a minha alma.! (32,37.44).

Poderíamos recordar agora mesmo, e de novo, as palavras do Profeta lidas hoje na Liturgia.

No fundo, o que revolvia as entranhas e o peito do Profeta (8,8) era a consciência do amor de Deus pelo seu povo. Face ao que lhe parecia ser o fracasso da sua pregação e perante as ameaças de morte que lhe faziam os poderosos que o queriam calar, o profeta bem tentou retirar-se. Mas não conseguiu. Pelo contrário; fez das fraquezas forças, este que é um dos maiores profetas de Israel.

Ai daquele que constrói a sua casa sobre a injustiça e os seus aposentos com iniquidade! Ai daquele que obriga o seu próximo a trabalhar sem lhe pagar o salário! Ai daquele que diz: Vou mandar construir um grande palácio, salões espaçosos, com rasgadas janelas e tetos de cedro pintados de vermelho! Pensas que és rei só porque podes comprar cedro? Mas repara: o teu pai comia e bebia – e muito bem! – mas também praticava a justiça e o direito e partilhava do seu com os pobres e os indigentes. E isso é que é conhecer-me! Palavra do Senhor! Mas tu, pelo contrário, só tens olhos e coração para o lucro, para derramar sangue inocente, abusando e oprimindo (22,1-4.13-17).

Vamos denunciá-lo, vamos desfazê-lo e assim nos vingaremos dele (20,10) – ameaçava a multidão. Este homem merece a morte porque profetizou contra esta cidade, como ouvistes todos (26,22) – diziam os sacerdotes do templo de Jerusalém. Os que eram meus amigos espiam agora os meus passos (20.10) – lamentava-se o profeta.

O sacerdote Pachiur mandou [um dia] espancar o profeta e pô-lo no cepo da prisão (20,2), e o rei Sedecias deu ordens no sentido de que ficasse retido no pátio da guarda (37,21). Mas os dignatários disseram ao rei: “Morra este homem que desmoraliza os soldados e o povo da cidade com os seus discursos”… e prenderam-no na cisterna … que não tinha água, só lodo. E Jeremias ficou atolado no lodo (38,4-6).

A oração do profeta foi então assim: Tu, Senhor, que sabes tudo, lembra-te de mim, ampara-me e vinga-me dos que me perseguem; que eu não seja apanhado por eles (15.15); Escuta o que dizem os meus adversários. É assim que pagas o mal com o bem? Abriram uma cova para me tirarem a vida. Lembra-te de que me apresentei diante de ti a interceder por eles, a afastar deles a tua cólera (18,19-20); Seduziste-me, Senhor, e eu deixei. Dominaste-me e venceste. Mas agora eu sou objeto de contínua chacota, toda a gente escarnece de mim. Sempre que falo é para dizer Violência!, Opressão!. A tua Palavra tornou-se para mim motivo de insultos e escárnios, dia atrás de dia … Mas eu sei, Senhor, que estás comigo como poderoso guerreiro (20,7-18).

Numa época de infidelidade à Aliança, tocou a Jeremias uma tarefa difícil, a de anunciar um castigo de Deus. Tão difícil que, quando uma vez Jesus perguntou aos discípulos o que dele diziam dele, eles responderam “Uns dizem que és Jeremias…!” (Mt 16,14).

Arlindo de Magalhães, 18 de março de 2018

O Livro das Crónicas

A Bíblia — plural de biblos > livro — é a coletânea de uns livros por onde passa a história religiosa ou espiritual de um povo.

Todos os povos ou culturas estabeleceram uma relação com Deus, melhor ou pior, mais pacífica ou mais complicada. O Vaticano II reconheceu que:

“Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias, encontra-se nos diversos povos uma certa perceção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos e até, por vezes, o conhecimento de uma divindade suprema ou mesmo de Deus-Pai. Esta perceção e este reconhecimento penetram as vidas dos mesmos povos de um profundo sentimento religioso. … A Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e de viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio de verdade que ilumina todos os homens… [E] não pode esquecer que foi por meio do povo judeu, com o qual Deus se dignou, na sua inegável misericórdia, estabelecer a Antiga Aliança, que ela recebeu a revelação do Antigo Testamento e se alimenta da raiz da oliveira mansa na qual foram enxertados os ramos da oliveira brava, os gentios. Com efeito, a Igreja acredita que Cristo, nossa Paz, reconciliou pela sua cruz os judeus e os gentios, de ambos fazendo em si mesmo um só [povo]” (NA 2 e 4).

O Antigo Testamento – a Bíblia cristã divide-se em duas partes, o Antigo (judaico) e o Novo (cristão) Testamentos – trata da história e da aventura de Israel. O adjetivo judaico vem de Judá, um dos 12 filhos do patriarca Jacob, cuja descendência ou tribo assumiu uma grande preponderância entre as mais 11.

Desta grande história – que é religiosa e espiritual e não [apenas] política ou nacionalista – recordámos, nos dois últimos domingos, as figuras de Noé e de Abraão; hoje, os elementos pedagógicos, assim lhes chamo, a Lei e o Templo.

Não vou fazer agora a história deste Povo que, seguindo o seu Deus, ora lhe voltava as costas, ora caía nos cultos pagãos.

O nosso Deus não pode abandonar o seu povo.

É neste contexto que entenderemos a 1ª leitura da Liturgia de hoje, tirada do Livro das Crónicas, que tem dois volumes. O primeiro faz a pré-história e a história de David, dando especial relevo à sua atuação como rei e aos preparativos por ele levados a cabo para a construção do Templo de Jerusalém. O segundo faz a história de seu filho Salomão e dos reis que se lhe seguiram até à desgraça da perda da independência e da deportação para a Babilónia, atual Iraque. O Livro termina praticamente com o trecho hoje lido, que resume as razões da desgraça acontecida ao povo: surdo aos apelos dos profetas, o Povo eleito voltara entretanto as costas ao próprio Deus, retornara aos cultos pagãos: orgulhava-se, é verdade, do edifício faustoso que era o Templo, mas entregava-se à opressão e à injustiça. Com todas essas infidelidades acabou por preparar a cama em que havia de se deitar: a perda da independência e o exílio para a Babilónia.

Será que – pensou depois Israel – Deus se esqueceu do seu Povo, mergulhado em tamanho desastre? Mas não prometera ele – a Noé – que nunca mais o castigaria assim? Será que Deus não é fiel ao que promete? E, de facto, Iavé ajudou Israel a levantar-se. Primeiro, purificou-o através de um cruel sofrimento; depois, reforçou a própria Aliança prometida a nossos pais (Lc 1,55) através de Ciro, o rei persa que, vencendo os babilónios que tinham escravizado o Povo de Israel, permitiu que ele voltasse à sua terra: quem fizer parte do Povo do Senhor, Deus do céu, ponha-se a caminho [de Jerusalém] e que Deus esteja com ele.

O Livro das Crónicas, que em grego se chamava Paralipómenos, palavra que quer dizer as coisas esquecidas, foi provavelmente escrito para os israelitas regressados do exílio que, por isso mesmo, ignoravam quase tudo da sua história passada, embora muitas coisas estivessem já disseminadas por outros livros bíblicos. Eles precisavam de conhecer sobretudo o tempo glorioso de David e de seu filho Salomão. E o autor não se cansa de sublinhar que, no passado e no futuro, os êxitos do Povo dependiam da sua fidelidade a Iavé.

É um Deus muito interventor e condicionador da História, este que manobra em favor do seu povo escolhido, o que nem se estranha muito numa conceção teocrática do mundo e da mesma história. Por isso, o autor entende como resultado do querer de Deus em favor de Israel uma distribuição nova do poder político então criado no Médio Oriente, já naquele tempo constantemente instável: a Babilónia, que erguera um grande império, anexara Israel e deportara o seu povo, é agora vencida pela Pérsia, o que permitiu que o anteriormente vencido povo de Israel voltasse ao seu país.

Este é ainda um Deus manobrador de cordelinhos. De qualquer modo, não é um Deus que abandona o seu povo. E por isso o Livro deixa em aberto uma hipótese: a de que, regressado do exílio, o Povo recupere as glórias do seu passado.

Ainda agarrado à memória do Templo derrubado por Nabucodonosor, o rei da Babilónia, o povo, regressado à sua terra, vai construir um Templo novo em Jerusalém, entre os anos 520-515. Mas, o Senhor do Universo, o Deus de Israel, previne: “Endireitai os vossos caminhos e emendai as vossas obras e eu habitarei convosco neste lugar. Mas não vos fieis em paleio!” (Jr 7,3).

Arlindo de Magalhães, 11 de março de 2018

O Templo e a Lei

Peter Callesen

Cada domingo quaresmal, um tema, uma catequese última destinada aos que iam ser batizados, o resumo duma grande etapa da História da Salvação: da promessa feita a Abraão até Jesus Cristo ou dos sacrifícios humanos à dignidade do Homem (foi o domingo passado), do Templo à Igreja, da Lei à Liberdade (“é pela graça que fostes salvos; a salvação… não se deve às vossas obras”, hoje, 3º domingo).

A LEI e o TEMPLO, as duas realidades mais importantes do Antigo Testamento. O Povo via no Templo a Habitação de IAVÉ, e na Lei a expressão concreta da sua Vontade. Por isso, a Lei (Dt 4, 5/8) e o Templo (Salmo 26, 4) eram o verdadeiro orgulho de Israel.

No entanto, é já no Antigo Testamento que se começam a perceber as limitações destes elementos pedagógicos. O Templo e a Lei eram de facto duas realidades da História da salvação que serviram para o crescimento e ensinamento do Povo. Mas eram realidades provisórias. Por isso foram ultrapassadas.

A Lei servira para guiar o Povo: “A lei do Senhor é perfeita” (Sl 19, 7); “está dentro do meu coração” (40, 8); “quanto amo a tua lei!” (Sl 119, 97); “o mandamento é uma lâmpada, e a lei uma luz” (Pr 6, 23). Até o Enviado do Pai diria: «Não julgueis que vim destruir a Lei…, vim sim levá-la à perfeição» (Mt 5, 17).

Paulo escreveria assim: “A lei não foi feita para o justo mas para os maus e rebeldes, para os ímpios e pecadores, para os sacrílegos e profanadores, para os parricidas e matricidas, os homicidas, os impudicos, os traficantes (de escravos), os mentirosos, os perjuros, e todos quantos estão em contradição com a sã doutrina segundo o Evangelho” (1 Tm 1, 8-9).

Mas agora a Lei é «nova» (Jo 13, 24). Agora, em boas palavras, o cristão está livre da Lei (Rm 7, 6: “agora estamos livres da Lei e morremos para aquilo que nos tinha como escravos. Assim, podemos servir a Deus duma maneira nova, segundo o Espírito, e não à maneira antiga da Lei”.

“Mas qual lei?, a das obras (obrigações) ou a da fé? Estou convencido que é pela fé que o homem é justificado, independentemente das obras da lei” (Rm 3, 28-29).

O TEMPLO tinha em Israel, como sabemos, uma importância enorme: O templo era a morada de Deus no mundo, o coração da toda a vida religiosa e o centro da vida do homem judeu. O poeta salmista diz bem: “O Senhor habita no seu santuário, tem nos céus o seu trono; os seus olhos contemplam o mundo e as suas pupilas observam os filhos do homem” (Sl 11, 4).

Mas com o cristianismo tudo mudou. Logo em Corinto, não havia templos para os cristãos: reuniam-se nas casas uns dos outros.

O próprio Jesus tinha dito que, quanto aos templos, deles “não ficará pedra sobre pedra!”. E o Apocalipse explicou que, na nova Jerusalém, não haverá templos, pois que templos eram o Senhor e o Cordeiro (Ap 21, 22).

Do Templo levantado na Cidade “não ficará pedra sobre pedra!” (Mt 24, 2). E assim aconteceu, no ano 70, puramente destruído o de Jerusalém. Na Nova Jerusalém, também não haverá templos, pois Templo agora sois vós (1 Cor 3,16), diz Paulo. E Pedro acrescenta: Templo “feito de pedras vivas” (1 Pe 2, 1). E, logo com o primeiro cristianismo, tudo mudou: em Corinto, não havia templos para os cristãos, reuniam-se nas casas uns dos outros (1 Cor 1, 11; At 20, 1ss, Rm 16, 5, …).

Se, no Tempo Novo que é o da Igreja, Templo e Lei continuam a existir, é porque precisamos ainda de instrumentos pedagógicos (que Templo e Lei nunca foram outra coisa) do Povo de Deus ainda não crescido ou diminuído na sua Liberdade, instrumentos que, no entanto, carregam consigo mesmos os respetivos limites. Ultrapassar, continuamente, o Templo e a Lei é tarefa da Igreja; e isso exige rupturas. A História da Salvação conhece avanços e recuos pontuais e parciais; no seu conjunto, no entanto, o seu caminho é para a Frente e para o Alto.

Fique aqui a memória da palavra-programa que foi a de «destruir o Templo e descer o Monte» (no cimo do qual se construía o Templo).

Não é de admirar que na Igreja de Deus aconteçam recuos; de qualquer modo, na História da Salvação, as conquistas são verdadeiramente irreversíveis; aconteça o que acontecer, não mais haverá Templo e não mais o Mandamento deixará de ser “o Novo” e deixará de resumir «toda a Lei e os Profetas» (Mt 7, 12).

Arlindo de Magalhães, 4 de março de 2018

O que é a Páscoa?

Igreja de Borgloon, Bélgica | Projeto de Gijs Van Vaerenbergh | Foto de Kristof Vrancken

Desde a passada 4ª feira de Cinzas que o mundo cristão tem os olhos postos na Páscoa, a maior festa do ciclo anual.

Que é a Páscoa, festa que se vai diluindo num mundo secular ao jeito do que já aconteceu com o Natal? O que é a Páscoa, para além de um fim de semana alargado? Que se celebra na Páscoa?

A Páscoa é uma festa de grande tradição e riquíssima de conteúdo que, por si só, quase desenha a história religiosa da humanidade.

O homem antigo vivia em profunda ligação com a Natureza, que julgava conduzida por leis mais ou menos misteriosas de fecundidade ou de esterilidade. A Natureza renovava-se periodicamente, era episodicamente furiosa e vingativa e alimentava o Homem, mas tinha também capacidade de o deixar na penúria…! Mesmo assim, pressentia-se Deus por detrás dela e das leis que a regiam. Deus era o seu Criador e Senhor. E fugia ao controlo do homem!

Por isso, ele oferecia à divindade os primeiros frutos que, com dificuldade, apanhava das plantas e do chão, os melhores animais que caçava ou reunia já em rebanho, e do que aprendera já a cultivar, quando agricultor.

Que podia o homem oferecer a Deus senão o fruto encontrado, o animal caçado, ou o mais lindo cabritinho acabado de nascer no seu rebanho, tudo no dealbar da Primavera? O ritual de imolar um animal jovem, de partilhar a sua carne tenra em refeição festiva e de usar o seu sangue para marcar a tenda familiar, no seguimento dos costumes dos pastores nómadas do deserto, passou a cumprir-se na primeira noite da lua-cheia da primavera. Nesse mesmo dia ou noite, o lavrador apresentava à divindade os primeiros grãos de cevada ou, aqui pelo nosso mundo, as primeiras bolotas com que se fazia o primeiro pão novo, sem fermento, que também a Deus se oferecia.

Assim nasceu a festa da Primavera, da Natureza rejuvenescida, depois do longo e rigoroso Inverno.

O Pentateuco registou minuciosamente os pormenores de todo este ritual: escolherá cada família um animal sem defeito, cordeiro ou cabrito, marcareis com o seu sangue as ombreiras e o dintel da porta da sua casa (Ex 12,3-7) e tomarás as primícias de todos os frutos que colheres da terra e que o Senhor, teu Deus, te houver dado. Pô-los-ás num cesto e apresentá-los-ás no lugar que o Senhor tiver escolhido para aí habitar o seu nome [isto é, no Templo]. Apresentas-te ao sacerdote, e ele receberá o cesto da tua mão e depositá-lo-á no altar de Iavé (Dt 26,1-4).

Este gesto religioso do homem primitivo diz pouco ou nada mesmo ao moderno que somos, que não percebemos patavina dos ritmos da Natureza; no Primeiro Mundo, o Pingo Doce tem sempre tudo, peixe, fruta fresca e legumes com fartura, aconteça o que acontecer. Para o primitivo, porém, tratava-se de uma atitude verdadeiramente religiosa, que expressava a sua fé, ato de louvor e oração de súplica.

Não se ficou por aqui, no entanto, a festa da primavera do judeu antigo, atado inelutavelmente ao ciclo repetitivo da natureza. Ao culto da fertilidade do rebanho e da própria terra juntou-lhe depois uma fé radicalmente histórica. O povo estava no exílio, no Egito, mas dele se libertou, voltando à sua terra, de que retomou posse. Deus esteve com ele, como está relatado no Deuteronómio: meu pai era um arameu errante que desceu ao Egito com poucos familiares e aí viveu como estrangeiro até se tornar uma nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios maltrataram-nos, oprimiram-nos e sujeitaram-nos a dura escravidão. Então, invocámos o Deus dos nossos pais e o Senhor ouviu a nossa voz, viu a nossa miséria, o nosso sofrimento e a opressão que nos dominava, e fez-nos sair do Egito com mão poderosa (Dt 26,5)….

O Deus de Israel era não apenas um Deus ligado aos ciclos naturais de fertilidade; era muito mais, era um Deus que estava com os sofrimentos do povo; por isso o libertou. E esse acontecimento, verdadeira passagem de um estado de escravidão a um outro de liberdade, passou a ser celebrado com os mesmos ritos de sempre, o mesmo cordeiro, o mesmo pão sem fermento e as mesmas ervas amargas. Esta celebração fazia-se de noite, que de noite o povo fugira do Egito: Esta é aquela noite!, Ó noite bendita! – cantaremos depois, na festa da Páscoa.

Não terminou aqui, porém, a história da salvação. Na plenitude dos tempos, seria Jesus, enviado do Pai, a salvar o que estava perdido. E quando morreu na cruz, inocentemente condenado, houve trevas em toda a parte (Lc 23,44), como se fora de noite. E Deus ressuscitou-o.

É isso que na Páscoa celebramos: a morte e ressurreição de Jesus, e tudo o mais que está para trás, a Páscoa da Natureza e a gesta de Israel.

Como? Com os mesmos ritos dos nossos antepassados: com cordeiro, não já do rebanho, mas do de Deus que tira o pecado do mundo, e com pão de trigo sem fermento, afinal a matéria de toda a celebração da Eucaristia que, como dizemos todas as semanas na Anáfora, é memória da morte e ressurreição de Jesus.

E, para celebrarmos tudo isto, preparamo-nos. É a Quaresma.

Arlindo de Magalhães, 18 de fevereiro de 2018

Divisões

Shelby McQuilkin

Paulo estava em Éfeso quando escreveu a sua primeira carta aos Coríntios. Tinha sido informado pelos da “Casa de Cloé” (1Cor 1,11), do que por lá, por Corinto, se passava.

Corinto era uma enorme cidade ao tempo, a meio caminho entre a Anatólia, hoje chamada Turquia, e a Grande Grécia (Itália).  E não existia ainda o canal marítimo que permitiria mais tarde uma viagem mais rápida entre o mar Mediterrâneo oriental e o ocidental. Os Atos dos Apóstolos dão já notícia de duas comunidades (eclesías), em Corinto, uma do lado ocidental e outra do oriental, esta em Cêncreas, presidida por uma mulher, Febes, (Rm 16,1), diaconisa certamente. No meio daquele grande e poliglota mundo… havia de tudo, e nem os inícios cristãos se salvavam!

Da Casa de Cloé escreveram a Paulo, que estava em Éfeso, já na Anatólia, a uma distância pequena…

Escrevem-lhe “os de Cloé”, a contar-lhe o que se passava e a pedir ajuda. E Paulo responde-lhes numa carta. Havia escândalos na Igreja de Corinto, moral sexual, moral social, o casamento, as idolatrias, as carnes imoladas aos ídolos, as perguntas (por exemplo, se os cristãos podem recorrer a tribunais pagãos?, etc, etc, etc).

No texto que chegou até nós, Paulo responde apenas a duas questões: o véu das mulheres (11,4-16) — a questão é ainda hoje um problema no mundo muçulmano — e a celebração da Eucaristia.

Todos conhecemos esta segunda questão: “Quando vos reunis, não é a ceia do Senhor que comeis” (11,20).

E Paulo explica:

  1. que não haja divisões (schismata > grego e latim, cisma > português, divisões > Lourenço[1]) entre vós (1,10).
  2. Fui informado pelos da Casa de Cloé que há discussões (érides > grego, contentiones > latim, discórdias > Lourenço) entre vós. “Permanecei unidos num mesmo espírito e num mesmo pensamento” (1,11).
  3. “Quando vos reunis em assembleia, há opiniões (airéseis > grego, haereses > latim, divisões > Lourenço) variadas entre vós e nisso, em parte, eu acredito” (11,18). É até necessário que haja isso ( — isto é, opiniões [tradução em grego e latim] —) para que se tornem conhecidos aqueles que de entre vós resistem a esta provação (11,19). Nesta alínea 3, opto — e quem sou eu para o fazer!? — pela palavra opinião, uma vez que tanto o grego airésis como o latino haereses significam isso mesmo, opinião.

Resumindo: as divisões são mais graves que as discussões, e as opiniões mais fecundas que as discussões e as divisões.

Claro que quase todas as versões modernas traduzem os três conceitos — divisões, discussões (debates) e opiniões diversas — com o mesmo vocábulo > divisões (1,10; 11,18 e 19). Acho que menos mal para uma leitura simples; mas pobre para uma leitura que haveria de ser exata.

Mas vamos tentar perceber o que Paulo disse ser necessário para sabermos e percebermos do comportamento que era exigido a todos.

A eclesía (reunião) juntava-se naquele tempo numa casa particular: era aí que ela (a comunidade cristã) se reunia.

Mas as casas desse tempo, romanas, tinham umas divisões muito pequeninas. Em nenhuma cabiam, sei lá!, 10-15 pessoas (ver At 20,7-9): e as melhores salas ou mesmo quartos eram destinados aos seguidores de Jesus mais altos na escala social e por aí abaixo, até aos mais pobres, que eram colocados nas divisões mais pequenas e incómodas. Não se pode estranhar que as casas romanas e judaicas ainda não tivessem ultrapassado esse problema: umas divisões muito pequeninas! Os cristãos entravam todos, mas os de posição social melhor iam para os lugares mais cómodos, onde a melhor comida era primeiro servida a eles, e depois, talvez muitas vezes, a comida não chegava para os pobres.

“Não tendes casa para comer?”, irrita-se Paulo (12,22).

E é no contexto deste proceder que disparou : “Não tendes casa para comer? Desprezais a Igreja de Deus envergonhando os que não têm nada?”.

Repare-se, no entanto, nas palavras que Paulo utiliza:

Divisão (schismata, em grego e latim; esta palavra, hoje, em português, é sinónimo de cisma, cisão, dissidência, quebra da unidade)

Discussão: Fui informado pelos da Casa de Cloé que há discussões (érides grego, contentiones latim) entre vós. Andai lá: Permanecei unidos num mesmo espírito e num mesmo pensamento, mesmo se vos meteis em disputa, polémica ou questão… (1,11). A discussão é perigosa.

Não é assim a opinião > (airéseis gr, haereses lat), o debate, o alvitre, a convicção diversa, com todo o respeito, eu penso assim e tu assado, mas podemos ir os dois à bola a Guimarães que não há problema!

Uma divergência de opinião é muito diferente de uma discussão: esta pode até gerar violência e esta a divisão ou o cisma (muitas vezes, perante uma discussão, o silêncio é a melhor opção).

Edgar Morin, antropólogo e filósofo francês, nascido em 1921, disse assim: «a crise pode ser fonte de progresso — solução nova, para além das contradições ou impasses, aumentando a complexidade do sistema — ou fonte de regressão — solução aquém das contradições, levando o sistema a um estado de menor complexidade!».

Continuaremos.

[1] Este LOURENÇO é Frederico Lourenço, tradutor português da Bíblia, 2017, Vol II, pp. 10-11 e 250.

Arlindo de Magalhães, 11 de fevereiro de 2018

“À Marcos”

Volto a Marcos. Relembro que – ele que nascera em Chipre e era primo de Barnabé – terá aprendido, já em Roma, via Pedro e Paulo!, muita coisa da vida de Jesus e muita outra dos seus ensinamentos.

Eu, que nunca fui capaz de tirar uns simples apontamentos numa pequena reunião, admiro-me dos que são capazes de o fazer. Marcos é um deles: um acontecimento que aconteceu e um ensinamento que alguém transmitiu, ele guardava-os na sua memória, não havia ainda nem computadores nem papel sequer. Vinham-lhe à memória estes dados, quando deles precisasse.
O seu Evangelho é, por isso, muito simples e muito narrativo. Há uma expressão do nosso popular português aqui inspirada: “diz lá isso à Marcos!”, quer dizer, sem complicações, rapidamente, linguagem que toda a gente entenda!

Marcos, portanto, colheu muito material de Barnabé, de Pedro e de Paulo que lhe serviu para escrever o seu Evangelho. Não nos esqueçamos, entretanto, da besunda que se armou entre Barnabé e Paulo quando Marcos não pôde seguir caminho com Paulo. Depois em Roma, no entanto, já Barnabé desaparecera, vivia com Pedro e Paulo, e deles aprendeu muito do que ele não viveu.

Como prova do que digo, Paulo citou-o nos seus escritos: na Carta aos Colossensses, enviou-lhes saudações de “Marcos, primo de Barnabé” (Cl 4,10); na 2ª Carta que enviou a Timóteo, disse-lhe: “Traz contigo Marcos pois me será de grande ajuda no ministério!” (2 Tm 4,11); e a Filémon disse: “Saúda-te Marcos……, meu colaborador” (24).

Marcos é pois um escrevedor “à Marcos”: duas palavras e está tudo dito.
Um exemplo. Logo no início do seu Evangelho, aparece esta frase tão pequenina carregada de notícias: “Chegado o sábado, Jesus veio à Sinagoga de Cafarnaúm e começou a ensinar. E maravilhavam-se com o seu ensinamento pois os ensinava como quem tem autoridade e não como os doutores da Lei” (1, 21-22).

Está tudo dito, ponto final parágrafo: Jesus era um judeu e, como tal, respeitinho pelo Sábado. Vinham ter com ele à sinagoga, quando ele vinha orar à comunidade sinanogal. Aí se cumpria toda a liturgia judaica: a profissão de fé, a oração, o canto, as leituras da Tora (Lei) e dos Profetas, e as bênçãos. Sem grandes explicações ficava-se também logo a saber que os Doutores da Lei não eram muito queridos… Na Sinagoga, pelo menos naquele dia, havia quase sempre um “espírito maligno” (1,23).

Dali partiram para casa de Pedro…, a sogra estava doente…
Claro que, no Evangelho de Marcos, há muitos mais doentes. Desde logo nesta primeira Jornada de Cafarnaúm, “até à noitinha, depois do pôr do sol! (1,32), trouxeram-lhe tantos doentes e possessos que a cidade quase se juntou inteirinha à porta da casa (da sogra de Pedro).
Mas todos nós sabemos que a hipérbole é uma figura de estilo! É por isso que em muitos lugares e às vezes chove a cântaros ou chovem cães e gatos!

O Evangelho de Marcos é o mais pequeno de todos. Por isto que acabo de tentar explicar.
Num texto breve, Marcos diz muito mas não se perde em explicações. Ouviu Barnabé, Pedro ou Paulo a falar de um acontecimento da vida de Jesus ou uma catequese de Pedro ou de Paulo, fixou tudo na memória, já está! Dizem os peritos que os demais evangelistas, Mateus, Lucas e João se guiaram todos e muito pelo trabalho primeiro de Marcos. Teve cada um muito mais tempo para preparar melhor o seu texto!

Arlindo de Magalhães, 28 de janeiro de 2018