Comunidade imperfeita

Continuamos com a leitura do evangelho de Lucas a relatar o caminho de Jesus e dos discípulos rumo a Jerusalém. No domingo passado, líamos a parábola do homem rico que constrói novos celeiros para recolher uma grande colheita para muitos anos. Dessa forma, ele acha que o seu futuro está assegurado. Jesus explica como ele está enganado, que os bens recebidos são para ser partilhados, porque ninguém é dono da sua vida nem do seu futuro. A alternativa a construir celeiros para acumular, é partilhar, é despojar-se daquilo que na vida são falsas seguranças e garantias.

A leitura do evangelho de hoje é uma conversa mais intimista, cheia de afeto e de confiança, de Jesus com os discípulos. “Não temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino”. Pequenino rebanho. São poucos, têm vocação de minoria. Não hão de pensar em grandezas. É assim que Jesus os vê: como um pequeno “fermento” escondido na massa, uma pequena “luz” no meio da escuridão, um punhado de “sal” para dar sabor à vida. Uma minoria fraca e visivelmente frágil, sem apoios, sem influências e sem poderes no mundo. Comunidade imperfeita que precisa continuamente de repreensões e de correções. Mas que não tenham medo – diz-lhes. Que não fiquem paralisados pelo medo nem afundados no desânimo. Porque Deus confiou-lhes o seu reino. É decisivo aceitar esta prova de confiança do Pai e acolher o convite de participarem do seu reinado. Reino, que é dom de Deus, e se converte também em tarefa de um povo.

Das mais diversas maneiras, ao longo da sua vida, Jesus foi-lhes anunciando este reinado de Deus: um mundo novo, feito de irmãos e irmãs, onde a prepotência, o egoísmo, a exploração e a miséria são definitivamente erradicados; um reino onde todos têm vida em abundância; onde todas as dívidas são perdoadas e todo o mal é vencido; um reino de justiça, de liberdade, de perdão, de fraternidade e de paz; um reino onde os pobres e marginalizados têm o espaço que lhes pertence como filhos iguais e amados de Deus. Jesus anuncia o reinado de Deus como tempo de salvação, tempo de plenitude, tempo da total presença de Deus em tudo e em todos. É para aí, é para Ele, que tudo caminha. Por isso, é no reino de Deus que deve estar o nosso verdadeiro tesouro, porque “onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. A paixão pelo reino de Deus. Só assim poderemos colocar os seus valores no centro da vida.

Este é também o desafio que se nos coloca a nós, reunidos em Igreja nos dias de hoje: revelar este Deus e o seu reinado. Somos chamados a ser comunidade pobre entre pobres, onde a partilha do “ter” e do “ser” se apresente como alternativa à acumulação que o mundo propõe – “Vendei os vossos bens e dai-os em esmola. Fazei bolsas que não envelheçam”. Mas continuamos a ser uma Igreja majestosa, rica em bens materiais e envolvida, até, no mundo financeiro. Somos chamados a viver a fraternidade plena, mas continuamos a consentir no nosso seio distinções de classe e de género – leigo e clero, homem e mulher – onde se perde a igualdade que a todos é dada pelo Batismo, que nos torna um só em Jesus Cristo. Marcados pelo clericalismo, as decisões que dizem respeito a todo o povo de Deus, continuam a ser tomadas apenas por um grupo restrito, o clero, o que dá origem a que, muitas vezes, ainda se confunda Igreja com hierarquia. Somos chamados à liberdade, pela Graça, mas continuamos a impor, a nós e aos outros, regras e prescrições, nascidas em contextos sociais e culturais específicos, que se arrastam pelos tempos, e que nada têm a ver com a Boa Nova de Jesus.

“A quem muito se tiver confiado, muito se exigirá; a quem muito se houver dado, muito se pedirá”. Por isso Jesus avisa: estai vigilantes, estai despertos, estai preparados. Surpreende a insistência com que Jesus fala da vigilância. São numerosas as parábolas, em todos os evangelhos, que nos convidam a adotar uma atitude vigilante diante da existência. Um dos riscos que corremos é viver de forma superficial, mecânica, rotineira, massificada. Vamos levando a vida meio adormecidos, criamos até uma certa cultura da indiferença – como diz o papa Francisco. Acostumados também a viver a fé como uma tradição religiosa, uma herança ou um costume, é-nos difícil descobrir toda a força que ela contém para nos humanizar e dar um sentido novo à nossa vida e ao mundo. O apelo de Jesus à vigilância chama-nos a despertar da indiferença e da passividade, ou do descuido, com que vivemos a fé. Porque a esperança cristã é inquieta, anima a responsabilidade e a criatividade, não deixa adormecer – “Tende as vossas cintas apertadas e as vossas lâmpadas acesas”.

Vigiar é um desafio a viver de olhos bem abertos, atentos à realidade, procurando descobrir a presença de Deus na vida e no mundo. É saber ler os sinais dos tempos com o mesmo olhar de Jesus, que se compadecia com o sofrimento das pessoas e em tudo procurava aliviá-las. É crescer na indignação diante da injustiça, da degradação humana, do sofrimento, procurando mudar as estruturas de morte ao nosso redor. Assim são os servos prudentes que o mundo precisa, pessoas de esperança incansável. Homens e mulheres que lutam por um mundo mais humano, um Novo Céu e uma Nova Terra, que não será nunca exclusivo dos nossos esforços, mas sim dádiva de Deus, Aquele em quem encontraremos, um dia, a plenitude.

Carmen Machado