O Natal

Federico Solmi, 2014

No princípio, era o mistério da Incarnação: Cur Deus homo? Para quê, porque é que ele se fez homem? Celebrava-se o mistério de Deus feito homem. Mas ”os homens preferiram as trevas à luz. Porque as suas obras eram más” (Jo 3,19).

Quando a festa, originalmente oriental, chegou ao Ocidente, deixou de ser a celebração de um mistério para ser a celebração de um facto (agora diz-se evento) de um nascimento. Nós, os ocidentais, que ligamos pouco ao mistério — ou não tivéssemos sido nós que inventámos os relógios, os automóveis, os computadores, a bomba atómica e agora os robots, etc; (nós) somos mais dados a realidades, a eventos e acontecimentos. Passámos, portanto, a celebrar um evento, algo que aconteceu, nada de mistério!

Os nossos pais, como se tratava de um evento muito importante — e como era costume quando havia uma festa importante — ainda se preparavam para a celebração do evento: guardavam a Vigília do Natal no dia 24 de dezembro; ainda assim se faz aqui ao lado, em Santa Maria da Feira.

(A liturgia romana, que é a nossa, ainda guarda resquícios da sua antiguidade. Sabemos que, nos princípios, os cristãos celebravam de noite, desde o cair do sol até de madrugada, na alvorada do “primeiro dia da semana” (At 20,9). Há ainda um resquício dessa prática que é a Vigília Pascal).

Mas voltemos ao jejum. Naquele tempo, na vésperas das duas grandes celebrações, fazia-se jejum, a celebração litúrgica era à meia noite, e quando se chegava a casa no fim da missa do galo, então sim, começava a festa: comezaina, pois claro, não havia festa sem muito e sem doce… E a Ceia como que se prolongava por todo o dia 25, …

No que se refere à Páscoa, ainda se faz, aqui por exemplo, na Serra.

Vamos à Missa do galo. Era de jejum o dia 24, ia-se à Missa da meia noite (At 20,7), e regressados a casa, então começava a festa “do nascimento de Jesus”.

Sabemos todos que no antigo as festas eram longas: os casamentos ciganos passa(va)m a semana.

No nosso assunto, a festa do Natal durava pelo menos oito dias, uma semana. Continuava e atingia um segundo momento de intensidade: na semana da festa natalícia, nasceu a festa da família: «Senhor que na Sagrada Família nos deste um modelo de vida, concede que, imitando as suas virtudes familiares e o seu espírito de caridade, possamos um dia reunir-nos na tua casa…», diz a oração do rito de entrada do Missal romano.

Claro que nestes dias, os pobres não se esqueciam. Eu era rapaz e nos dias anteriores ao Natal corria-se a freguesia a juntar dinheiro e bens para os mais pobres…

O jejum, para ajudar os pobres, e o domingo natalício festa familiar.

Mas o mercado não esteve com coisas: não descansou enquanto não misturou a festa cristã da família com a do Natal, jejum e pobreza são coisas que não têm nada com tudo isto. E todos achámos muito bem! Repare-se: o que se jejuava em favor dos pobres transformou-se em prendinhas de Natal não dadas aos pobres, mas… em família e à família, em dia que liturgicamente não era o da família, mas o comércio conseguiu que passasse a ser!

Não foi no nosso tempo que isto começou. Isso aconteceu quando os americanos inventaram o S. Nicolau — logo, Papai Noel — a distribuir a Coca-Cola!

De início, é verdade que, com alguns laivos de mistério, sobretudo dos mais pequenos, o Menino Jesus só vinha pôr a prenda no sapatinho de madrugada, muito depois da Missa do galo!

Pois era! Mas agora não é! Agora o barulho é antes, muito antes, dá um trabalhão imenso escolher as prendas, comprar as prendas, embrulhar as prendas… Quem fez isto, quem foi? Quem manda em nós, que fazemos tudo o que eles querem? E depois queixámo-nos.

Qualquer coisa não está bem! Ou melhor, quase está tudo mal! Quem deitou abaixo a festa do Natal adaptando-a a outros interesses foi o mesmo que rebentou com o domingo. Não sabem, os cristãos portugueses, e não só eles, não sabem porque é que se vai à missa ao domingo. Não sabem. Porque é que não é ao sábado?

E o tempo encarrega-se de nos esconder a riqueza que as festas tinham e continham. Hoje, perdemos o sentido das coisas. Desconhecemos o porquê e para quê.

Sophia de Mello dizia que todas as coisas mostram, uma por uma, a sua Beleza e a sua Serenidade.

Mas nós, umas vezes, passamos pelas coisas sem as ver; e outras, já não temos coisas para ver, pois que, de facto, perdemos foi o seu valor!

Arlindo de Magalhães, 23 de dezembro de 2018