O sacrifício do tempo

Brian Kershisnik

Lembrarão todos o que disse aqui a semana passada: João, foi para o deserto, e o primo atrás dele …

… o deserto era, ao tempo, um lugar de rocha dura calcária, nem de areia sequer. Era a morada dos demónios (Mt 12,43) e o esconderijo de bandidos e piratas. Pode ser que Jesus por ali se tenha refugiado em busca de solitude e a fugir das grandes multidões (Mt 4,1). 

O certo é que João batizou Jesus. Uma vez batizado, o céu abriu-se-lhe e viu-se o Espírito a descer sobre ele e uma voz que, vinda do céu, dizia: “Este é o meu filho  

No dia seguinte, segundo o evangelista João – o primo – que agora se dirá “o Baptista”, ao ver Jesus, disse-lhe: “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!” (Jo 1,29).

Quem e porquê “Cordeiro de Deus”?

O cordeiro era, naquele mundo, naquele tempo e naquela cultura, um elemento muito importante.

Que belo era o animal dos muitos rebanhos que então havia, animal manso, bondoso e carinhoso, importante na vida e na alimentação; sem defesa, ou melhor, um desamparado, escolhia-se também para se comer e ser sacrificado, no Templo e na festa pascal, em pagamento a Deus de quanto se fazia contra ele, e agora pedia perdão. 

Este rito era tão importante que chegou ao dia de hoje, sobretudo na linguagem litúrgica (“Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós!”), na linguagem teológica (”Cristo, nossa  Páscoa foi imolado”  [1Cor 5,7]), e na arte sacra. Serão poucas as igrejas românicas, góticas e de toda a Renascença, até fins do séc. XVI, que não tenham pinturas ou esculturas do Cordeiro nas suas paredes e altares.

Depois, já depois da Renascença, não há nem cordeiros nem ovelhas nas igrejas, há pombas: esta igreja onde celebramos, construída já depois dos inícios do séc. XVI, em 1538, está cheia de aves (o artista desenhava mal as pombas)!

(podem ver ali uma pintura do Cordeiro de Deus, e as aves [pombas] na madeira dourada de todos os seus altares desta igreja) 

Pombas porquê? Era um animal belo, mais sobretudo no seu voo, e que ficava mais barato…! Afinal, não tinha Noé “soltado uma pomba para ver se as águas do dilúvio tinham já secado a superfície da terra?” (Gn 8, 8). E João Baptista, depois de batizar o primo, não viu ”o Espírito que descia do céu como uma pomba, a voar sobre ele”? (Jo 1,13). 

Os hebreus ofereciam sacrifício de um cordeiro “puro, sem manchas e sem defeito” a Deus, para remissão dos pecados. O sacrifício de animais era frequente entre vários grupos étnicos, em várias partes do mundo. 

Na Bíblia é referido, por exemplo, o caso de Abraão que, para provar a sua fé em Deus teria de sacrificar o seu único filho, imolando-o e queimando-o numa pira de lenha, como era costume para os sacrifícios de animais – o relato bíblico refere, contudo, que Deus não permitiu tal execução. 

A morte de Jesus Cristo, considerado pelos cristãos como filho unigênito de Deus, tornou estes sacrifícios desnecessários, já que sendo considerado perfeito o seu filho, sem pecado e tendo ele nascido de uma virgem por graça do Espírito Santo, era assim o amor de Deus para com a humanidade.

A Liturgia cristã, natalícia desde 25 de Dezembro, terminou já há oito dias; hoje é já Tempo Comum que só termina no final de Novembro. Daqui a nem dois meses, entre os meados de Fevereiro e Maio, o Tempo será Pascal (primeiro de preparação, e só depois de celebração).

Assim se entende a importância do calendário cristão:

1. O calendário que conhecemos e celebramos (!) não poderia ser melhor para o cristianismo. No tempo greco-romano quem mandava era o tempo e a agricultura… 

2. Mas o tempo cristão deixámo-lo morrer: o paganismo matou-o, foi por ele abafado.

3. Nós, os cristãos, poderemos continuar a festejar tempos velhos que deixámos calcar?, ou como haveremos de conseguir maneiras novas de celebrar o Natal e a Páscoa? Bastam as batatas e aquilo a que puseram o nome de prendas?