Orar, pedir, insistir

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Eu, pecador me confesso: sempre que escuto, na Liturgia ou em qualquer outro contexto, o trecho do livro do Génesis da primeira leitura de hoje, não consigo evitar de pensar no “regateio finório”, ou, dito mais eufemisticamente, nas “capacidades negociais/diplomáticas” de Abraão diante de Deus: como é possível e compreensível que o mesmo Abraão, que se reconhece não passar de alguém que não é mais do que “pó e cinza”, se “atreva” a “regatear” com Deus a salvação de duas cidades já “perdidas”, face à gravidade do seu pecado?

Lido com estes óculos, o texto é impressivo e impressionante, também na “aritmética”. Repare-se:

  1. a) 7 a 6 é o resultado do confronto entre as vezes em que o texto refere os personagens principais: 7x “O Senhor”, contra 6x “Abraão”;
  2. b) o Senhor fala apenas uma vez e para dizer uma só coisa: “Como é grande o clamor contra Sodoma e Gomorra, como é grave o seu pecado! Vou descer, para verificar se o clamor que chegou até mim corresponde inteiramente às suas obras. Se assim não for, hei de sabê-lo.” Não encontramos na sua voz nenhuma ameaça de castigo ou destruição… e, no entanto, é sob esta “ameaça” que toda a trama se desenvolve…
  3. c) das outras 6x em que o Senhor fala, é sempre como resposta às perguntas, insistências e persistências de Abraão; Ele nunca deixa os pedidos insistentes de Abraão sem resposta…
  4. d) é Abraão quem, conhecendo a “justiça divina” (todo o pecado merece castigo – cfr. Nm 32, 16; Dt 5, 9), logo se apressa a “limitar os danos” de algo que lhe parece eminente… e por isso fala, ou melhor, insiste (5x) e replica (1 x) com Deus, apelando à Sua misericórdia… Abraão, que “estava diante do Senhor” mas que, ainda assim, “se aproximou” ainda mais para insistir e replicar com Ele… Parece um jogo de “ping-pong” (político-diplomático): a cada cedência de Deus, Abraão tenta “esticar um pouco mais a corda”, pedindo um pouco mais… Abraão pede, insiste, reinsiste… Deus ouve-o e aceita, anui, vai cedendo…
  5. e) repare-se finalmente no “negócio” que Abraão consegue fazer com Deus: de duas cidades inteiras (Sodoma e Gomorra) em vias de serem dizimadas, Abraão conseguiu que o Senhor lhe prometesse clemência, se numa delas encontrasse “dez justos”. Começou por propor a salvação da cidade “em troca” de 50 justos; depois 45; depois 40; depois 30; depois 20; e finalmente 10; ou seja: em termos economicistas, tentou “comprar” a salvação de uma cidade inteira pelo quinto do “preço” da sua primeira e mais alta proposta!!! Que belo negócio, não haja dúvidas…! O problema foi que, ”feitas as contas”, não havia nela nem um só justo “para amostra”, e a cidade, com todos os seus habitantes, acabou por ser destruída (Gn 19,24-25)…

Mas, sinceramente, não me parece ser esta a melhor “lente” para perceber o que realmente a Palavra de Deus nos quer apontar…

Os exegetas dizem-nos que esta história da destruição de Sodoma e Gomorra (Gn 19, 1-29), duas das cinco cidades-estado do Vale de Sidim, hoje submerso pelas águas do Mar Morto, é uma (tentativa de) explicação popular das ruínas de cidades antigas que existiam então naquela região (Gn 14,3). Tendo Abraão e Lot passado por aquele lugar (10,19; 13,10; 14; 18,16) e visto tal destruição, logo se associaram, teologicamente, aquelas ruínas ao pecado humano e à justiça de Deus. Por isso é que, no Antigo Testamento, Isaías (Is 1,10-20) vê nestas cidades um exemplo de injustiça social; em Jeremias (Jr 23,14) elas são sinónimo de adultério e falsidade; Ezequiel (Ez 16,49-50) vê em Sodoma o orgulho e o desprezo do pobre; no Levítico (Lv 18 e 20,23) estas cidades são um exemplo da depravação sexual dos cananeus e, já no Novo Testamento, esta mesma ideia se haveria igualmente de sublinhar e perpetuar (cfr. Mt 11,23-24; Lc 10,12; 17,28-29; Ap 11,8).

Com efeito, e apesar de a “letra” do texto nos incitar a colocar em Abraão o protagonismo da “estória”, ele é o protagonista, sim, mas por uma razão bem diferente: é que ele se nos apresenta aqui como o protótipo do homem que, sendo isento de toda a culpa/responsabilidade no castigo que recairá sobre os seus semelhantes, ergue a sua voz e intercede diante de Deus em defesa daqueles que, á partida, não merecem defesa…. Ele, um homem bom e justo, intercede e apela a Deus pela salvação dos injustos e pecadores… Onde é que já se viu isto? Onde é que já todos vimos isto?

Mas, com ainda maior rigor, nem é ele, Abraão, o verdadeiro e maior protagonista: é Deus e a sua Justiça, uma justiça que, ao contrário da humana (“olho por olho, dente por dente”) consiste, essencialmente, no perdão (“se encontrar… 50… 40… 30… 20… 10… perdoarei…”). Caros amigos: dizia na Introdução à celebração de hoje que a Liturgia, particularmente neste “Tempo Comum”, vai trazendo à nossa reflexão as grandes questões do Existir Cristão; ora, aqui chegados, teremos que parar para sublinhar e registar: falar da oração (e particularmente desta, feita “por um justo” em prol dos seus demais – porventura mais ou pelo menos igualmente pecadores como ele -) é estarmos a tocar  o centro nevrálgico de toda a teologia cristã, pois foi o próprio Jesus Quem, na Cruz, realizou plenamente esta entrega-doação total em prol dos seus irmãos (Nm 16,22; Jr 5,1; Ez 22,30; Rm 3,5-6). É, portanto, a esta luz (da Cruz de Jesus) que o texto do Génesis verdadeiramente se ilumina e revela; e assim iluminado, deixa transparecer, de forma agora mais “cristalina”, o seu profundo sentido: que é importante, necessário, urgente e premente orar, pedir, insistir, ontem, hoje e sempre… Pois Deus, o “Abbá” (à letra: o “papá”, o “paizinho”…) cujo rosto misericordioso Jesus nos apresenta e de Quem, sendo Ele tão próximo e íntimo, nos faz igualmente próximos e íntimos, precisamente através da oração que nos ensina, este que é o nosso Deus sempre nos ouve, sempre escuta “o clamor do Seu Povo”. Assim mesmo o experienciou e testemunhou Jesus, particular e sumamente no desespero do Jardim das Oliveiras, em 5ª Feira Santa (Mt 18, 39), ou na solidão da Cruz, na tarde de 6ª Feira (Mt 27, 46)… Porque Ele “é grande, mas não esquece o humilde” (como ouvimos no Salmo); por isso “Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte.” (At 2, 24). 

E eis aqui a ponte que liga o relato de Abraão ao Evangelho: mesmo sabendo que são o louvor e a ação de graças os “modos de orar” primordiais e fundamentais da nossa fé (na lógica do Dom, primordial e permanente com que fomos e somos, a cada dia, agraciados…), convém assinalar que, também na única oração que Jesus nos ensinou, esta dimensão da súplica esteja igualmente presente, sim, mas profundamente “equilibrada” pela confiança-esperante n’Aquele a quem nos dirigimos. Porque só esta proximidade-intimidade tal permite (recorde-se que também Abraão, que estava “diante do Senhor”, d’Ele se aproximou – ainda mais – para Lhe falar… “ao coração”, diríamos…), é a este mesmo Deus-Pai misericordioso que Jesus nos ensina a rezar.

Jesus mostra-nos que é ao nosso Pai (e não a um qualquer deus-distante) que nos dirigimos, com o respeito (temor) que Lhe é devido, sim, mas fundamentalmente com a certeza confiante de que o conforto do seu regaço e abraço serão sempre superiores à aspereza da sua voz tonitruante. Por isso este Pai tem um nome que merece ser “santificado” (respeitado, não dito em vão, re-conhecido); o Seu Reino, “de paz, justiça e alegria” (como bem se canta em Taizé) é por nós esperado ansiosamente; o Seu pão (Palavra e Corpo) é o nosso sustento; o Seu perdão é a nossa Alegria; a sua Sabedoria é o nosso cajado que nos impede de cair…

“Venha o vosso reino. Dai-nos o pão. Perdoai-nos os nossos pecados… E não nos deixeis cair em tentação….” Tudo dizemos e pedimos no plural porque é na pluralidade – da Comunidade – que somos que tais dons podem ser acolhidos, saboreados, partilhados, multiplicados. Por isso, e mesmo que intrínsecamente pessoal (e por vezes mesmo solitária), a oração cristã nunca deixa (nem pode deixar) de ser “comunitária” e eminentemente “solidária”: orar com os outros e pedir pelos outros é orar e pedir pelo “bem comum” que a todos congrega e diz respeito; orar e pedir por eles, hoje e sempre… e em particular por aqueles que nos ofendem e maltratam: eis quando a oração se (e nos) sublima…

A terminar esta reflexão, e tal como o próprio Evangelho uma palavra deve ressoar: confiança. “Pedi e dar-vos-ão. Procurai e achareis, batei e hão de abrir-vos. Pois todo aquele que pede recebe; quem procura encontra; e ao que bate abrir-se-á.” E quando não soubermos o que dizer nem o que pedir, quando, como dizia o poeta Eugénio de Andrade, quando nos parecer que “já gastámos as palavras pela rua (…) e o que nos ficou não chega / para afastar o frio de quatro paredes”, não nos esqueçamos que “Gastámos tudo menos o silêncio”: esse “silêncio eloquente” em que Deus tantas vezes nos responde… desde que nunca nos cansemos de pedir e insistir, como Abraão e como o discípulo desconhecido: “Senhor, ensina-nos a orar.”  Também em silêncio.

Luís Leal, 17 de Julho de 2016

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