Páscoa 2014
1ª semana da Quaresma

Começou já a celebração da Páscoa 2014 com a sua preparação ou Quaresma. Neste tempo fundamentalmente baptismal assumem grande importância as catequeses litúrgico-catecumenais. Desde logo a criação segundo o Génesis.

 A Criação do Universo

digitalseance

É impossível não nos maravilharmos com o relato de criação divina. Com a imensa generosidade de Deus criador dotando o mundo das condições físicas necessárias para a seguir o povoar de seres vivos e lhe acrescentar a sua mais importante criação, aquela que fez à sua imagem, o ser humano.

É impossível não nos deslumbrarmos e surpreendermos com as teorias do Big-Bang, da deriva dos continentes, da evolução das espécies. É impossível não nos espantarmos e interrogarmos acerca do povoamento do espaço, da guerra biológica, da manipulação genética.

O confronto entre a fé e a ciência percorre os séculos até aos nossos dias. Esteve presente em momentos críticos da civilização humana, nos momentos de trevas que fizeram a luz. Copérnico, Galileu, Descartes, Newton, Darwin e Wallace, Einstein, Freud e Damásio e tantos outros, são nomes que ficarão para sempre ligados ao caminho do homem na busca da verdade, do como, do onde, do quando, e, inevitavelmente, do porquê.

O desenvolvimento das várias ciências aproxima-as, no limite, das questões religiosas e metafísicas. A ciência procura o como, as segundas causas, mas não atinge o porquê, a causa primeira. O Homem, desde sempre se interrogou sobe as suas origens e as origens do Universo e sobre a sua finalidade, a sua razão de existir. Desde sempre o princípio e o fim. O relato da criação dava-nos quase todas as respostas, pelo menos no que diz respeito às origens, mas esse relato deixou de nos bastar… Muitos de nós interrogamo-nos actualmente sobre qual o papel de Deus na criação do Universo, da Vida e do Homem. Onde e como se sente o sopro divino quando o Universo e a própria Vida parecem ser unicamente governados por leis físicas e químicas? Onde colocamos Adão e Eva se o Homem tem um ancestral comum com os símios?

Temos de recontar a história da criação… sem fechar o livro do Génesis, vamos abrir e folhear outro… aquele que vem sendo escrito, página a página, por homens e mulheres, em vários tempos, em vários locais. Há páginas que se emendam, que se reescrevem, páginas que se arrancam em definitivo, outras que se arrancam a se voltam a colar, páginas escritas antes que o tempo as compreenda e que ficam à espera das outras que lhes darão sentido… o livro que está a ser escrito pela ciência.

O nosso conhecimento recua até quinze mil milhões de anos atrás, ao tempo em que havia um puré de matéria densa e informe; subitamente, uma explosão de luz, a matéria expande-se em todas as direcções, torna-se mais rarefeita e começa a organizar-se. Tomam parte nessa organização quatro forças físicas com valores tão ajustados que desde o primeiro instante tornam possível toda a evolução que se lhe seguiu. As primeiras partículas fundem-se em átomos e estes noutros átomos mais pesados, começam a brilhar as estrelas. Os átomos organizam-se em moléculas, a matéria atrai mais matéria, formam-se os planetas. Num planeta especial, nem muito perto nem muito longe de uma estrela, existe água líquida. Na superfície da Terra as moléculas continuam a organizar-se e tornam-se mais complexas. Alguns conjuntos isolam-se fisicamente do meio, estabelecem trocas com ele e começam a ser capazes de se reproduzirem, surgem as primeiras células. A organização e complexidade continuam a aumentar, a vida explode em variadas formas à superfície do planeta. Uma dessas formas de vida é um primata obrigado pela seca a deixar a floresta pela savana. Assente em dois pés, com as mãos livres e o cérebro em desenvolvimento adquire capacidade de reflexão e abstracção, consciência, produz e transmite cultura. É o primeiro Homo, mas podemos chamar-lhe Adão ou Eva. Ser inteligente, consciente, capaz de antecipar as consequências da suas acções, imagem e semelhança de Deus. Feito de barro que simboliza toda a matéria do universo.

No Livro do Génesis conta-se a história sagrada da criação, no livro da ciência a história natural. Não se excluem nem se contradizem. Foram escritas em contextos históricos diferentes e partindo de pressupostos diferentes, mas são uma e a mesma história. A história da matéria que se organiza no sentido do mais complexo e do mais eficaz, do inerte que engendra lenta e gradualmente a vida, da vida que se multiplica, se diversifica e permite o aparecimento de seres com capacidade de reflexão e de consciência. Excluímos Deus da criação pelo facto de ter criado de forma evolutiva?, ou, pelo contrário, adquirimos uma nova consciência da grandeza da Sua obra?… Deus não criou o Universo e o Homem em sete dias, Deus cria! A criação acontece em cada momento, debaixo dos nossos olhos; as espécies surgem, modificam-se, evoluem, tornam-se cada vez mais adaptadas e mais complexas, e nós estamos nesse ciclo. Partilhamos a matéria do universo, sempre a mesma desde o seu início, e as suas leis, e ao mesmo tempo somos únicos. Somos poeira das estrelas, somos cinza e nada, somos a imagem de Deus.

Como pode existir oposição entre ciência e fé se o mesmo Deus que criou o Universo e a Vida, regidos pelas suas leis, criou também uma criatura a quem dotou de curiosidade e de inteligência crítica que a levam incessantemente a tentar descobrir essas leis e a compreender o funcionamento da Natureza? A ciência procura a verdade, e quanto mais formos capazes de nos aproximarmos da verdade mais nos aproximamos de Deus.

Se, na esfera pública, ciência e fé não se misturam, a ciência procura o como, a fé procura o porquê, a ciência duvida, a fé crê; na nossa esfera privada, no mais íntimo dos nossos pensamentos, cada um de nós interioriza e reflecte acerca dos novos conhecimentos e das novas verdades que todos os dias nos assolam. Para alguns, já predispostos a isso, as descobertas da ciência negam a existência de Deus, para outros levantam o véu sobre a grandeza da criação tornando-a simultaneamente generosa e inteligente.

Mas será que o Homem usa sempre a ciência para o bem do planeta e da humanidade? A questão das implicações e dos limites morais e éticos do desenvolvimento científico coloca-se com particular pertinência neste início do século XXI. Estamos na iminência de poder colonizar o espaço, de assistir à clonagem de seres humanos e não fazemos ideia das armas químicas e biológicas que poderão estar prontas a ser utilizadas a qualquer momento. Legislamos, proibimos, assinamos acordos.

Mas o Homem, ser livre, consciente, gosta de pisar o risco, de comer do fruto proibido, nem que seja uma só vez… Pelo menos uma vez a bomba atómica foi lançada, pelo menos uma vez experimentaram-se armas biológicas, pelo menos uma vez, muito provavelmente, será clonado um ser humano. Parece que faz parte da nossa natureza… Conseguimos prever as consequências das nossas acções e mesmo assim continuamos a optar, livre, consciente e voluntariamente pelo mal. A nossa imperfeição… o que nos falta para verdadeiramente sermos a imagem e semelhança de Deus… o pecado.

Provavelmente estamos mais perto do que pensávamos do barro original, Deus ainda não acabou a criação… e os desafios que nos são colocados são uma maneira de nos tornarmos Homens. Uma maneira de aprendermos a viver com os nossos conhecimentos, o nosso domínio sobre a Natureza, o nosso poder. Uma maneira de aprendermos a superar a nossa imperfeição.

Não é proibindo, censurando, travando os avanços da ciência, que vamos salvar a imagem de Deus e que vamos fazer com que não venha a ser usada para o mal. Chegamos a um ponto em que precisamos de reflectir, de aprender com os erros do passado, precisamos de repensar o nosso caminho na procura da verdade, fora e dentro de nós, onde Deus continua a sua criação.

(Homilia da Lígia na Serra do Pilar, em 2002.02.17, 1º Domingo da Quaresma)

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