Depois de Abraão, Moisés, o homem da libertação e da Lei. A Liturgia quaresmal não podia, por isso, esquecê-lo: o processo catecumenal estava a chegar ao fim com a Páscoa à vista.
Moisés
No seguimento da promessa de uma numerosa descendência que Deus fizera a Abraão, o Livro do Génesis termina com a história de seu filho Isaac, seguida da do filho deste, Jacob ou Israel. O livro seguinte, do Êxodo, começa com a lista dos doze filhos deste último, detendo-se particularmente em José, o filho predilecto de Jacob que os irmãos venderam e foi parar ao Egipto. Em tempo de vacas magras viria, afinal, a ser ele o salvador de toda a família. Tornado entretanto Grão-vizir do Faraó, haveria de abrir aos irmãos [que o tinham vendido por ciúmes: era o preferido do pai] a possibilidade de, acompanhados do próprio Pai, se refugiarem no Egipto, fugindo assim à fome que assolava o país, a Norte.
Aí “os filhos de Israel, foram fecundos e multiplicaram–se, tornando-se tão numerosos e poderosos que encheram o país. Todavia os egípcios tornaram-lhes a vida amarga com uma pesada servidão: barro, tijolo, toda a espécie de trabalhos no campo, tudo uma dura servidão” (Ex 1,7-14).
É nesta situação que nasce Moisés, descendente de Levi, um dos irmãos de José. Iavé chamá-lo-ia mais tarde do meio de uma sarça ardente para lhe comunicar: “Eu vi a opressão do meu povo que está no Egipto e ouvi o seu clamor; conheço os seus sofrimentos. Mas vou descer a fim de o libertar da mão dos egípcios e fazê-lo vir para uma terra onde corre o leite e o mel” (Ex 3,7-8). Esta história conhecêmo-la todos, mais ou menos, particularmente os catecúmenos.
Há diferentes maneiras de ler estes relatos. Podem ser interpretados de um modo fundamentalista, à letra, como se se tratasse de reportagens escritas para um jornal moderno. Quando se fazia uma leitura assim, pensava-se que ela era a única possível. Mas de facto não; uma leitura dessas não levava em linha de conta o que o autor tinha querido transmitir, não era capaz de interpretar o estilo literário utilizado, muito menos reparava que o autor se exprimia segundo a sua cultura, a do tempo em que escrevia, e não na cultura do leitor que lê o texto muitos séculos depois. É preciso, pois, fazer uma leitura inteligente do texto pois que uma leitura fundamentalista “é uma forma de suicídio do pensamento”.
A figura de Moisés enche na prática todas as páginas do livro do Êxodo. Mas, a sugestão da Liturgia, fixamo-nos na entrega do Decálogo ou dos Dez Mandamentos, das tábuas da Lei, e na renovação da Aliança já feita com Noé e com Abraão.
Este texto (Ex 20) é um dos mais célebres de toda a Bíblia. Para o percebermos bem seria necessário varrermos da cabeça todas as ideias que, na Catequese ou na Escola, nela nos meteram, o que não é fácil.
No início do relato, Iavé, por intermédio de Moisés, diz assim ao povo: “Fui eu, o Senhor, quem te tirou da terra do Egipto, dessa casa de escravidão”. Assim se apresentou Iavé ao seu povo a lembrar-lhe que não estava esquecido da promessa que fizera anteriormente àqueles dois também grandes vultos da história religiosa que evocámos nas semanas anteriores, Noé e Abraão. Deus não se esquece, é fiel.
No seguimento, entrega-lhe um pequeno código, um conjunto de regras elementares para a vida em comum. Códigos desta ordem tinham já ao tempo alguns povos da região do Grande Crescente. Anterior a este, por exemplo, era o Código de Hamurabi, rei da Mesopotâmia, uns 18 séc.s aC. Mesmo assim, no Decálogo, há leis mais antigas, as que começam por Não… (ainda hoje, aos meninos pequeninos dizemos não) e leis mais modernas e desenvolvidas, digamos, as positivas (Amarás o Senhor, teu Deus…).
Não é um vulgar legislador, um rei ou dirigente político quem faz isto; não é também um ídolo ou um deus como os outros deuses, é o Senhor, Iavé, o Totalmente-Outro, o Surpreendente, Aquele cujo mistério se não podia penetrar mesmo quando parecia estar à mão de ser apanhado: parecia uma sarça a arder mas não se consumia! (Ex 3, 2 ss),.
E noutro lugar, o livro do Deuteronómio resumiria tudo: “Escuta, Israel! O Senhor nosso Deus é o Maior. Tu amá-lo-ás de todo o teu coração, com todo o teu ser, com toda a tua capacidade. As palavras dos mandamentos que hoje te entrego estarão sempre presentes no teu coração. Tu ensina-los-ás ao teu filho, e di-los-ás quando estiveres em tua casa e quando caminhares estrada adiante, quando estiveres deitado e quando estiveres de pé” (Dt 6,4-7).
Depois de tudo isto ter acontecido, “Moisés relatou ao povo todas as palavras do Senhor e ele respondeu a uma só voz: poremos em prática todos as palavras que o Senhor pronunciou”.
Quem foi afinal Moisés, para lá de todas estas histórias que o texto bíblico dele nos conta?
Esta figura – histórica?, tipológica? – como que nos revela um Deus interessado pela história dos homens, um Deus cheio de paciência mas também de amor exigente. Em Moisés percebemos a existência de crentes que, numa época quase perdida na noite dos tempos, foram capazes de falar com o seu Deus. É verdade que o pensavam ainda um pouco à nossa maneira humana, um Deus que gostava de nós e que derrotava os nossos inimigos, é verdade, mas que ralhava também, que se irritava, que castigava e que perdoava. Para proteger o seu povo era às vezers intratável, intriguista até. Não era, portanto, um Deus abstracto: num Deus assim, até é fácil acreditar, digamos. Seja como for, Iavé era um Deus vivo, interventivo. Finalmente, com a sua sensibilidade e numa linguagem tão diferente da nossa hoje, quase só faltou a Moisés ter dito que Deus é Pai. Mas isso havia de revelá-lo Jesus, o filho e nosso irmão, aquele cuja Páscoa nos preparamos para celebrar.
(Homilia na Serra do Pilar, 3º Domingo da Quaresma, 2006.03.19)