Quem somos nós?

No fundo, quem somos nós? O que há de mais louco no Mundo (1 Cor 4, 10)?, o que há de mais fraco (1 Cor 1, 27)? e de mais desprezível (1 Cor 1, 28)?, gente que não dá valor ao que o mundo tem em grande consideração?

Se isto é verdade, das duas uma: ou abandonamos a nossa loucura e encarreiramos na sabedoria do mundo e na prudência da carne, ou continuamos loucos, fracos e desprezíveis e não conseguem mais por-nos em ordem.

De facto, não se trata já de nos pormos apenas à escuta dos sinais do Reino mas de sermos nós próprios pobres sinais do Reino e de pagarmos o preço da nossa ousadia.

Se isto é verdade, das duas uma: ou abandonamos a nossa loucura e encarreiramos na sabedoria do mundo e na prudência da carne, ou continuamos loucos, fracos e desprezíveis e não conseguimos mais meter-nos na Ordem.

Não conhecemos Paulo de Tarso, o que escreveu a Carta que hoje lemos? Era um perseguidor, entre os perseguidores o mais cruel e encarniçado. Mas quando a luz do Reino o fulminou, houve no seu coração espaço suficiente para a Fé entrar e ficar.

E nós: seremos muitos ou poucos?

Que o número não nos engane. Se já os nossos antepassados foram ditos um resto (Is 4, 3; Jer 23, 3), a nós chamaram-nos «pequeno rebanho» (Lc 12, 29, um conjunto muito modesto. Não caiamos na tentação de fazer estatística. Um dia, o rei David ousou fazer um recenseamento; mas com isso provocou a ira de Deus (2 Sam 24). Será que Deus não queria que se soubesse a pequenez do seu povo que tinha projectos demasiado grandes a levar a cabo com meios desproporcionados?

Apesar de «pequeno rebanho», nós somos muito maiores do que nós. Este resto tem a vocação das multidões, numerosas «como as estrelas do céu e a areias da praia» (Heb 11, 12)

A Nova Lei, a Lei da Liberdade, a Carta do Reino de Deus, o Programa de vida dos que se libertaram da lei da morte, como diria Camões («daqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando»), a doutrina do Caminho para a Terra que nos foi prometida em herança, é anunciada a uma multidão faminta e sedenta de Justiça.

É verdade que, por agora, esta multidão é realmente pequena e só um pequeno número de discípulos come o Pão que vem do Pai. Mas a multidão está lá; nós é que, por dificuldades históricas, ainda não fermentamos a massa. E a massa ganhou côdea, por isso não respira, e o fermento, portanto, não fermenta.

Entretanto, a Regra da nossa vida faz as alegrias dos discípulos. Os maus dias já passaram! Já não é preciso fugir para um mosteiro para sermos quem somos, nem para um convento para sermos irmãos (isto é, fratres/frades) uns dos outros. Não precisamos já de procurar um deserto como condição sine qua non de sermos santos. À santidade somos todos chamados, desde o dia do nosso Baptismo que a todos nos fez iguais e, a todos, todos nos chamam às tarefas do Reino (LG 32): «todos os fiéis se santificarão cada dia mais nas condições, tarefas e circunstâncias próprias da vida e através de todas elas» (LG 41). Todos temos vocação de santos: nós que não somos nada, «tudo podemos naquele que nos conforta» (Filp 4, 13), porque fomos escolhidos para confundir os sábios e os fortes (1 Cor 1, 27). Não precisamos de fugir do Mundo para vencer o Mundo, não precisamos de deixar a Igreja para a encontrar, não precisamos de deixar as nossas casas para nos tornarmos “da Casa de Deus”. Por paradoxal que pareça, já não é preciso deixar nem pai nem mãe, nem mulher nem marido, nem irmãos nem irmãs, nem filho nem filha (Mt 10, 37; Lc 14, 26).

Quereis tornar-vos ricos?: tornai-vos pobres! Quereis converter os sábios?: descei ao nível dos analfabetos! Quereis suster os vossos perseguidores?: falai-lhes de Paz. Quereis converter os pecadores?: não vos julgueis melhores que eles! Quereis converter a Terra?: descei ao fundo dela, enterrai-vos!

Eis o programa de vida. 

Como o Profeta, metei-o na boca e comei-o, mastigai-o (Ez 3, 1-3). Inicialmente será amargo, mas depois doce como o mel.