Silêncios

Henry Ossawa Tanner -Study for The Annunciation (1898)

Henry Ossawa Tanner -Study for The Annunciation (1898)

Que os Evangelhos não são “reportagens” nem “biografias”, já o sabemos… Também por isso, é o silêncio a resposta que obtemos quando lhes perguntamos o que, provavelmente, nunca nos iriam responder. Ora, querendo nós saber dos “pormenores” do nascimento de Jesus (que é sempre aquilo que mais queremos saber quando alguém nasce… ou morre), Marcos e João não dizem nada. Mateus, esse, diz-nos muito pouco: apresenta-nos a sua “genealogia” (Mt 1, 1-17) e as “circunstâncias especiais” em que “aquilo” acontecera (“Maria estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo… – Mt 1, 18); diz-nos até que José, que a dado momento “resolveu deixá-la secretamente”, teve depois um sonho revelador que o leva a mudar de atitude: “José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor, e recebeu sua esposa. E, sem que antes a tivesse conhecido, ela deu à luz um filho, ao qual ele pôs o nome de Jesus.” (Mt 1, 19-25). E depois? Depois já uma estrela brilhava no céu, já vinham por aí uns magos, e atrás deles o Herodes na sua “matança dos inocentes” (Mt 1, 16)…

Lucas, mais sensível e por isso mais dado a “pormenores”, põe tudo a começar na visita do Anjo e no “fiat” de Maria (Lc 1, 26-38); depois, conta-nos que de tão feliz que ela ficara, foi logo a correr contar a sua prima Isabel (que também estava grávida), pois talvez fosse quem melhor poderia compreender tal alegria (Lc 1, 5-25), uma alegria tal que pôs Maria a cantar as “maravilhas que Deus fizera nela” (Lc 1, 46- ). Depois, vem o recenseamento, a viagem “à força” quando era descanso o mais aconselhável… e o esperado-inesperado acontece: “(…) quando eles ali se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à luz e teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria” (Lc 2, 6). E paremos aqui para voltar atrás, pois ainda não é aqui que estamos.

Pormenores, dizia eu no início, muito poucos. Silêncios, muitos mais, portanto. Interrogações, hipóteses, tantas quantas os ditos silêncios (pelo menos). Que fazer? Ater-se ao escrito e nada mais? Tentar perceber as linhasnas entrelinhas? Ou ousar preencher os espaços, à nossa maneira (“quem conta um conto…”)? Nada de grave nem de insólito, se tivermos em conta que foi, precisamente (e) assim que “naquele tempo” tudo começou… a ser re-dito, re-contado, re-escrito… mas esse é outro tema…Tratemos dos pormenores, portanto. Do que, não sendo importante (porque quase sempre se esquecem…) é o mais importante (porque entretecem a História e as “estórias”) dos Evangelhos como da Vida: pormenores que escapam… mas que estão . Quem os vê? Quem os percebe? Quem os explica? Os arqueólogos e os exegetas, certamente. Os historiadores, os teólogos e demais “peritos destas coisas”, pois claro. Mas também os literatos, os poetas. Os poetas-profetas, como aqui há bem pouco tempo se disse e eu também aqui subscrevo.

É longíssima e antiquíssima a lista de nomes e de títulos que a isso se dedicaram: preencher os “espaços em branco” deixados pelos textos bíblicos (do “Evangelho de Pseudo-Tomé” aos “12 anos na infância do mundo” de Philippe Le Guillou). Hoje, neste 4º Domingo do Advento de 2016, só quero trazer um trecho de um dos últimos, e especialmente sobre estes textos e estes tempos, “às portas do Natal”.

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“Os tempos não corriam de feição para o nosso povo. 

– Basta, já não aguento mais! Estes romanos não deixam crescer a erva que pisam! – disse Selemias, o oleiro, que discutia acaloradamente com outros homens, na praça, aonde eu tinha ido naquela manhã por causa de uma vasilha de azeite. – Julgam que são donos do mundo, mas hão-de pagá-las quando o Messias chegar. Olho por olho, dente por dente.

– O Messias? E quando é que ele chega? Já estamos cansados de esperar. E enquanto ficamos à espera os malditos hão-de continuar a sugar-nos o sangue. (…)

Eu falava com o meu menino.

Se naquele Outono tinha firmado com o meu esposo uma forma nova de comunicar, com o cair da folha comecei a comungar com o filho que trazia dentro de mim. Todas as mães fazem conjecturas acerca de como será o seu filho. Sonham acordadas e vão traçando esboços da sua hipotética figura, dos seus gostos, da sua maneira de ser. Falam com ele na intimidade. Em mim dava-se uma estranha conjugação, eu acalentava o bebé que tinha dentro de mim, sim, e falava com ele como se fala com um bebé, mas ao mesmo tempo a minha alma encolhia-se, perdia-se, punha-se de joelhos diante dele, intimidada por tudo o que pressentia do amor e da energia inexplicável que estavam a crescer dentro de mim.

(…)

Naquela altura o que mais havia era revoltas daqueles que estavam à espera que o Messias surgisse como um caudilho capaz de acabar de vez com a tirania dos romanos, dos que, em poucas palavras, estavam à espera de um líder político. Eu, que não passava de uma pobre aldeã, pouco sabia então do que se passava no mundo, e até mesmo na pequena terra em que vivia, que como mais tarde vim a saber, nem sequer aparecia nos mapas nem nos itinerários dos soldados do império. Isaías tinha falado de uma rapariga que havia de conceber e dar à luz um filho, ao qual poria o nome de Emanuel, que quer dizer ‘Deus connosco’. Isto sim, isto tinha eu ouvido ler muitas vezes. Quando o rabino dizia o nome Emanuel, já em criança eu estremecia. E agora sentia um prazer enorme em pensar nele vezes sem conta, em saborear aquela palavra que podia ser-me atribuída.

(…)

Naquela altura, quando fechava os olhos e me punha à escuta das sensações que o filho que trazia nas entranhas me transmitia, apenas sentia uma paz sem nome e acima de tudo uma força interior que nascia da fragilidade, de algo tão frágil e tão pequeno como eu.

(…)

Para mim, como hei-de dizê-lo?, ele era já o Emanuel, ou seja, o Deus Connosco. Tinha nascido do meu silêncio e preenchia todos os silêncios e todos os vazios. A notícia da sua vinda tinha-me chegado quando me encontrava em contemplação e depois, quando contemplava a natureza, sentia o mundo a palpitar dentro de mim. (…) De vez em quando, sendo eu uma insignificante judia, o peso da dúvida acabrunhava-me. Ele seria realmente um rei, um caudilho do povo ou um grande sacerdote do templo de Jerusalém? Mesmo que não passasse de um profeta, isso assustava-me. Pensava nas complicadas histórias dos que se tinham atrevido a dizer a verdade em Israel, dos que denunciavam as injustiças e falavam sem papas na língua aos poderosos, arriscando-se assim a sofrer as consequências. Pressentia que o meu filho ia meter-se em muitas embrulhadas…

(…)

Jesus, Jesus, ai o meu menino, o filho de Javé, o meu príncipe querido… Será esta gente capaz de te compreender?

E logo a alegria de o ver em breve nos meus braços afastava de mim as inquietações. Devo confessar que desde o anúncio da sua chegada a minha vida era uma mistura de confiança e de incertezas, de júbilo e de inquietantes pressentimentos de mãe.

Preparei com entusiasmo a alegre chegada. No fim de contas a realidade da vida impunha-se, dentro e fora de mim. A minha barriga crescia, e com ela a minha esperança. Quanto ao José, tinha muito trabalho em Séforis, a capital, e às vezes ausentava-se por dois ou três dias por causa de encomendas urgentes que lhe faziam de lá. Em contrapartida, em Nazaré, quase não havia trabalho para ele. Eu, que estava cada dia mais grávida, aproveitava o tempo a fazer fraldas e a roupa de cama do bebé e a preparar a casa para a sua vinda. Que sossegadas eram aquelas horas passadas com a roca e a agulha! De vez em quando chegavam (…) boas notícias da Isabel. Estávamos ligadas por um estado de auspiciosas expectativas e acima de tudo pela certeza íntima de que estávamos a percorrer juntas um caminho ainda não sulcado, conduzidas pelo mistério. E eu muitas vezes me perguntava se haveria alguém que, pensando como deve ser, não sentisse que estava a ser conduzido.

Um dia (…) chegou o José, cansado e a enxugar o suor, como sempre. Estava preocupado e não era capaz de o esconder.

– Que se passa, José?

– (…) O que se passa é que esta manhã esteve na praça um pelotão de soldados a cavalo. O centurião leu um édito. “(…) ordena-se que todos os que vivem nestas terras se recenseiem (…)”. Nem podes imaginar como as pessoas estão indignadas, bem sabes como os ânimos são hostis aos romanos. (…) Alguém falou em sublevação, mas houve logo quem replicasse que isso era impossível, uma vez que o povo de Israel está cada vez mais vigiado. Repara bem no que isto significa para nós, Maria, para os nossos planos, e logo agora, no teu estado! O que vamos fazer?

O José estava indignado. Naqueles primeiros instantes devo ter esbugalhado os olhos de medo. (…)

– Temos de partir o mais depressa possível, Maria, se não corremos o risco de o bebé nascer durante a viagem. O melhor era partirmos amanhã mesmo – disse o José, muito excitado, enquanto enxugava o suor da testa.

Vivi então uma inquieta mistura de sentimentos de confusão e sobressalto. Fiquei apreensiva, não há que negá-lo. Aquilo alterava por completo os nossos planos. Tínhamos de preparar um mínimo de coisas para a viagem e de nos pôr a caminho. Abandonar o lar naquele momento (…). Uma pessoa agarra-se à amenidade da sua casa, ao ambiente que conhece, à paisagem que o rodeia, sobretudo quando vai ter o primeiro filho e o imagina no berço, protegido, quente e aconchegado. Aquelas notícias vinham contribuir para as minhas preocupações. Será que nada no meu casamento ou na minha maternidade pode ser fácil?, perguntava-me eu, angustiada. (…) Assim, refugiei-me no meu silêncio e aceitei arrostar às escuras os acontecimentos que a vida me impunha e acolhê-los como providenciais. Algum sentido hão-de ter, dizia a mim própria, baixando a cabeça, consciente de que se tinha dito sim, era um sim que se prolongava. Preparei então algumas provisões e naquela noite pouco dormi.”

In Pedro Miguel Lamet – As Palavras Caladas. Diário de Maria de Nazaré (Edições Tenacitas, 2005)

Luís Leal, 18 de Dezembro de 2016

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