Uma vida redentora

Todos conhecemos o Cântico da Vinha de Isaías, um dos mais belos de todo o Antigo Testamento.
Conhecedor profundo do percurso espiritual do seu povo, Jesus arranca dele a sua parábola. O cultivo da vinha, em primeiro lugar, feito com cuidado e carinho. Depois, um proprietário absentista que arrenda a vinha a caseiros. Finalmente, e fazendo-se eco das correntes revolucionárias zelotes do seu tempo, os caseiros que, após terem espancado e mesmo assassinado os criados que vinham recolher as rendas, mataram o filho do dono pensando que, assim, ficariam eles com o terreno.
Este terá sido o ensinamento original da parábola. É possível que Jesus tenha querido distanciar-se das posições dos zelotes – os nacionalistas do seu tempo que pretendiam reconquistar o Templo aos romanos e se negavam a pagar-lhes impostos – opondo-lhes os “bem-aventurados construtores da paz” e os que não respondem à violência com outra violência.
A parábola sofreu, no entanto, alterações posteriores fundamentais.
Num primeiro momento, a Igreja primitiva rapidamente percebeu que o Messias “veio para o que era seu, mas os seus não receberam” (Jo 1,11). Os novos e derradeiros agricultores a quem se entregou a Vinha seriam mesmo os Doze e as comunidades à volta deles reunidas.
Mas… durante muitas gerações, deu-se à morte de Jesus, uma 1ª explicação, expiatória: ele morreu na cruz para assim poder ser oferecido a Deus um sacrifício, que ele, Deus, exigia e que lhe era devido pela ofensa que lhe fora feita pelo pecado do homem Adão. Teoria expiatória, dizia. Em substituição do pecador, morreu Jesus: sobre a sua cabeça juntaram-se os pecados da humanidade. Jesus entendia-se, portanto, como um preço de resgate. Portanto, Jesus morreu pelos nossos pecados.
Nesta teologia, profundamente influenciada pela mentalidade ético-jurídica do mundo romano (quem deve paga), a vida de Jesus só tem um sentido: ele nasceu e viveu para, morrendo na cruz, (2ª explicação) pagar a Deus uma dívida que lhe era devida pela humanidade. A uma ofensa infinita um resgate infinito: como este resgate não podia ser pago pelo homem, aí está o filho de Deus a pagar a culpa do homem! Nesta explicação, Jesus, enviado do Pai, vem a restabelecer a ordem alterada pelo pecado com a sua morte na cruz: expiar e redimir.
Esta teoria – que foi ainda ensinada aos que somos mais idosos – começou a ser contestada por muitos lados, pelo menos o Vaticano II (houve, portanto, outras explicações, 3as explicações). Ainda pior: até então, não havia lugar para a ressurreição: Jesus teria vivido para morrer.
Mas… não se considerando a historicidade da cruz de Jesus, a gente não obtinha resposta à pergunta. E a pergunta era esta: quem quis a morte de Jesus?, quem quis a cruz?, foi Deus?
A cruz é um produto da nossa história (4ª explicação), não da cabeça de Deus. Foi um crime e não a necessidade da morte de Jesus na cruz, um crime cometido pelo poder que esmaga a verdade e a justiça. Ou será que o nosso Deus precisava de um crime para salvar o homem? Não, sem qualquer dúvida que não: o nosso Deus salva o homem pelo seu amor ao homem e por mais nada.
É que a vida de Jesus não é só a sua morte. É toda a sua vida que é redentora. Que quer isto dizer?
A morte de Jesus é não a explicação da sua vida, mas o momento culminante da sua vida. Se Jesus tivesse vivido outra vida não tinha tido a morte que teve.
Jesus não morreu em vez dos nossos pecados, tão pouco por causa dos pecados dos homens, como hoje se morre em qualquer ataque terrorista, ou por qualquer acidente de automóvel, ou até na luta de um bombeiro na luta contra um incêndio.
A morte de Jesus é a expressão culminante e a verificação incontestável de toda uma vida de amor solidário e entrega generosa à causa do Reino. Jesus salvou-nos não pela sua morte mas por uma vida que culminou na cruz, vida “que não era possível que ficasse sob a morte”; por isso mesmo, como disse Pedro à multidão no dia de Pentecostes, “Deus ressuscitou-o, libertando-o dos grilhões da morte, pois não era possível que ficasse sob o domínio da morte” (At 2,24).
Mas “A vinha do Senhor do Universo é a Casa de Israel e os homens de Judá são a casta escolhida. Ele espera retidão, mas há só sangue derramado; esperava justiça e há só gritos de horror” (Is 5,7). Como se vê!

Arlindo de Magalhães, 4 de outubro de 2020