A Misericórdia

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“Traduttore traditore” – dizem os italianos: O tradutor é um traidor! É muito difícil passar um texto duma língua para outra.

É muito difícil traduzir a palavra hebraica “rehamîm” > clemência > compaixão > pena > indulgência > perdão. Tudo isto cabe em “rehamîm”. Descritivamente, “rehamîm” é um sentimento íntimo e profundo, de amor, a ligar duas pessoas: “Assim como um pai tem rehamîm do seu filho, assim Deus o tem para com os que o levam a sério” (Salmo 103,13).

Difícil no hebraico, difícil no grego: ”oiktirmós”, que um qualquer dicionário escolar traduz vagamente por “sentimento de compaixão e piedade”.

O latim criou uma palavra que nada tem a ver nem com o hebraico nem com o grego: misericordia (misereo > ter compaixão, piedade… + proveniente do coração [cordis]).

Conceitos e palavras complexos, repletos de conteúdo mas não de todo precisas! No Evangelho de Lucas agora mesmo lido, Jesus — depois de ama os teus inimigos, se te baterem numa das faces dá também a outra, empresta antes que te peçam, ama os que não te amam, também os pecadores… — resume tudo num “Sede misericordiosos como o vosso Pai o é” (Lc 6,36). Ou seja, depois de insistir na necessidade de praticar, desde o fundo do coração e de modo universal, o amor do próximo, perdoando mesmo aos inimigos e perseguidores, fazei o que está acima da Lei.

Nesse sentido, e numa encíclica publicada em 1980, A Misericórdia Divina (DM), o Papa João Paulo II dizia assim:

«A experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a Justiça, por si só, não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se não permitir àquela força mais profunda que é o amor modelar a vida humana nas suas várias dimensões».

«Aquela força mais profunda que é o amor»: cá estamos nós na dificuldade de criarmos uma palavra para dizer esta coisa vaga — aquela força… — que vem já da cultura hebraica e da grega. Os latinos foram mais objetivos: misericórdia não é uma palavra vaga mas também não explica o conteúdo: «Aquela força — indizível — mais profunda que é o amor».

No Livro do Êxodo, Moisés dirige-se ao Senhor nestes termos: “Ó Deus de Israel, um Deus rehamîm e clemente, pausado na ira, cheio de bondade e de fidelidade, que mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado, mas não declara inocente o culpado nem pune o crime dos pais nos filhos” (Ex 34, 5-6).

Este Deus, num tempo em que ainda era “olho por olho, dente por dente”, este Deus estava acima da Lei; como acima da Lei estava o samaritano da estrada para Jericó que acudiu ao homem caído nas mãos dos salteadores (Lc 10,29-37), ou o próprio Jesus quando orou ao Pai assim: “Perdoa-lhes, Pai, que não sabem o que fazem!” (Lc 23,34).

A misericórdia ultrapassa a Justiça:

“A misericórdia autenticamente cristã é, em certo sentido, a mais perfeita incarnação da igualdade entre os homens e, por conseguinte, também a incarnação mais perfeita da justiça, na medida em que esta, no seu campo, tem em vista o mesmo resultado. Enquanto a igualdade introduzida pela justiça se limita ao campo dos bens objetivos e extrínsecos, o amor e a misericórdia fazem com que os homens se encontrem uns com os outros naquele valor que é o mesmo homem, com a dignidade que lhe é própria” (DM 14).

Por isso Paulo dizia aos Coríntios:

«Vós, os eleitos de Deus, seus santos e imaculados, revesti-vos de sentimentos de terna compaixão, de benevolência (bem querer), de humildade, de doçura, de paciência: suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, mesmo que algum tenha motivo de queixa de outro. E, acima de tudo, a caridade, que é o vínculo da perfeição. Que a paz de Cristo reine em vossos corações: é este o objeto do apelo que vos reuniu num mesmo corpo. E, por fim, vivei em ação de graças» (Cl 3,12).

Nas comunidades, é preciso dizer isto e viver isto. No mundo, não é assim; resolve-se tudo com agressões e vinganças, tribunais e, por fim, guerras, sejam elas quais forem. Mas «entre vós não será assim» (Lc 22,26). Entre nós vigore o que o Senhor Jesus Cristo nos ensinou: «Perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido».

Na Igreja (os cismas…), nas comunidades (na nossa, como experimentamos todos…), nas famílias (zangas insanáveis e dramáticas, por vezes……), nas sociedades (guerras civis ou internacionais…), que são na prática lugares ou sacramentos do amor de Deus aos homens e dos homens entre si, grandes amores se desfazem transformados muitas vezes em ódios maiores.

O Papa Francisco pensou num Ano da Misericórdia (Dezº 2015 – Nov 2016). Mas como na Igreja não há programação capaz, ainda andam por aí uns cartazes, mas onde é que já vai o Ano da Misericórdia! 5 frases do Papa:

“Redescubramos as obras de misericórdia corporais: dar de comer aos famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus, acolher os peregrinos, dar assistência aos doentes, visitar os presos, enterrar os mortos. E não esqueçamos as obras de misericórdia espirituais: aconselhar os indecisos, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as ofensas, suportar com paciência as pessoas molestas, rezar a Deus pelos vivos e defuntos” (Bula Misericordiæ Vultus, 2015).

“Como é difícil muitas vezes perdoar! E, no entanto, o perdão é o instrumento colocado nas nossas frágeis mãos para alcançar a serenidade do coração. Deixar cair o rancor, a raiva, a violência e a vingança são condições necessárias para viver felizes” (Mensagem para a XXXI Jornada Mundial da Juventude 2016).

“Quanto desejo que (…) as nossas paróquias e as nossas comunidades cheguem a ser ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença (Mensagem para a Quaresma 2015).

“Não se pode viver sem perdoar ou, pelo menos, não se pode viver bem, especialmente em família (Audiência geral, 4 Novº 2015).

“A misericórdia para a qual somos chamados abraça toda a criação que Deus nos confiou para sermos cuidadores e não exploradores, ou pior ainda, destruidores” (Audiência inter-religiosa, 20 Outº 2015).

Pentecostes

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Deus revelou-se aos homens de muitas maneiras e formas, desde os tempos antigos, como diz o autor da Carta aos Hebreus, logo a abrir: “Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos”.

Mas a verdade é que se revelou de modo especial de duas maneiras. Por Jesus sobretudo: “Quem me vê vê o Pai” (Jo 14,9). É a maior. Mas não é a única. E para muitos homens essa maior revelação de Deus nem sequer funciona: sempre houve e haverá muitos homens que não conhecem Jesus. Como pode, para eles, ser Jesus o maior sinal do Pai?

Se Jesus é um sinal que não funciona para todos, para todos é de certeza o Espírito de Deus. Por isso é que já o Profeta dizia que ele era derramado sobre toda a carne (Jl 2,28). Por isso ainda, explicava o Vaticano II, em todas as religiões há elementos de verdade e santidade e nelas encontra-se “por vezes até o conhecimento da Verdade suprema ou mesmo de Deus Pai” (NA 2). Assim é que “quando os filhos de Abraão se calam, gritam as pedras” (Lc 19,40). Quem gritou os Direitos do Homem, foram os cristãos? Quem gritou os Direitos do Trabalho, Liberdade e Democracia? Nós também gritámos outras coisas, e às vezes as mesmas, mas noutro tempo: quem gritou os Pobres no séc. XII, quem gritou Albergarias, e Hospitais, e Universidades, e Misericórdias?.

Por tudo isto é que “o Espírito do Senhor encheu o universo”, ele que ”dirige o curso dos tempos e renova a face da terra com admirável providência” (LG 26). Por isso é que “em toda a terra os homens serão estimulados à esperança viva para que finalmente sejam recebidos na paz e na felicidade infinitas, na pátria que refulge com a glória do Senhor” (GS 93).

Porque o Espírito do Senhor é derramado sobre toda a terra, sobre toda a carne e sobre todo o tempo é que Jesus pôde dizer ao escriba – um escriba (um defensor da letra da Lei que, à partida, não respeitava o espírito da Lei!): “Não estás longe do Reino dos Céus!” (Mc 12,34). E não disse ao centurião, um pagão: “Nunca em Israel encontrei semelhante fé!” (Mt 8,10)?, acrescentando de seguida: “Muitos virão, do Oriente e do Ocidente sentar-se à mesa com Abraão, Isac e Jacob, no Reino do Céu” (Mt 8,12)? E a Zaqueu, não acabou também por chamar-lhe “filho de Abraão” (Lc 19,9)? E não foi um soldado romano o primeiro a reconhecer que “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” (Mc 15,39)? E de Cornélio, outro centurião, outro pagão, não nos dizem os Atos dos Apóstolos que, muito antes de ouvir falar de Jesus, já levava Deus a sério, tanto que as suas orações e esmolas subiam à presença de Deus? (Act 10,2 e 4). É melhor parar por aqui pois que os Atos dos Apóstolos, para contarem como os discípulos de Jesus se abriram progressivamente aos pagãos, narram mais acontecimentos que reflexões. Cumpria-se a profecia:  “Muitos virão, do Oriente e do Ocidente…”.

É que “o Espírito sopra onde quer” (Jo 3,8). O Espírito de Deus não está aprisionado por nada, nem amarrado a nada. Deus está em toda a parte – aprendemos no catecismo – e com ele o seu Espírito, que é Espírito de Deus. A misteriosa realidade do Espírito Santo, que é o Espírito de Deus e de Jesus – ele “procede do Pai e do Filho”, como diz o Credo -, não se deixa manipular por nenhuma Igreja nem por nenhuma teologia, por nada nem por ninguém.

O Espírito de Deus não se esgota em ninguém, muito menos ninguém tem o seu exclusivo. Como é que foi com os evangelistas? Não é verdade que nem nos Evangelhos o Espírito cabe dentro da letra? Por isso temos 4, e não 1 só Evangelho. E não é verdade que, dos 4, há 1 (o de João) que sai da forma? E as 14 cartas de Paulo?: é ou não é verdade que nenhuma delas tem uma citação que seja, explícita, de qualquer dos 4 evangelhos? E com todas as outras cartas não sucede exatamente o mesmo? Os escribas do Reino de Deus não são repetidores, antes sabem tirar do tesouro coisas novas e antigas. Nisto, e connosco os próprios Judeus, quer queiramos quer não, levamos vantagem sobre os nossos primos do Livro Único: não caímos tão facilmente em fundamentalismos (o que não quer dizer que não caiamos!). “O Espírito de Deus sopra onde quer” (Jo 3,8), mas a sensibilidade cristã acrescentou: onde quer, quando quer e como quer. Por isso é Espírito livre e de liberdade. Deus não cabe nos nossos esquemas, sejam quais forem.

Durante muito tempo, na Igreja, as coisas passaram-se como se o Espírito de Deus fosse dado apenas a alguns, e muito poucos. Aos outros competia apenas obedecer aos monopolistas. Mesmo assim, foi sempre muito difícil explicar certas coisas: chamassem-se Francisco de Assis ou Ozanam, João XXIII ou o apelo dos pobres e dos sinais dos tempos. O Papa Francisco é um exemplo claro: por isso sofre uma oposição frontal. Já quando o Papa Leão XIII (1878-1903) falou das “Coisas Novas” (Rerum novarum), pela Igreja adiante muitos ou até quase todos rezaram pela sua conversão!

Como difícil foi, no Ocidente, perceber “o que o Espírito diz às Igrejas” (Apo 2)! Ou não acreditamos que o Espírito é dado às Igrejas? Por isso há muitas coisas que “competem às comunidades cristãs” (OA 3) mais que aos cristãos tomados individualmente. Não me sai nunca da cabeça aquela coisa que diz o Livro dos Atos (15,28) a propósito das resoluções tomadas em Jerusalém: “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós…”. João explicaria: “O dom do Espírito permanece em vós. Não tendes por isso necessidade que ninguém vos ensine. O Espírito que recebestes de Jesus ensina-vos todas as coisas. E ele é verdadeiro e nele não há engano” (1 Jo 2,27). Está aqui refletido o difícil equilíbrio entre a dimensão institucional e carismática da Igreja: e nenhuma delas pode abafar a outra. Por isso, na Igreja, é muito importante o discernimento dos espíritos. Mas nunca esquecer quanto, de Mateus a Paulo, de João ao Apocalipse, se nos diz como, na Igreja apostólica, havia consciência de que o Espírito era dado às comunidades.

Estas coisas não se acreditam sem mais; experimentam-se e por isso se acreditam, “Viu e acreditou” (Jo 20,8): no crer, o ver é muito importante, como já notava o evangelista João.

Ao longo da nossa história – Serra do Pilar – temos visto muitas coisas. Será a nossa cabeça coisa assim tão importante para explicar tanta coisa? Embora com uma afirmação seca, sequíssima, das mais esqueléticas do Credo (o que é significativo), eu “Creio no Espírito Santo”.

Arlindo de Magalhães, 15 de Maio de 2016

A Alegria do Amor

“Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é a lógica do Evangelho. Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos, seja qual for a situação em que se encontrem”.

Clarinho como a água, eu esperava uma notícia assim há pelo menos 30 anos. Disse-a agora o Papa Francisco num documento titulado “A alegria do amor”. E acrescentou: “Não é possível dizer que todos os que estão numa situação chamada irregular vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (Alegria do Amor). E continuou assim:

“Um pastor não pode sentir-se satisfeito a aplicar apenas leis morais àqueles que vivem em situações irregulares, como que pedras atiradas à vida das pessoas”; lembro-lhes por isso que «o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor»” (Alegria do Amor).

Naquele dia em que foi divulgado o documento papal, no passado 19 de março, vieram-me as lágrimas aos olhos. Recordei tanta gente que me passou pelas mãos naquele Tribunal diocesano! Tanta gente que me contou dos seus sofrimentos, alguma da qual orientei para o Registo Civil, pois que estavam fechadas as portas da Igreja. Eu sabia, sempre soube, aonde queria chegar o Papa João Paulo II, no seguimento do Sínodo dos Bispos de 1980, quando, num outro documento papal, Familiaris consortio (A comunidade familiar) disse:

“Exorto calorosamente os pastores e a comunidade de fiéis no seu conjunto a ajudarem os divorciados que voltaram a casar. Com grande variedade, todos se esforçarão por que eles se não sintam afastados da Igreja, pois que podem e mesmo devem, como batizados, participar na sua vida”.

Assim procedi com algum escândalo de alguns e a alegria de bastantes.

Dez anos depois, outubro de 1997, escrevi pela primeira vez sobre este assunto uma homilia que terminava assim: «recordo a recente afirmação do bispo do Porto, em entrevista a um semanário da nossa praça:

“impedi-los [os católicos divorciados que voltaram a casar civilmente] de participar totalmente na parte sacramental cria situações difíceis para eles e para quem os acolhe. (…) O direito canónico é temporal. (…) Se o leigo conseguiu acertar a sua consciência com a do padre, o problema é deles. De resto, não há padre que não tenha encontrado casos como estes ao longo da sua vida…”».

Entretanto, nasciam e desenvolviam-se duas alas no interior da própria Igreja. Um título do tempo dizia tudo: “O último pecado imperdoável: católicos divorciados que voltaram a casar”. Apesar disso, com pronunciamentos que sim e pronunciamentos que não, a maior parte vindos do próprio magistério, a questão continuou a provocar abundantes polémicas teológico-morais e pastorais, quase sempre divergentes da vida real das comunidades. Como pode um celibatário decidir uma questão destas…, a culpa, o sofrimento e a dor, a hesitação, o medo da consciência, que vida esta!…

Sempre pensei que as comunidades, pela sua prática, ajudariam a Igreja no seu todo a encontrar uma atitude verdadeiramente cristã para com aqueles que, sem culpa, se viram confrontados no seu viver com uma situação difícil mas não “des-graçada”. À mesa da Eucaristia nunca pedi a ninguém o cartão de cidadão ou o bilhete de identidade a saber se era casado, divorciado, se vivia em união de facto ou era viúvo. Nestes casos, tudo na Igreja se resolve mais de baixo para cima que de cima para baixo. Entretanto, o Papa Francisco disse, na sua 1ª Exortação Apostólica, a Alegria do Evangelho, de 2013, que “a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”. Mas a  maior parte dos que encheram ruas e paredes das alegrias dos evangelhos – diziam eles — esqueceram-se de ler o documento TODO. E eu fiquei à espera que Francisco avançasse.

Finalmente, chegou a Boa Nova para os que a esperavam, 19 do mês passado, má notícia que desespera agora os que, com os seus poderes de mandarins, de corifeus ou de fariseus, queriam continuassem fechadas as portas da Igreja aos pobres e indefesos.

Tudo isto “nos forneceu um quadro e um clima que nos impede de desenvolver uma moral fria de escritório, quando nos ocupamos dos temas mais delicados, situando-nos, antes, no contexto de um discernimento pastoral cheio de amor misericordioso, que sempre se inclina para compreender, perdoar, acompanhar, esperar e, sobretudo, integrar” (Alegria do Amor).

Amor misericordioso. Estragou-se o substantivo misericórdia ou o adjetivo misericordioso — creio eu —, palavras espalhadas por aí, em bandeiras e cartazes pregadas às portas das igrejas ou dos supermercados.

“Nenhuma família é uma realidade perfeita e confecionada de uma vez para sempre; requer um progressivo amadurecimento da sua capacidade de amar. (…) Mas contemplar a plenitude que ainda não alcançámos … impede-nos de julgar com dureza aqueles que vivem em condições de grande fragilidade. Todos somos chamados a manter viva a tensão para algo mais além de nós mesmos e dos nossos limites, e cada família deve viver neste estímulo constante. Avancemos, famílias, continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida” (Alegria do Amor).

Ninguém julgue nem condene!, assim o diz o Evangelho (cf. Mt 7, 1; Lc 6, 37). O drama humano do meu irmão, seja ele qual for, é meu também (de mim pessoa, e de mim comunidade); em contacto com a vida concreta dos outros conheceremos a força da ternura. Tantos anos passados, encontrámo-nos na rua, ocasionalmente, só há beijos e abraços…

“Não fiqueis a olhar para o céu!…” (At 1,11), que é aqui que estas coisas acontecem… Não podemos ficar parados, de nariz levantado para as nuvens, a ver o que acontece ou se acontece. Há muita coisa a fazer acontecer, a começar por nós próprios. A dificuldade está aqui, está em nós. Mas isso necessita de ser precipitado, antecipado, começado por nós, pela nossa renovação pessoal e comunitária. “Uma alma que se eleva, eleva o Mundo”, disse Teresa de Lisieux. E Francisco de Assis acrescentou lá no fundo do séc. XIII: “Que eu leve a alegria onde há tristeza!”.

Arlindo de Magalhães, 8 de Maio de 2016

Uma libertação

Não há dúvida nenhuma que o 1º de maio é o dia de uma grande festa para o mundo do Trabalho e dos trabalhadores. Esta última palavra — trabalhadores — designava, nos finais do séc. XIX, a parte mais baixa da sociedade, a que se ficava pelos trabalhos “servis” > dos servos: era o proletariado. Era uma grande festa o 1º de maio, mesmo nos tempos da “outra-senhora”, em que a festa era proibida. Nesses tempos, dias antes da proibida festa, a polícia política encarregava-se de antecipadamente recolher no Aljube os cabeças dos movimentos operários, mas, caladamente, no coração dos pobres trabalhadores-trabalhadores, nesse dia reforçava-se a esperança de que um dia…

Como nasceu a festa? Com o objetivo de lutar pelas 8 horas de trabalho diário, no dia 1 de maio de 1886, milhares de trabalhadores de Chicago juntaram-se nas ruas para protestar contra as suas más condições de trabalho. À partida, a manifestação era pacífica, mas a Polícia tentou impedi-la, o que resultou em feridos e mortos. A este acontecimento chamar-se-ia depois o dia de “os Mártires de Chicago”, a recordar que muitas pessoas tinham sido feridas e mortas só por estarem a lutar pelos seus direitos. Quatro dias depois, houve uma nova manifestação e, mais uma vez, a polícia se virou contra os manifestantes, 5 dos quais foram condenadas à forca! Estas condenações só serviram para despertar a atenção de todo o mundo. Em 1888, dois anos depois destes acontecimentos, os presos foram libertados por um júri que reconheceu que os trabalhadores tinham razão e estavam inocentes.

É uma pena que um acontecimento destes, celebrativo e festivo, não possa ser celebrado num dia de Trabalho, o que não acontece sempre que, de vez em quando, cai ao domingo.

De facto, no “primeiro dia da semana”, “no dia a seguir ao sábado”, no “dia do Senhor” (dies dominicalis > domingalis > domingo), pelo menos os Cristãos e o Primeiro Mundo celebramos o dia em que houve Ressurreição. Não vou aqui e agora fazer a história do domingo. Mas vale a pena recordar que o domingo é de facto – deveria sê-lo, embora cada vez mais o seja menos – «uma libertação daquilo que prende o homem à terra … renunciando ao que de útil e lucrativo nele faria; é um transpor as barreiras do pequeno mundo dos interesses imediatos e muito terra a terra para se alargar ao grande mundo dos outros, com as exaltantes experiências do diálogo, da partilha e da convivência fraterna; é um ir à descoberta das maravilhas saídas das mãos de Deus ou das mãos dos homens feitos à sua semelhança para uma contemplação que se eleva até Ele; é um convite a entrar no santuário interior para aí ouvir a voz da consciência e os apelos divinos aos grandes ideais e projetos de vida» (Episcopado Português, 1978).

Não há dúvida de que o domingo perturba a festa dos Trabalhadores e a Festa dos Trabalhadores perturba o domingo. No entanto, eu já não sei quem diz o quê e a quem, pois que cada um desses dois dias (o primeiro da semana e o 1º de maio) é «uma libertação daquilo que prende o homem à terra, … renunciando ao que de útil e lucrativo nele faria; é um transpor as barreiras do pequeno mundo dos interesses imediatos e muito terra a terra para se alargar ao grande mundo dos outros, com as exaltantes experiências do diálogo, da partilha e da convivência fraterna». Isto é: o domingo perturba o dia dos trabalhadores e o dia dos trabalhadores, de alguma maneira, perturba o domingo.

Mas o pior é ainda que, nesse mesmo dia, no mesmo lugar, no mesmo centro da mesma cidade, há mais, começa o folclore: a Queima das Fitas. À mesma hora que a nossa começou a Missa do Bispo, com muita gente que nunca foi à missa, missa que é o começo da Queima que, não há muitos anos, terminava com a garraiada; esta já acabou, o bom senso retirou esse número do programa, mas não fez tudo o que devia ter feito, tirar também do programa o que lá não devia estar…

A Missa da Queima transformou-se num ritual académico de fim de curso, não religioso mas pretensioso, contraposto também ao ritual inicial do mesmo, as praxes académicas…

No fim disto tudo e por cima disso tudo, este ano, e continua o folclore!, temos a imagem de Fátima a passear pela cidade. “Dia tão esperado para a diocese” e “igrejas cheias”, dizem os jornais, de Baião a Ovar, de S. Gonçalo a Monte Córdova, no Porto viajará também de barco até à Afurada e só pára no Monte da Virgem, ainda bem, desta vez não se lembraram da Serra do Pilar …

Francamente mete-se-me na alma uma verdadeira confusão!!! Não percebo o que fazem a Santa Maria, a mãe de Jesus, mitificada e paganizada! De Santa Maria a Igreja precisa de fazer uma catequização profunda, pois que Santa Maria deixou de o ser — Santa Maria — e passou a ser “Nossa Senhora”, uma espécie de paralelo de divindade feminina — como existia praticamente em todas as religiões pagãs — ao lado de Nosso Senhor, uma deusa-mãe, deusa-filha, deusa-virgem, deusa protetora-maternal… O Concílio bem dela falou: “filha predileta do Pai e templo do Espírito Santo…, membro eminente e único da Igreja, seu tipo e exemplo perfeitíssimo na fé e na caridade” (LG 53). Mas ninguém ouviu “o que resolvemos nós e o Espírito Santo” (At 15,28), diriam os bispos conciliares se vivos fossem.

Na salsarrabulhada deste dia na nossa cidade, eu, que sou trabalhador reformado, protesto a sua programação, pois não me deixam viver nem saborear «uma libertação daquilo que prende o homem à terra … renunciando ao que de útil e lucrativo nele faria… e transpor as barreiras do pequeno mundo dos interesses imediatos e muito terra a terra, para me alargar ao grande mundo dos outros, com as exaltantes experiências do diálogo, da partilha e da convivência fraterna». Isto foi dito pelos nossos Bispos de 1978. Estamos a andar para trás. E muito!

Ainda por cima, hoje é também o Dia da Mãe! Não sabemos já para onde nos virarmos! Quem manda nisto?

Um dia ótimo para os “exibicionismos católicos”, diria o Pe Leonel se fosse vivo!

Arlindo de Magalhães, 1 de Maio de 2016

De Jerusalém para o Mundo

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Via Atos dos Apóstolos, de novo nos enfrentamos com o grande dilema da Igreja primitiva: ficar-se pelos judeus ou avançar para os territórios do paganismo? O caso de Paulo e Barnabé, lembrado hoje na 1ª leitura, não foi o primeiro: cristãos judaizantes dum lado, helenistas do outro. Nesta altura, já Estêvão tinha rompido com o Templo, o que lhe custou a vida (At 7), Filipe avançado para a Samaria, terra semipaganizada (At 8,4-13), etc. Hoje, Paulo e Barnabé estão em viagem missionária por terras pagãs, em Antioquia da Pisídia. Fiquemo-nos por aqui: no seu jeito, Lucas faz teologia narrativa.

Primeiro, os factos. Chegados à cidade, Paulo e Barnabé apresentam-se na Sinagoga, a pregar aos judeus, claro! Lucas descreve esta visita à maneira do que fizera com a de Jesus à Sinagoga de Nazaré (4,16-30). As coisas terão corrido bem pois que, uma semana passada, os mesmos Barnabé e Paulo voltam à Sinagoga, aonde “se reuniu quase toda a cidade para ouvir a Palavra do Senhor”. Só que…, desta vez os Judeus não ficaram lá muito satisfeitos com tão grande êxito: “encheram-se de inveja e responderam com blasfémias”. É então que os dois fazem uma declaração programática: “Era a vós [judeus] que devia ser em primeiro lugar anunciada a palavra de Deus. Uma vez, porém, que a rejeitais e não vos julgais dignos da vida eterna, voltamo-nos para os gentios, pois assim nos mandou o Senhor”.

Como se vê, a estratégia missionária de Paulo e Barnabé era a de, primeiramente, se dirigirem aos judeus. A decisão de se voltarem para os pagãos (gentios) viria depois. Isto é, caso tivesse havido uma aceitação significativa da parte dos judeus, Paulo não se teria decidido, a correr, a voltar-se para os pagãos. O que não quer dizer que, com a decisão de se dirigir aos pagãos, Paulo tivesse abandonado pura e simplesmente o cuidado prioritário dos judeus: de facto, logo a seguir (14,1), contando que os mesmos Paulo e Barnabé se dirigiram a outra cidade — Icónio, — a pregar, Lucas informa que eles se dirigiram “igualmente” (isto é, como de costume) à “sinagoga dos Judeus” (At 14,1). Paulo continuava a insistir na conversão dos seus compatriotas judeus. Mas como essa sua estratégia fracassa, Paulo e Barnabé não hesitam, avançam para os pagãos, o que já Estêvão e Filipe haviam feito antes deles. Isto sucedido, Lucas informa ainda: “os discípulos ficaram cheios de alegria e do Espírito” (13,52).

Para a contenda entre os que ficaram cheios de alegria com a estratégia primeira — os judeus — e a decisão posterior de Paulo e Barnabé de avançarem para os “pagãos”, pesaram, e muito, “algumas senhoras piedosas, as mais distintas da cidade, e os maiorais” (13,50) lá do sítio (as traduções, mesmo as oficiais, dão sempre uma voltinha ao texto para o tornar mais doce!), estes a incitarem os judeus à recusa da Boa Nova. É engraçada esta de ser a elite da cidade a dar gás aos judeus! Como sempre e hoje ainda, os do outro lado, os que “se encheram de alegria” foram os pobres!

Esta narrativa parece indicar a intenção de Lucas. É possível que ele não estivesse muito de acordo com a primeira estratégia de Paulo (ir ter com os Judeus) e que se tivesse alegrado com que os factos acabassem por empurrar Paulo e Barnabé para aquela que, a ele, Lucas, lhe terá parecido a melhor opção. A missão direta aos gentios, não subordinada à aceitação ou não aceitação dos judeus, representava para Lucas a vontade do Espírito Santo: para isso Paulo e Barnabé tinham sido escolhidos (At 13,2).

E há ainda indícios de que o próprio Barnabé pensava como Lucas e não como Paulo, como parece que os factos posteriores indicam: um pouco adiante, nos Atos (15,39), Lucas dirá de “uma discussão tão violenta entre os dois que se separaram um do outro”. E a questão foi ainda a de: se continuarem no quentinho (só entre os judeus) ou se avançarem mais, paganismo dentro. Mas isso já é outra parte desta mesma história… que fica para outra vez.

Esta questão daquele tempo é ainda de hoje: o terreno da Igreja é o Mundo, todo ele, ele e o seu Hoje: sem Tempo e sem Lugar, não há Igreja. Para ele, o Mundo, a Igreja tem de ser sinal ou sacramento de Cristo e do Reino de Deus que deve anunciar, inaugurar e celebrar. Não um Mundo adversário, mas um Mundo destinatário e interlocutor. Não gosto de ver a Igreja a falar ao Mundo só quando não está de acordo com ele. Mas há muito tempo que é assim. Foi assim com o iluminismo, com o Liberalismo, com a Modernidade, com a Questão Laboral, com a Democracia, com a República, com a separação da Igreja e do Estado, com o Cinema, está a ser assim com a pós modernidade, com a sociedade pós industrial, com a sociedade de consumo, com a globalização, com a camisinha, com as salas de chuto, com o aborto, com a eutanásia (a semana passada, o episcopado reunido em Fátima, a propósito da legalização da eutanásia), tal e qual, e tudo isto no mesmo saco. A Igreja [portuguesa] só sabe estar contra! Mas, afinal, estamos a favor de quê? Propomos e vivemos o quê? A Boa Nova de Jesus? O Reino de Deus de que nos dizemos sinal? Onde está a nossa esperança? Frei Bento, há 8 dias atrás, escrevia assim: “que a Igreja, na sua intervenção pastoral, abandone o inveterado mau gosto de lamentar e condenar”.

É fácil dizer que está tudo mal. Normalmente, quem o faz não está dentro, não se suja. Eu acho que muitas vezes é preciso estar contra, mas para estar contra é preciso saber fazê-lo; mas só saber estar contra é muito pouco.

«Em relação a estes acontecimentos, pode-se dizer que os Cristãos deste País, por um lado, não se interessam suficientemente e, por outro, andam demasiado preocupados como toda a gente. Interessados e desinteressados ao mesmo tempo, mas não ao modo como haviam de se interessar e de se desinteressar!… Quero dizer que aquilo que lhes mete medo não havia de lhes meter medo, e o que não os preocupa muito havia de os ocupar!… É que, em todos estes acontecimentos trágicos, dramáticos, porque carregados de perigos e de ameaças, de promessas e de esperanças, há o lado transitório, passageiro, provisório, e há também o outro Lado, a Dinâmica que já projeta o Presente, para o Futuro», dizia aqui mesmo o Pe Leonel em 1981.

Já nessa altura, o Concílio Vaticano II tinha sido muito claro: “o único fim da Igreja é o advento do reino de Deus e o estabelecimento da salvação de todo o género humano. E todo o bem que o povo de Deus pode prestar à família dos homens durante o tempo da sua peregrinação deriva do facto de que a Igreja é o sacramento universal de salvação, manifestando e atuando simultaneamente o mistério do amor de Deus pelos homens” (GS 45).

A este dizer podemos agora juntar Francisco, o Papa. “Que a Igreja anuncie o Evangelho a todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo” e que “vá ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos”, pois “que não se podem deixar as coisas como estão” (EG 23-25).

Mas nada disto se faz com umas procissões e uns misericordiosos painéis por aí espalhados: o ano passado, a lembrar tristemente a “alegria do Evangelho”; este ano, a misericordiosa misericórdia! Essas práticas são hoje “fósseis do Passado”!

Qualquer dia, Barnabé e Paulo… (vejam o que aconteceu, em At 15, 35-41).

Arlindo de Magalhães, 24 de Abril de 2016

O possível e o atual

Putzriss: Dieter Pregizer/Fotolia

Putzriss: Dieter Pregizer/Fotolia

Desde o princípio, a partir da Ressurreição, os discípulos de Jesus que só mais tarde começaram a ser chamados “os Cristãos” ou discípulos de Cristo (At 11,26), desde o princípio — dizia — os cristãos tiveram que organizar-se. O texto dos Atos hoje lido dá-nos disso notícia: “depois de terem estabelecido presbíteros em cada Igreja…”.

Primeiro, “em cada Igreja”. Já havia comunidades várias: em Jerusalém, na Samaria (8,5 ss), em Damasco (9,19), em Antioquia da Síria (11,19-25) e em Antioquia da Pisídia (13,14), em Icónio (13,51), em Listra (14,6), etc. Já havia comunidades > reuniões (eclesías) várias de discípulos de Jesus. E logo passariam à Grécia, a Roma, quando tal estavam na nossa terra…, no século II pela certa.

Tiveram de se organizar minimamente. Sabemos que tinham tudo em comum (At 2,44), que tinham mesa comum, o que gerou dificuldades (6,1) e urgiu a instituição dos diáconos, “homens de boa reputação e cheios do Espírito e de sabedoria” (6,3), e depois “estabeleceram presbíteros em cada Igreja…”. A palavra grega presbítero — sabemo-lo todos — refere um “homem de idade”, pessoa de experiência e sabedoria. No mundo antigo eram os idosos que assumiam os lugares de chefia. Por isso, à maneira do que se fazia na sociedade do tempo, “em cada igreja” colocou-se um presbítero, não um velhinho já demente, mas um homem cheio do Espírito [de Jesus] e de sabedoria. Não vamos agora falar da organização das comunidades cristãs primitivas, os epíscopos só chegariam muito mais tarde, século II, também copiados da organização social, etc, etc, etc.

Aproveito esta referência histórica da organização cristã primordial para me referir à organização da Comunidade que somos.

I.
Imediatamente a seguir ao tempo do Natal, disse aqui da necessidade de nos debruçarmos sobre o documento da Comunidade, as suas Bases, pois que isto é como na vida da gente: a roupa dos 4 anos não serve para os 40, não pode ser a mesma, a gente cresce e a roupa deixa de servir. Na vida das Comunidades e das Instituições é sempre necessário ajustar o Possível ao Atual, mas sem se desviar da originalidade.

Expliquei então como tinham nascido as Bases da Comunidade, em 1976, que tinham já sido revistas várias vezes e teologicamente enriquecidas, e que, ainda no âmbito dos 40 anos, pediam então alguma revisão.

Para tal se realizou em 23 de janeiro uma Assembleia em que se debateram alguns ajustamentos de ordem teológica e de teor orgânico. Nessa altura, pensou-se ser possível — debatidas as questões e revistos os textos — que o trabalho estivesse pronto antes da Páscoa. Assim não aconteceu. Porquê?

O documento em causa começou por chamar-se Bases do Conselho da Comunidade. Mas, quase sem ninguém dar conta, houve um volte-face: o documento definitório do Conselho passou a sê-lo da Comunidade. Esta volta foi importante: o documento deixou de ser pragmático para ser teológico. Ou seja: o documento que no seu princípio tratava das regras de funcionamento do Conselho da Comunidade deu lugar a um outro, definitório da identidade eclesiológica da Comunidade, parte diminuta de uma Igreja — a do Porto — ainda atada à antiga organização paroquial: “o apelo à revisão e renovação das paróquias, tornando-se mais próximas das pessoas, ainda não deu suficiente fruto”…, [e as] “pequenas comunidades são uma riqueza da Igreja”, disse o Papa Francisco.

Deste volte-face só nos demos conta depois da Assembleia de janeiro. E foi necessário introduzir no texto este volte-face, atendendo também a algumas outras sugestões interessantes então apresentadas.Temos agora, portanto, uma espécie de bilhete de identidade da Comunidade da Serra do Pilar, a que se junta um apêndice sobre a organização e funcionamento do seu Conselho.

Precisamos, porém, de nos reunirmos de novo para julgarmos o texto a que chegámos. Fá-lo-emos no dia 23 de abril (sábado, 15 horas). No dia de Pentecostes distribuir-se-á o documento.
A resumir tudo o que disse, permitam-me leia um pequeno texto do Pe Leonel, dito como só ele sabia, aqui mesmo, em 1982:

«Sobre a Serra do Pilar não nos arvoramos em juízes da Igreja que está em Portugal. Deus nos livre da tentação. Somos da Igreja que está em Portugal, e seríamos juízes de nós próprios com toda a morbidez que acarreta uma atitude dessas, com todo o narcisismo… Deus nos livre dessa Tentação! Mas quem pode estar em Portugal e na Igreja que está em Portugal sem sofrer do “mal” de que sofre esta Igreja? Podem-nos dizer, e nós acreditamos nisso, que nos devemos converter e santificar!… Mas como é possível converter-nos e santificar-nos a nível pessoal e local, sem que a nossa Revisão de Vida acarrete uma conversão geral, universal, comunitária e eclesial? Impossível pensar em nós sem pensarmos na Igreja que está em Portugal. É tão impossível isso como é impossível pensar na Igreja que está em Portugal sem pensarmos em nós!…».

II.
Teremos connosco na Vigília de Pentecostes o nosso amigo e conhecido Abdul Mangá, crente muçulmano e responsável do Centro Islâmico do Porto. No tempo difícil que a Europa vive, cristãos e muçulmanos oramos juntos ao mesmo Deus: “Só Deus é Deus e não há nenhum outro além dEle, o Vivo, o Subsistente. Dele não se apossam nem o torpor nem o sono; a Ele pertence tudo o que está no Céu e na Terra. Quem pode interceder junto dEle sem a sua permissão? Ele sabe o que está antes e o que está depois dos homens e ninguém alcança a sua ciência sem que Ele o consinta; o seu trono estende-se pelo Céu e pela Terra e a sua custódia não lhe causa qualquer dificuldade. Ele é o Excelso, o Magnífico” (Alcorão 2,256).

III.
Estamos a tratar do passeio anual (sempre fiéis à sua originalidade entre nós: visita quanto possível a lugares da História Religiosa de Portugal, mas de modo que todos possam ir, os que têm carro e os que não têm, e os que têm dinheiro e os que não têm). Decidimos ir a Guimarães (ao lado, a S. Torcato e a Arões), o bilhete de comboio custa 3,10€ (1,55€ para maiores de 65 anos), tudo o mais se organizará a tempo conforme for sendo dito. Temos este ano um fim-de-semana alargado, é aí que iremos a Guimarães, 10-12 de junho.

“Que tudo quanto há de bom no coração e no espírito do homem ou nos ritos e cultura próprios de cada povo não só não pereça, antes seja elevado e aperfeiçoado para glória de Deus e felicidade do homem” – assim dizia o Vaticano II (LG 17) e assim o faremos na viagem de Guimarães.

Arlindo de Magalhães, 17 de Abril de 2016

Comensalidade

Mosaico da ‘Igreja da Multiplicação’, Tabgha-Israel

Mosaico da ‘Igreja da Multiplicação’, Tabgha-Israel

Lévi-Strauss (1908-2009), um conhecido antropólogo belga do nosso tempo, sem papas na língua, deixou dito que “o comer é a alma de toda a cultura”: “Em todas as culturas, simples ou complexas, comer é a primeira maneira de iniciar e manter relações humanas… Saber quem, onde, como, quando e com quem alguém come é conhecê-lo”. É que, ao comer, o homem estabelece uma relação primária com a Natureza, mas também consigo mesmo e com os seus semelhantes. Outro antropólogo, La Verdière (1902-1991), remata a questão assim: um almocinho “não é tanto uma questão de alimentos quanto de pessoas”! Podem ir a Barcelos comprar uma Ceia de Mistério, como a que vocês me deram em 1980, ou ver A Ceia de Leonardo Da Vinci, em Milão, que tanto basta para perceber o já dito!

Por isso, nas nossas casas, a Mesa é sempre o centro. Já o era, e há muito tempo, no tempo de Jesus. Já Abraão tinha dito aos três homens que lhe passavam diante da tenda…: “Vou buscar pão e, restauradas as forças, prosseguireis depois o caminho…!” (Gn 18,5), e Isaías que “no monte Sião e para todos os povos, o Senhor do Universo preparará um banquete de boas carnes boas e vinhos finos” (25,6). E já Platão, o grande filósofo da Grécia antiga, séc. IV antes de Cristo, tinha escrito O Banquete durante o qual os convidados discutiam O que é o Amor? Era já assim ao tempo de Jesus; não esqueçam — repito — que “o comer é a alma de toda a cultura”.

Jesus comia, muitas vezes e com gente muito variada. Tantas que rapidamente o acusaram de “Comilão e bebedor de vinho” (Mt 11,19 e Lc 7,31). Jesus comia e bebia com os seus contemporâneos. Ia a casa dos ricos: foi à de Levi (Lc 5,27-39), à de três fariseus (Lc 7,36-50; 11,31-54 e 14,1-35), mesmo à de Zaqueu (Lc 19,1-10)… Mas comia também e sobretudo com os mais pobres. De uma só vez 5.000, fora mulheres e crianças! Mas também com os pecadores e com gente de má nota: “Porque come o vosso mestre com os publicanos e os pecadores?” (Mt 9,11).

A desigualdade histórica dos homens traduziu-se sempre na existência de pobres e de ricos, de sãos e de doentes, de senhores e de escravos, de cultos e de manuais. E por isso Jesus introduziu na sua prática a comensalidade com todos, para que os “pés debaixo da mesa” pudessem fundamentar uma solidariedade fraterna que não esquecia os que “andam por caminhos e atalhos” (Lc 14,23), expressão que hoje se pode traduzir-se por “os sem abrigo”.

Pode assim imaginar-se a força verdadeiramente revolucionária e contracultural da comunidade cristã primitiva. Tentativas de conseguir o  reino que Jesus queria: um reino que pudesse realizar a refeição fraterna e abundante dos irmãos reconciliados. E por isso, ao sair de uma comida em casa de um “fariseu notável” aonde tinha entrado “para uma refeição” (Lc 14,1), Jesus disse assim: “Feliz aquele que se sentar à mesa do Reino de Deus” (v. 15). É outra maneira de dizer “Bem aventurados os pobres porque deles é o reino dos céus”. Só haverá Reino dos Céus quando os pobres se saciarem sentados à mesa do banquete. Só então se cumprirá a palavra: “os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Nova” (Luc 7,22).

O seu tempo acusou-o de comedor e bebedor de vinho (Lc 7,34, etc) pois que as comidas de Jesus eram sinais de perdão e integração gratuitos, sem nada de legalismos, nem purezas ou de discriminações. O Novo Testamento fala-nos delas, e também da prática das primeiras comunidades que praticavam deste modo a fraternidade e assim antecipavam o Reino dos Céus. Ouçamos São João Crisóstomo, o João “Boca de Ouro”:

“No velho mundo, o rico prepara uma mesa esplêndida e goza abundantemente dos seus deleites, enquanto que a pobreza impede o pobre de desfrutar luxos semelhantes. Entre nós, pelo contrário, quando celebramos a Eucaristia, as coisas são muito diferentes: há uma mesma mesa para o rico e para o pobre. Tanto o imperador como o mendigo que pede esmola têm posta a mesma mesa. Quando vires no interior da igreja, o pobre juntamente com o rico, o plebeu com o magnate, o que lá fora treme diante do príncipe sentado cá dentro, sem nenhum temor, ao lado dele, repara que começa a cumprir-se aquele profecia que diz: Então (quando chegar o Reino de Deus) apascentarão juntos o lobo e o cordeiro” (Is 11,6).

No relato evangélico de hoje, houve uma “comida” mas não havia casa nem mesa. Mas estendia-se já uma situação complicada. O Senhor tinha morrido, o túmulo tinha estado ou estava ainda vazio, dizem — algumas, sobretudo, mas também alguns — que tinha ressuscitado… Os discípulos não estavam todos, é verdade, apenas sete, mas muito desanimados: Simão Pedro, Tomé, Natanael, os dois filhos de Zebedeu e mais dois discípulos. Entre eles, Pedro, saliente-se! Tão desanimados que voltaram à pesca, retornando portanto ao passado. E depois… “Lançaram as redes…, grande quantidade de peixes….” e João arrisca: é “o Senhor”! Logo de seguida, “quando saltaram em terra, viram brasas acesas com peixe em cima, e pão. Vinde comer!” (Jo 21, 9.13).

E o que se havia quebrado com a morte e mesmo a ressurreição — que ainda não era certeza, podia lá ser?! — de imediato se restabeleceu, nomeadamente com Pedro. Por isso, “nenhum dos discípulos se atreveu a perguntar-lhe Quem és tu? Bem sabiam que era o Senhor!”. E ele “tomou o pão e deu-lho, fazendo o mesmo com os peixes!”. Onde é que eu já ouvi isto! Pronto!, não explico mais. Os mais velhos lembram-se do peixe assado? Foi assim! Exatamente assim!

Arlindo de Magalhães, 10 de Abril de 2016

A questão importante

Georg Baselitz, ‘Kreuz mit Herbstastern’, 1963

Georg Baselitz, ‘Kreuz mit Herbstastern’, 1963

Em Jerusalém, era ainda o tempo de beijos e abraços. Era ainda o princípio. Os Apóstolos realizavam sinais e prodígios entre o povo, era um bodo aos pobres!, o povo falava deles com apreço, cada vez aderia mais gente, traziam os doentes para as ruas e colocavam-nos em enxergas e catres, para que, à passagem de Pedro, a sua sombra cobrisse ao menos alguns deles, e das cidades vizinhas de Jerusalém acorria a multidão. Uma maravilha! Um mar de rosas.

Mas, logo a seguir, os Apóstolos foram presos (At 5,17). Claro que foram o mauzão do Sumo-sacerdote e seus sequazes os autores da brincadeira. O único que teve lucidez foi o fariseu Gamaliel, o que haveria de ser professor de Paulo em Jerusalém (At 22,3), que disse assim: “Homens de Israel, tende cuidado com o que ides fazer! … Não vos metais com eles! Deixai-os em paz! Se a sua iniciativa vem dos homens, cairá por si; mas, se vem de Deus, não tendes nada a fazer!” (At 5,35-39).

E assim aconteceu. Meteram-se mesmo com eles, mataram Estêvão (7,54-60), fariam o mesmo a Tiago (12,2); entretanto, Paulo, apesar de discípulo do liberal Gamaliel, desdobrar-se-ia em “ameaças de morte contra os discípulos do Senhor” (9,1). Estes foram os mais importantes ataques vindos de fora. Mas, de dentro, de dentro é que é o diabo: as coisas seguiriam por caminhos que os inícios não faziam prever. Dentro da comunidade, pouco a pouco, começaram a surgir diferendos, fundamentalmente entre a ala judaica da comunidade de Jerusalém, atada à Lei de Moisés, e a grega, lesta a perceber que “foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). Por isso mesmo, não se entende que quem quer que seja pretenda agora justificar-se com a Lei (Gl 5,4). Esta é que era a questão.

O próprio Paulo, que começara por ser defensor da Lei, e por isso corria de espada na mão em sua defesa, acabaria por ser o maior defensor da Liberdade face à Lei antiga: “Vós não estais sob a Lei” (Rm 6,14), pois que ”a força do pecado é a Lei” (1Cor 15,56) e “não a fé” (Gl 3,12), ou melhor, “a Lei resume-se numa palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo” (Gl 5,14).

Embora fosse esta a questão, o Livro dos Atos começa por informar-nos que o início dos desentendimentos internos estava noutra razão: que as viúvas dos hebreus, isto é, dos judeus, não eram bem servidas à mesa (At 6,1)! Mas isso não era nada: a questão era que os cristãos-judeus da comunidade de Jerusalém começaram a desentender-se com os cristãos-gregos por causa de uma questão bem mais complicada e profunda, que era a de saber se os cristãos tinham ou não de cumprir a Lei de Moisés.

E, perante esta questão, a Comunidade, ou seja, uma parte dela, a judaica, não percebeu nada do que começava a passar-se. Por isso pensava e agia agarrada a um passado que já não era presente: a Lei é que era importante. Enquanto isto, a outra parte, essa sim, percebeu logo que estava em causa uma questão bem mais complicada. E por isso é que Estêvão foi assassinado, e que a Tiago lhe tiraram também a tosse, e que algumas figuras importantes do cristianismo nascente saíram de Jerusalém – Filipe, Pedro, Barnabé e o próprio Saulo – e acabaram, mesmo  longe de Jerusalém, por ter graves problemas com essa mesma ala judaica (lembram-se de Paulo perseguido por eles, de Filipos até Tessalónica e, depois, em Corinto e em Éfeso?).

O Senhor bem os tinha prevenido: “Não sois capazes de interpretar os sinais dos tempos!” (Mt 16,3). É sempre muito mais fácil pretender que a razão do que se está a passar tem a ver com uma questãozeca qualquer: que eram mal servidas à mesa! Valha-me Nossa Senhora! Pensar assim é não ser capaz de perceber o que se está a passar! A história, da Igreja e dos homens, está cheia destas coisas: a malta distraída! Nunca me sairá da cabeça que, durante a manhã daquele 25 de abril, a Assembleia Nacional discutia em S. Bento o cultivo da vinha!

Digo isto ao começar do Tempo Pascal, no primeiro domingo a seguir ao Tríduo, porque – repetindo, digamos, o que disse na Vigília Pascal – temos em mãos uma questão importante nossa. Questão importante que tem a ver com o nosso próprio futuro. Que não aconteça entre nós o que sucedeu em Jerusalém: a questão a aumentar a tensão de dia para dia e as mulheres a dizerem que estavam a ser mal servidas à mesa!

Arlindo de Magalhães, 3 de Abril de 2016

Pode o Espírito de Deus faltar à Igreja?

Emil Nolde, 'Jesus Christ and the sinner' (1926)

Emil Nolde, ‘Jesus Christ and the sinner’ (1926)

Nos fins de Janeiro estive em Espanha: volto todos os anos à minha Universidade. Já no regresso, parei em Salamanca, peguei no jornal, e vi pela primeira vez uma coisa assim: O novo bispo de Astorga, uma cidade a norte de Salamanca, um mês depois de ter sido nomeado para a diocese, “mostrou-se preocupado com haver na diocese apenas 140 presbíteros para atender às 970 paróquias da diocese; e nos Seminários diocesanos, apenas 13 rapazes no Menor e 7 no Maior”! Foi a primeira vez que soube de um bispo preocupado com esta questão, embora seja um problema que é de todas as igrejas cristãs do Primeiro Mundo.

Num estudo feito há 7 anos na diocese do Porto, os números eram estes: havia 413 presbíteros (mas 60 e tal por cento tinham já, na altura, – 15 – mais de 60 anos!). Destes 413, só 273 eram diocesanos; os restantes 140 eram religiosos, digamos — nem todos entenderão —, presbíteros emprestados! Nestes 7 anos, os que morreram contam-se muitos mais que os que entretanto foram ordenados.

Diante deste quadro, muitas facetas seria necessário ponderar. Não é questão para aqui. Quero no entanto salientar que, nos próximos anos em que morrerão muitos mais que os que se ordenarão, baixará muito mais o número de presbíteros na diocese e…, duas coisas:

1. dentro de pouco tempo, haverá muito mais paróquias, são 477 no total, sem pároco (neste momento já há um pároco com 9 paróquias!)

2. e dentro de pouco tempo, haverá muitas comunidades, paroquiais ou não, sem Eucaristia dominical, que, disse o Vaticano II, é o centro e o cume, o ponto de chegada e o ponto de partida da vida Igreja. “Não podemos viver sem o Domingo” – diziam os célebres Mártires do Domingo, do séc. III, isto é, não podemos viver sem a Eucaristia dominical, sem a Páscoa semanal.

E a Comunidade da Serra do Pilar, como vai ser? Eu viverei pouco mais, Deus o sabe!, e dentro em pouco começarei — é que já comecei! — a perder capacidades. Não é que eu faça falta: o que fará falta será um presbítero que não haverá. Fecha-se a porta e morre a Comunidade com o presbítero? Eu creio que não. Mas vai ser preciso fazer por isso!

Nosso Senhor Jesus Cristo disse uma vez que “sempre que dois ou três se reunirem em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). Que queria ele dizer com isto? Se tivesse de dizer-nos hoje a mesma coisa que disse então dirigindo-se à Comunidade da Serra do Pilar, como se expressaria?

Depois de um tempo em que os presbíteros eram tudo e havia muitos, começámos a perceber que eles são cada vez menos. Porquê? Eu ouso perguntar: uma Igreja que não faz cristãos pode suscitar vocações presbiterais? Pode a Igreja do meu tempo insistir unicamente em soluções passadas, de um tempo também passado?

Que quererão dizer as expressões escassez de sacerdotes (c. 517 §2) e penúria de vocações presbiterais? Estará o Espírito de Deus a faltar-nos com vocações – bem lhas temos pedido, embora ele nos não ouça! – ou estará antes a querer dizer coisas às Igrejas?, por exemplo, que é necessário tirar da menoridade a grande massa dos batizados, que urge renovar o tecido eclesial de cabo a rabo, reconhecendo e dando corpo à igual dignidade e capacidade de atuação de todos em quanto à edificação do corpo de Cristo diz respeito, ainda que, por sua vontade, alguns sejam constituídos doutores (esta palavra bíblica quer dizer formador da fé), dispensadores dos mistérios e pastores em favor dos demais (LG 32, 3)? Meteu-se-nos na cabeça que, sem muitos presbíteros, não há Igreja. Mas não são os presbíteros que a fazem. A Lumen Gentium já dizia que “[os leigos] têm a capacidade de serem chamados pela Hierarquia a exercerem certos cargos eclesiásticos” (33.4). E nós já o sabemos. Experimentámo-lo.

Pode o Espírito de Deus faltar à Igreja com o que ela necessita? “Qual o pai que, se o filho lhe pede pão, lhe vai dar uma pedra? Ou, se lhe pede um peixe, lhe vai dar uma serpente? Ou ainda, se lhe pedir um ovo, lhe vai dar um escorpião? Se vós sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do céu dará o Espírito àqueles que lho pedem!” (Lc 11,11-13).

Eu penso que, no momento que corre, fazem mais falta à Igreja batizados adultos na fé que muitos presbíteros. Se quiserem, digo isto doutra maneira: é mais necessário deixar, permitir ou ajudar a que, na Igreja, os leigos sejam leigos que desejar ou pedir para ela muitos presbíteros. Há muito que penso, e mais uma vez aqui o digo agora, que só quando os leigos assumirem todas as dimensões da sua vocação cristã, os presbíteros encontrarão o seu devido lugar na Igreja. Comecemos então pelo princípio!

Diante desta crise que vivemos, estamos, em minha opinião, a recorrer indevidamente a verdadeiras soluções de desespero: a paroquialização das Ordens religiosas (veja-se o que tem acontecido aqui ao lado, em Canelas) e a hipoteca dos carismas da vida religiosa. Não é preciso andar muito para ver, na diocese, párocos beneditinos, franciscanos, dominicanos, capuchinhos, carmelitas, combonianos, claretianos, espiritanos, maristas, redentoristas, vicentinos, dehonianos, jesuitas, salesianos, e um etc. muito grande…

“É tempo de pastoralmente mudar”, disse o Bispo Ferreira Gomes, em 1973: nem ele sabia o que dizia nem ninguém o levou a sério, que, sem querer, ele estava a dizer uma coisa que ainda não começou a acontecer.

Arlindo de Magalhães, 26 de Março de 2016

A oito dias da Páscoa

Valérie Colombel, 'Résurrection'

Valérie Colombel, ‘Résurrection’

Portanto, Pai, “faça-se a tua vontade” (Mt 26,42). Não há dúvida nenhuma de que Jesus morreu violentamente. Assim o afirma quer a pregação primitiva («esses judeus que mataram Jesus e os profetas», 1 Tes 2,15) quer uma outra mais teológica («tendo sido entregue, segundo determinado desígnio e prévio conhecimento de Deus, vós o matastes cravando-o na cruz com mãos ímpias», At 2,23).

Então…, Deus quis — “segundo determinado desígnio e prévio conhecimento de Deus” — que matassem seu filho Jesus? Mas não tinha já dito Isaías: “Estou farto de holocaustos…, de ofertas de inúteis…, abomino as vossas celebrações…” (1,11.13.14)? Como vem agora esse Santo Anselmo, bispo de Cantuária, na dobra dos sécs. XI/XII, dizer que o pecado do homem havia ofendido a dignidade de Deus, e não podia ser perdoado sem que o mesmo Deus fosse desagravado pelo mesmo homem?

Nesta teologia, profundamente marcada pela mentalidade ético-jurídica romana, Jesus veio para (a)pagar o nosso pecado. O direito era tão importante para os romanos como hoje o lucro para os economistas. Nessa perspetiva, dizia-se que tinha de haver uma satisfação a dar a Deus; há para aí até muitas traduções da Bíblia que falam do «preço da nossa redenção» (veja-se 1Tm 2,6). A boca sempre a falar da abundância do coração!

Voltamos à mentalidade ético-jurídica romana: o pecado é uma ofensa infinita feita a Deus; e um Deus ofendido infinitamente só pode ser desagravado por uma reparação infinita. Ponto final. Como o homem não podia, de seu, dar a Deus fosse o que fosse, como desagravo, Jesus resolveu (ou foi obrigado a) oferecer-se a si mesmo. O mérito do seu sacrifício era infinito e eterno, ele não precisava dele para nada, entregou-o ao Pai: ele era homem! Isto feito, o Pai perdoou à humanidade. Daí aquelas frases piedosas: que Jesus morreu pelos nossos pecados, que os nossos pecados o mataram… Com a sua morte na cruz, Jesus, o Homem perfeito, Deus e Homem, restabeleceu a ordem primitiva desfeita pelo pecado, morte que satisfez a Deus (satisfação), expiou o pecado (reparação) e redimiu o homem (redenção).

Mas isto é muito pouco e muito curto. Que Deus se tenha feito homem para dar satisfação a si mesmo, a Deus? Não tinha dito já Isaías que Deus não quer sacrifícios, e muito menos sacrifícios humanos (Abraão)? A vida e a morte de Jesus têm de ver-se a outra luz ou doutra perspetiva. É absurdo pensar que nos reconciliámos com Deus com um assassinato, para mais do seu filho! Já Nietzsche (1844-1900) parodiava: «Nem arranjaram maneira melhor de amar o seu Deus que cravar um homem na cruz. … Melhores cânticos tinham de me cantar para que eu acreditasse no seu redentor e mais redimidos teriam que me parecer os seus discípulos».

Desagravar a Deus – problema que tanto preocupou Santo Anselmo, como depois Lutero – é um falso problema. Muito antes dele, séc. II, santo Ireneu (?-c. 202) explicou doutra maneira: para desapertar um nó, a solução é passar o fio ao contrário. Quer dizer: se o pecado é uma falta de amor, a redenção é o contrário da falta de amor, é amor. E por isso é que, na mensagem de Jesus, Amor é uma palavra chave: é dele que se faz o Reino de Deus. Do reino dos homens, S. Mateus disse que «não ficará pedra sobre pedra» (24,2), e S. Paulo não se inibiu de afirmar que até a fé e a esperança desaparecerão; ficará apenas o amor (1 Cor 13,8).

«Amai-vos como eu vos amei» – este é o Mandamento Novo que resume toda a Lei. Jesus não buscou intencionalmente a cruz; a cruz foi para Jesus a consequência da sua vida. Por si mesma, ela não tem sentido nenhum: mas como manifestação desse «amor máximo» que é «dar a vida pelos seus amigos» (Jo 15,13), está bem, tem todo o sentido do mundo. «Sofrendo a morte por todos nós, pecadores, ensinou-nos com o seu exemplo a levar a cruz que a carne e o mundo carregam sobre os ombros dos que buscam a paz e a justiça» – diz o Vaticano II (GS 38).

Esta mudança de perspetiva tem consequências concretas para a vida da gente. Atribuir, sem mais, valor redentor ao sofrimento é a mesma coisa que dizer que sofrer por sofrer tem valor em si. É não perceber que o valor está no amor dos outros e de Deus. É não perceber que Jesus centrou toda a sua vida não no sofrimento mas no amor e na sua consequência que é a construção de um mundo novo – dizemo-lo o Reino -; é não perceber que a construção da paz e da justiça é coisa que tem custo. E pela paz e pela justiça se morre. Quantos não deram já a vida pela Paz e pela Justiça?!

Como viveu Jesus? Não é verdade que viveu numa íntima e constante relação com o mistério de Deus (a quem chamava Pai), traduzida em fidelidade ao serviço do Reino? Não é verdade que nos mostrou o rosto do Deus verdadeiro? Não é verdade que, ressuscitado por Deus e através do seu Espírito derramado em nossos corações, nos abriu a perspetiva de uma Humanidade nova, de uma maneira nova de sermos homens? Não é verdade que nos abriu a essa realidade de sermos filhos de Deus? E não é verdade que foi ele que abriu as portas aos que até aí nem nome de homem tinham, fossem prostitutas, cegos ou ladrões, publicanos, adúlteros ou samaritanos? Foi ou não foi um homem livre que desafiou o Templo, a Lei e o Sábado? Foi ou não o separador das águas entre religião e política (Deus e César)? Etc., etc., etc. Porque é que ele morreu? Procurou a Cruz para desagravar a Deus ou foi pregado nela pelas que fez e disse, por amor de Deus e dos homens?

Onde está verdadeiramente a questão: na cruz ou no amor? Sem amor, a cruz foi sempre um sinal de condenação e suplício, «escândalo para os judeus e loucura para os gregos» (1 Cor 1,23); com o amor, tornou-se «árvore de salvação», «força divina para nós» (1 Cor 1,18).

«Ele manifestou-se uma só vez, na plenitude dos tempos, para destruir o pecado pelo sacrifício de si mesmo» – diz a Carta aos Hebreus (9,26). À luz do que acabo de (tentar) explicar, é verdadeira a expressão (carregada embora daquele peso sacrificial do templo de Jerusalém que percorre todo o escrito). Mas nós temos hoje que separar a verdade do que se diz da roupagem cultural da expressão utilizada. Cristo morreu pelo que amou e não para aplacar a ira de seu Pai. Acreditamos em Jesus Cristo morto e ressuscitado, que «por nós homens e para nossa salvação desceu dos céus», e não num deus sanguinário que só com sangue se saciasse.

As grandes celebrações da Páscoa estão à distância de oito dias. Permitam-me todos que reafirme a importância da celebração destes dias e a necessidade de orientarmos a vida de modo a ser possível a sua celebração, bem como que recorde aquela velha regra que faz parte da nossa melhor tradição: «na Páscoa estaremos tão todos que ninguém tem direito de não estar», com exceção daqueles a quem a sua liberdade solicitar de outra maneira.

Arlindo de Magalhães, 12 de Março de 2016

Um Testamento

“The Washing of the Feet” by Corinne Vonaesch (Swiss, b. 1970)

“The Washing of the Feet” by Corinne Vonaesch (Swiss, b. 1970)

Numa teologia profundamente marcada pela mentalidade jurídica romana, Jesus tinha vindo à terra para pagar a Deus, seu Pai, os danos do pecado original do homem. Os deuses antigos gostavam de sangue e, por isso, mesmo depois de Abraão, Jesus era o “preço da nossa redenção” (1Tm 2,6). Por isso seria condenado à morte.

Sabemos hoje — digamos assim — que esse deus ávido de sangue não é o nosso Deus, tal como já não era o de Israel. Nem Deus é uma espécie de imperador romano que matava aqui e ali, a castigar e a vingar, nem Jesus buscou intencionalmente a cruz: a sua morte foi uma consequência da sua vida. Por si mesma, a cruz não tem sentido nenhum: «O Verbo de Deus, fazendo-se homem e vivendo na terra dos homens, entrou como homem perfeito na história do mundo, assumindo-a e recapitulando-a. Ele revela-nos que “Deus é amor” (1 Jo 4,8) e ensina-nos que a lei fundamental da perfeição humana, e portanto da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor» – diz o Vaticano II (GS 38).

É preciso perceber isto de uma vez por todas: toda a questão está no amor dos outros e no amor de Deus (Mt 22,37-39). Jesus centrou toda a sua vida no amor que leva à construção de um mundo novo – dizemo-lo o Reino -; a consequência foi o que ele sofreu pela paz e pela justiça. É sempre pela paz e pela justiça ou pela sua negação que se morre violentamente. Desde muito antes dos nossos mártires que é assim.

Como viveu Jesus? Não é verdade que foi numa íntima e constante relação com o mistério de Deus (a quem chamava Pai), traduzida em fidelidade ao serviço do Reino? Não é verdade que nos mostrou o rosto do Deus verdadeiro? Não é verdade que deitou a mão a quantos andavam à procura de Deus, samaritanas e nicodemos, centuriões e cegos, madalenas e cobradores de impostos, anunciando a todos a realidade de serem filhos de Deus? Não é verdade que foi ele que abriu as portas aos que até aí nem de um nome de homens eram dignos, fossem prostitutas, cegos ou ladrões, publicanos, adúlteros ou samaritanos, de muitos com quem comia ou com quem andava? Foi ou não foi um homem livre que desafiou o Templo, a Lei e o Sábado? Foi ou não o separador das águas entre religião e política (Deus e César)? Etc., etc., etc. Porque é que ele morreu? E não é verdade que, ressuscitado por Deus, nos abriu a perspetiva de uma Humanidade nova, de uma maneira nova de sermos homens?

Para Deus, onde está a questão: na cruz ou no amor de Jesus? Sem amor, a cruz não passaria nunca de ser um sinal de condenação e suplício, “escândalo para os judeus e loucura para os gregos” (1 Cor 1,23); mas com o amor de Jesus, tornou-se “árvore de salvação”, “força divina para nós” (1 Cor 1,18).

Não estranhemos, portanto, que, na iminência da sua morte — e Jesus não era tolo, bem sabia a que ponto tudo chegara —, Jesus tenha deixado o seu testamento. Foi assim: Sentou-se com eles à mesa. Era uma mesa e uma refeição festiva: a memória da libertação de Israel. Mas, antes disso… Toca a lavar os pés.

Sabemos bem o que isto representava no mundo antigo, social e religiosamente. Lavar os pés a alguém era sinal ou de abaixamento ou de muita intimidade. Jesus lavou os pés aos discípulos, não sem a relutância de Pedro e certamente que com espanto de todos os mais. Não era ele o Mestre!? “Também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Para que, como eu vos fiz, vós façais também”. Evangelho de São João (13,14-15). E, logo de seguida, tudo ligado: “Dou-vos um mandamento novo, que vos ameis uns aos outros…” (Jo 13,34). Isto, dizia, em São João.

Nos evangelhos sinóticos não é assim. Em vez do lava-pés e da entrega do mandamento novo no Evangelho de João, aqui, nos três Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, Jesus pega no pão e no vinho, e sabemos o que fez e disse, acrescentando: “Fazei isto em memória de mim”.

Assim a Eucaristia que celebramos, memória da morte e ressurreição, é também sinal do amor fraterno. Mais: sacramento da comunhão fraterna, sinal da eclesía, Igreja que é Corpo de Cristo. Por que é para nós tão importante a Eucaristia? E tão importante o lava-pés? Não é porque tanto o lava-pés como a Eucaristia são expressão diferente – ritual, simbólica, litúrgica e sacramentalmente – do mesmo mandamento novo: “que vos ameis uns aos outros…”?

Arlindo de Magalhães, 6 de Março de 2016

O Pão e os Peixes

A multiplicação dos pães, Macha Chmakoff

A multiplicação dos pães, Macha Chmakoff

Conhecemos toda a carga simbólica que o “pão e vinho” carregam na cultura e na alimentação do Mediterrâneo ocidental: “um naco de broa e um copo de vinho” não se negava nunca a um amigo. No Oriente mediterrânico, porém, já não era assim: lá, era pão e cordeiro que também se chama anho (este cordeiro do rebanho passou depois a “Cordeiro de Deus que tira o pecado do Mundo!”) ou pão e peixe. Nada de estranhar também pois que Jesus tinha já à sua volta antigos pescadores de peixes, então já pescadores de homens (Lc 5,10), que certamente lha falavam dessa arte de pescar.

Ora, uma vez “o dia começava a declinar”, não havia que dar de comer à multidão, mas os antigos pescadores de peixes disseram a Jesus que tinham ali cinco pães e dois peixes — não cordeiro — e Jesus, “tomando então os cinco pães e os dois peixes, ergueu os olhos ao céu, abençoou-os, partiu-os e deu-os aos discípulos, para que os distribuíssem à multidão”. A gente conhece bem esta linguagem, esta exatíssima maneira de falar. Não esqueçamos, no entanto, que Lucas não escreveu uma reportagem do que aconteceu; falava era de algo que aconteceu mas utilizando linguagem da liturgia eucarística primitiva. Vejamos um dos textos mais antigos do Novo Testamento: “Eu recebi do Senhor o que vos transmiti. Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: “Isto é o meu Corpo que é entregue por vós! Fazei isto em memória de mim!”.

Neste texto que acabo de ler (1 Cor 11,23-24) – repito: um dos mais antigos do Novo Testamento – Paulo refere é a prática litúrgica das comunidades primitivas. Lucas conhecia-as bem e frequentava-as. E, por isso, para relatar um episódio e ensinamentos de Jesus, serviu-se de fórmulas que eram de tempos posteriores e sacados da vida e da própria maneira de celebrar das comunidades. Sendo assim, Lucas está a falar de quê? De algo que aconteceu no tempo de Jesus e que ele nos transmitiu em linguagem figurada?

Conta Lucas que a multidão era considerável: “cerca de 5.000 homens”! Deixamos de lado saber se foram contados só os homens-masculinos (os andrés, em grego) ou se todos os humanos (os ántropoi, também em grego), os homens masculinos e os femininos. E não podemos deixar de reparar que Lucas informa que Jesus os mandou sentar por “grupos de cinquenta” (9,14), metodologia certamente avançada para o seu tempo e que Jesus nunca teria experimentado. Os especialistas comentam hoje que, mais do que uma comida para 5.000 pessoas, haveria era umas 100 pessoas ou famílias que estavam na multidão e tinham cada uma um frango assado, a cada uma destas se juntavam mais umas 45 ou 50, partia-se o frango, e antes de comer dá sempre um bocadinho para todos!).

Ou seja: Lucas estaria assim a falar não já do que realmente aconteceu no tempo de Jesus em “um sítio despovoado”, relativamente afastado “de uma cidade chamada Betsaida”, mas do que acontecia em umas (cerca de) 100 comunidades eclesiais locais espalhadas pelo Mediterrâneo oriental, umas 100 comunidades reunidas na comunhão da Igreja católica (é como nós aqui: chega sempre para todos, porta aberta e mesa posta, parte-se, já está). Não é verdade que o nosso conhecido Abercius dizia que na comunidade dele se comia regularmente “um peixe suculento, grande e muito fresco, pescado por uma virgem muito bela: sem cessar, ela [a Igreja] o servia aos amigos juntamente com pão e um vinho delicioso!” De facto, não há dúvida que as expressões usadas por Lucas neste relato são claramente litúrgicas: conhecemo-las de várias outras passagens do Novo Testamento, e, de resto, ainda hoje as usamos na Liturgia, tal como as recebemos do tempo apostólico.

Claro que, com o que aconteceu – informa ainda Lucas -, “todos comeram e ficaram saciados, e, do que lhes tinha sobrado, ainda apanharam doze cestos cheios”. Como podia não ser assim se era da mesa da Palavra que se tratava ou falava, melhor, se era isso que estava a ser servido à multidão faminta quando os discípulos entraram em cena? Isto é: Jesus estava a falar do Reino à multidão (aula teórica), mas faltava a prática. Portanto, porque a Palavra de Deus não é “paleio”, “conversa fiada”, mas se concretiza em ações, toca de dar de comer a todos. Foi o que Jesus fez.

Não era disso que falava Isaías? Embora ele tenha anunciado que a mesa do Reino seria colocada no alto do Monte Sião (25,6), era a mesma que Jesus mandara então pôr em “um sítio despovoado”, relativamente afastado “de uma cidade chamada Betsaida”. As pequenas diferenças pouco importam! Não é verdade que, já no Antigo Testamento, nem” a panela da farinha se esgotou nem o azeite faltou na almotolia” (1 Rs 17,14) quando a viúva de Sarepta partilhou o seu pão com o profeta? E não é verdade também que já quando o profeta Elias matou a fome a cem pessoas com apenas vinte pães, todos “comeram e ainda sobrou” (2 Rs 4,44)? E não sabemos todos, já desde o Deuteronómio, como Jesus depois recordou (Lc 4,4) que “nem só de pão vive o homem mas de tudo o que sai da boca de Deus é que o homem viverá” (Dt 8,3)?

Os mais novos na Comunidade têm de perceber que, quando nos juntamos para comer, ali ao lado, na sacristia ou em dia de Bispo, carregamos toda esta carga simbólica. Ou não disse ele, na véspera da Páscoa judaica: “Fazei isto em memória de mim!”?

A Páscoa

Desde a passada 4ª feira de Cinzas que o mundo cristão tem os olhos postos na Páscoa, a maior festa do ciclo anual. Que é a Páscoa, festa que se vai diluindo num mundo secular ao jeito do que já aconteceu com o Natal? O que é a Páscoa para além de um fim de semana alargado? Que se celebra na Páscoa?

A Páscoa é uma festa de grande tradição e riquíssima de conteúdo que, por si só, quase desenha a história religiosa da humanidade. O homem antigo vivia em profunda ligação com a Natureza, que julgava conduzida por leis mais ou menos misteriosas de fecundidade ou de esterilidade, de renovação ou de morte. A Natureza renovava-se periodicamente, era episodicamente furiosa e vingativa e alimentava o Homem, mas tinha também capacidade de o deixar na penúria…! Mesmo assim, pressentia-se Deus por detrás dela e das leis que a regiam. Deus era o seu Criador e Senhor, por isso fugia ao controlo do homem. Por isso, ele oferecia à divindade os primeiros frutos que, com dificuldade, apanhava das plantas e do chão, os melhores animais que caçava ou reunia já em rebanho, e do que aprendera já a cultivar, quando agricultor.

Que podia o homem oferecer a Deus senão o fruto encontrado, o animal caçado, ou o mais lindo cabritinho acabado de nascer no seu rebanho, tudo no dealbar da Primavera? O ritual de imolar um animal jovem, de partilhar a sua carne tenra em refeição festiva e de usar o seu sangue para marcar a tenda familiar, no seguimento dos costumes dos pastores nómadas do deserto, passou a cumprir-se na primeira noite da lua-cheia da primavera. Nesse mesmo dia ou noite, o lavrador apresentava à divindade os primeiros grãos de cevada ou, aqui pelo nosso mundo, as primeiras bolotas com que se fazia o primeiro pão novo, sem fermento, que também a Deus se oferecia. Assim nasceu a festa da primavera, da Natureza rejuvenescida, depois do longo e rigoroso Inverno.

O Pentateuco regista minuciosamente os pormenores de todo este ritual: escolherá cada família um animal sem defeito, cordeiro ou cabrito, marcareis com o seu sangue as ombreiras e o dintel da porta da sua casa (Ex 12,3-7) e tomarás as primícias de todos os frutos que colheres da terra e que o Senhor, teu Deus, te houver dado. Pô-los-ás num cesto e apresentá-los-ás no lugar que o Senhor tiver escolhido para aí habitar o seu nome [isto é, no Templo]. Apresentas-te ao sacerdote, e ele receberá o cesto da tua mão e depositá-lo-á no altar de Iavé (Dt 26,1-4).

Este gesto religioso do homem primitivo diz pouco ou nada mesmo ao moderno que somos, que não percebemos patavina dos ritmos da Natureza; o Pingo Doce tem sempre tudo, no Primeiro Mundo, peixe, fruta fresca e legumes com fartura, aconteça o que acontecer. Para o primitivo, porém, tratava-se de uma atitude verdadeiramente religiosa, que expressava a sua fé, ato de louvor e oração de súplica.

Não se ficou por aqui, no entanto, a festa da primavera do judeu antigo, atado inelutavelmente ao ciclo repetitivo da natureza. Ao culto da fertilidade do rebanho e da própria terra juntou-lhe depois uma fé radicalmente histórica. O povo estivera no exílio, no Egito, e dele se libertara, voltando à sua terra, de que retomaram posse. Deus estivera com ele nessa gesta verdadeiramente histórica. No texto do Deuteronómio que acabámos de escutar isto já lá está: meu pai era um arameu errante que desceu ao Egito com poucos familiares e aí viveu como estrangeiro até se tornar uma nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios maltrataram-nos, oprimiram-nos e sujeitaram-nos a dura escravidão. Então, invocámos o Deus dos nossos pais e o Senhor ouviu a nossa voz, viu a nossa miséria, o nosso sofrimento e a opressão que nos dominava, e fez-nos sair do Egito com mão poderosa….

É esta memória histórica do povo e a intervenção de Deus em seu favor que se passou a atualizar ritualmente: assim como a primavera é a renovação da Natureza que, todos os ciclos anuais, ressurge nova depois de uma (aparente) morte, assim o povo que descende de um arameu errante (Abraão) ressurge anualmente na festa da Páscoa, que é a celebração da libertação histórica que Deus lhe inspirou e que o seu enviado – Moisés – encabeçou. Mesmo depois de entrardes na terra que vos prometo, guardareis este rito (isto é, comereis um animal do rebanho, cordeiro ou cabrito, pães sem fermento e ervas amargas, Ex 12,8). E quando os vossos filhos vos perguntarem ‘Que significa este rito?’, dir-lhes-eis: é a Páscoa do Senhor, que salvou as vossas casas e feriu o Egito (Ex 12, 26-27; Dt 16, 1-7).

O Deus de Israel era não apenas um Deus ligado aos ciclos naturais de fertilidade; era muito mais, era um Deus que estava com os sofrimentos do povo; por isso o libertou. E esse acontecimento, verdadeira passagem de um estado de escravidão a um outro de liberdade, passou a ser celebrado com os mesmos ritos de sempre, o mesmo cordeiro, o mesmo pão sem fermento e as mesmas ervas amargas. Esta celebração fazia-se de noite, que de noite o povo fugira do Egito: Esta é aquela noite!, Ó noite bendita! – cantaremos depois, na festa da Páscoa. Não terminou aqui, porém, a história da salvação. Na plenitude dos tempos, seria Jesus, enviado do Pai, a salvar o que estava perdido: o drama começou era já de noite (Jo 13,30). E quando morreu na cruz, inocentemente condenado, houve trevas em toda a parte (Lc 23,44), como se fora de noite. Esta é aquela noite!, Ó noite bendita!

Mas Deus ressuscitou-o (At 2,24; 3,15; 4,10: 5,30; 10,40; 13,30; 17,31; Rm 8,11; 10,9; 1 Cor 15,15; 2 Cor 1,9; 4,14; Hb 11,18, etc). É isso que na Páscoa celebramos: a morte e ressurreição de Jesus, e tudo o mais que está para trás, a Páscoa da Natureza e a gesta de Israel. E isto porque se Cristo não ressuscitou, é vazia a minha pregação e vazia a vossa fé (1 Cor 15-14). Exatamente por isso eu vos anunciei antes de mais nada o que eu próprio recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as mesmas Escrituras, e depois apareceu a Cefas e a seguir aos Doze (1 Cor 15, 3-4).

Como celebramos nós tudo isto? Com os mesmos ritos dos nossos antepassados: com cordeiro, não já do rebanho, mas cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, e com pão de trigo sem fermento, afinal a matéria de toda a celebração da Eucaristia que, como dizemos todas as semanas na Anáfora, é memória da morte e ressurreição de Jesus. E, para celebrarmos tudo isto, preparamo-nos. É a Quaresma. Disse aqui no domingo passado e agora repito.

Foi mau terem-nos metido na cabeça, no passado, uma Quaresma individualista: cada um prepara-se a si próprio pela multiplicação de práticas mais ou menos penitenciais: jejum, abstinência (de quê?), confissão, via-sacra, conferências, etc. Cada um prepara-se, mas a Comunidade não se preparava, esperava antes que eles o fizessem. Mas é importante que a Comunidade o faça, porque a festa é da Comunidade. Este entendimento perdeu-se entre nós nos últimos anos: eram todos os que preparavam a festa, a Liturgia, digamos assim. Ultimamente, voltamos ao antigo: eles — quem são eles? — preparam (a festa); nós viremos, alguns, logo à noite.

Arlindo de Magalhães, 14 de Fevereiro de 2016

A caminho da Páscoa

Cristãos assírios em Beirute, February 26, 2015. (ANWAR AMRO/AFP/Getty Images)

Cristãos assírios em Beirute, February 26, 2015. (ANWAR AMRO/AFP/Getty Images)

A Quaresma não é um tempo litúrgico autónomo. É, perdoem-me a imagem, uma espécie de escada para chegar acima, não um banco para se sentar. A Quaresma foi criada para preparar a Páscoa. A ressurreição de Jesus é o acontecimento central de toda a História da Salvação e foi como tal percebida desde o início pelos cristãos. Por isso, ao lado da Páscoa semanal que sempre os cristãos celebraram — o Domingo—, desde muito cedo também começaram a celebrar uma Páscoa anual. Só temos notícia desta celebração pascal um pouco mais tarde que a do Domingo, ali por meados do séc. II. Por isso, a celebração da Páscoa organizou-se a partir da Eucaristia dos primeiros tempos cristãos: “no primeiro dia da semana, … reunidos para partir o pão…, a pregação prologou-se até à meia-noite…, Eutico estava sentado numa janela, adormeceu a caiu…, [e tudo isto] até de madrugada” (At 20,7-12).

Tão grande festa, no entanto, precisou de preparar-se: um dia, dois e três dias…, 40 dias (Quadragesina> Quaresma). Por outro lado, e por influência da igreja de Jerusalém que tinha à mão os ipsissima loca (os próprios lugares) onde tudo aconteceu, foi-se formando uma liturgia episódica que celebrava, passo a passo, os “passos” da Paixão e Morte de Jesus. Assim nasceu o Tríduo Pascal, os três dias centrais da celebração da Páscoa, que se estendeu a uma quarentena de preparação — na cultura judaica o nº 40 apontava preparação.

Foi-se formando em Jerusalém uma liturgia episódica da morte e ressurreição de Jesus, dizia. Uma mulher do séc. IV, de quem se não sabe nada a não ser que era galega, foi, entretanto, a Jerusalém em peregrinação e escreveu um relato de viagem a contar como na cidade santa se celebrava episodicamente a liturgia pascal. E o Ocidente recebeu a notícia trazida por Etéria ou Egéria e organizou depois uma liturgia pascal também episódica: a Ceia, o partir do pão, o lava-pés, a leitura dos acontecimentos, a morte, a cruz, a alegria da Ressurreição… Estava, portanto, organizada a celebração pascal, com o Tríduo no seu auge.

Mas, se o tempo de preparação festiva cresceu até aos 40 dias, a festa foi muito mais longe. Nas culturas antigas, a festa, fosse qual fosse, nunca se fazia só num dia. Ainda hoje há por aí casamentos de ciganos celebrados durante… quantos dias?; eu ainda fui a um casamento à minha terra natal que durou 3 grandes dias! Se a Quaresma tinha 40 dias, o Tempo Pascal — dizia — só parou nos 50 (penta + konta > cinco dezenas): é o Tempo Pascal, o tempo da plenitude.

A Quaresma que esta semana iniciamos foi desde o princípio percebida e vivida nas Igrejas como um tempo de disciplina ou jejum. Não era procurado por si, o jejum, pois que visava a libertação do espírito, necessária para atender ao essencial, sobretudo à partilha fraterna, a pensar nos mais pobres. [Claro que, hoje em dia, já não pensamos que o jejum é uma simples privação de boca. Os cristãos encontrarão hoje, na vida moderna, mil hipóteses de jejum, a muitos níveis, em muitos setores de vida, dos hábitos adquiridos ao claramente supérfluo. Tempo de jejum daquilo de que me posso privar, até porque o irmão pode ter necessidade do que, pelo menos, não me faz grande falta.]. Mas a Quaresma assumiu também, podemos dizer, uma dimensão batismal.

De início, era na grande noite da Páscoa, e só nela, que se celebrava o Batismo. Assim, ao tempo em que se batizavam apenas adultos que eram preparados para o primeiro dos Sacramentos da Iniciação ao longo de um tempo alargado, na Quaresma dava-se um apronto final para a grande e festiva celebração. A Liturgia da Palavra dos 5 domingos da Quaresma é uma sequência de 10 grandes quadros catequéticos de resumo ou repetição, 5 do Antigo Testamento e outros tantos do Novo Testamento. No ciclo C, que este ano ocorre, do Antigo testamento: Moisés, Abraão, a manifestação de Iavé no Horeb, a Páscoa judaica, «Algo de novo está a aparecer, não vedes?» (Is 43,19); e, do Novo Testamento: as Tentações no deserto, a Transfiguração, a conversão, os episódios do filho pródigo e da adúltera. Estes grandes quadros catequéticos ajuda(va)m as Igrejas e cada um dos já batizados a uma espécie de retorno às Fontes da  Salvação, às Águas Batismais, a celebrar a Páscoa (ainda hoje, na Vigília Pascal, a água passa por toda a assembleia como referência memorial do Batismo).

Finalmente, terceiro, a Quaresma adquiriu também uma grande e importante componente penitencial. Porque a fragilidade do homem o leva quantas vezes a perder a Graça Batismal, porque o espírito do mundo (Satanás) é contrário ao Evangelho e continuamente desvia o homem do Caminho, é necessária a revivificação da penitência, eventualmente sacramental. É verdade que se transformou nos últimos séculos num tempo apenas penitencial. É esse o sentido fundamental do gesto da imposição das cinzas. É curioso! A carga penitencial carregou de tal modo a Quaresma… que, mesmo aqui na Serra, nos últimos anos, vem às cinzas (penitência) muita mais gente que à Ceia de jejum (jejum > Partilha de bens)!

Tudo somado, a Quaresma reduzir-se-ia a um tempo de decadência que ainda hoje persevera. Perdida a dinâmica batismal do início, desaparecida a ligação íntima entre o Batismo e a Penitência, caída a Igreja num legalismo perigoso e sempre redutor que fez perder o sentido do autêntico jejum (e da abstinência: abster-se do supérfluo), a Quaresma resume-se a exterioridades (procissões, roxos, confissões, a festa dita dos Lázaros, etc.) — folclore é o nome —, praticamente sem sentido. Em muitos sítios perdeu mesmo a sua ligação com a própria Páscoa, deixando de ser entendida e vivida como tempo de preparação para ela. Mas sem Quaresma não pode haver Páscoa, e sem Páscoa não pode haver Quaresma. Venha o diabo e escolha! Porque se não há Páscoa sem Quaresma, Quaresma sem Páscoa não tem sentido absolutamente nenhum. Comecemos então a celebrar a Páscoa pela 41ª vez!

Arlindo de Magalhães, 7 de Fevereiro de 2016

Colher os frutos da esperança

<> on March 31, 2013 in Johannesburg, South Africa.

Soweto, Johannesburg, África do Sul

Meus irmãos: Sou pessimista? Somos pessimistas? Parece e apetece sê-lo, mas não sou, nem somos. É preciso saber esperar… Julgávamos — eu julgava — que, depois do Vaticano II e depois de tanta coisa, até do Papa Francisco, começaríamos a colher os frutos da nossa Esperança. Mas não. Por isso, voltamos a acender a fogueira para não morrermos enregelados no frio da noite.

O otimismo da Cruz quase nos leva a dizer, com todos os revolucionários, “quanto pior, melhor”! Mas não: é que entre o melhor e o pior há a mediocridade, “nem frio nem quente” (Ap 3,15), que não leva a sítio nenhum.

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, escreveu uma vez numa carta a um amigo: «Pergunto-me a mim mesmo porque é que não foram os senhores piedosos a descobrir a Psicanálise, mas sim um judeu, ainda por cima ateu! Séculos e séculos com os problemas da alma, em contacto permanente com o foro interno, confessores e pastores não viram que o rei vai nu!».

Jesus disse-nos que aos homens não serão perdoados os pecados contra o Espírito Santo (Mc 3,38; Mt 12,31; Lc 12,10). E nós sabemos que hoje, tal como na política e na sociedade, são a indiferença e/ou a superficialidade que mais tédio geram, que mais matam sem dor, verdadeiro cancro que devora os tecidos vivos do Corpo das Igrejas e não deixa ouvir o que o Espírito lhes diz (Ap 2 e 3).

Não é preciso ser muito inteligente para detetar o mal da Igreja que está em Portugal. Basta passar pela Liturgia de um qualquer lugar, tomar-lhe minimamente o pulso e auscultar-lhe a respiração ou o cardíaco, mesmo sem estetoscópio, para perceber que ali não está o Espírito de Jesus, embora metam nas nossas caixas de correio papéis coloridos a lembrar o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, mas peçam logo a seguir dinheiro a que chamam “generosidade e partilha”, e desejem no fim um Feliz Natal! (e se desejar recibo para apresentar no IRS assinale com uma cruz! Quem diria, com uma cruz!).

Não somos os primeiros a dizer que o Concílio não passou por aqui!, embora o Papa Francisco apele a que “as comunidades se esforcem por usar os meios necessários para avançar no caminho de uma conversão pastoral e missionária, que não se podem deixar as coisas como estão” (EG 25). Vamos continuar assim?

Vamos continuar a ter de aceitar o que nos dão, só o que não presta? Vamos morrer de tristeza, embora estivéssemos já embalados na promessa de que “algo de novo está a aparecer, não vedes?” (Is 43,19)?

Ninguém diga que nós estamos livres desse perigo. Nós não somos a Igreja do Porto, muito menos a que está em Portugal: somos uma pequenina porção que não se basta a si própria. Temos feito o que sabemos e podemos, mas se a Igreja do Porto e a de Portugal não se renovam, não nos safamos. Como muitas outras que desapareceram do mapa, a Igreja que está em Portugal pode desaparecer, sem deixar rastros. Não disse o Espírito de Jesus que a Igreja que não é nem fria nem quente ele a vomitaria (Ap 3,16)!?

Nós não somos juízes da Igreja. Mas temos de ser críticos nesta Igreja. Porque acontecem nela coisas com que não concordamos. Isso de padrinhos e madrinhas, de mais dinheiro ou de menos euros, se assinam ou não assinam, de mais procissão ou de qualquer outro folclore religioso, isso é de somenos. Mas acontecem coisas nesta Igreja que não podem acontecer. Acontecem coisas que podem ser pensadas e decididas não dentro desta Igreja, mas nas secretarias.

Seja como for, a Igreja que está em Portugal não está morta. Se estivesse, estava o caso arrumado. Mas não está. E, por isso, esperamos…, que havemos de colher os frutos da nossa Esperança. Mas, entretanto, temos de voltar a acender a fogueira para não morrermos enregelados na noite. A este propósito recordo um texto que já aqui li há quase 20 anos:

«Eles sabem tudo, eles escolhem tudo, eles nomeiam tudo, eles impõem tudo, e depois dizem (aos Meios de Comunicação antes de o fazerem à Igreja) que é o Papa, que é a vontade do Papa. E nós aguentamos tudo, mas estamos convencidos de que não é a vontade do Papa. Que a Igreja lute, e o tenha feito dignamente, pela liberdade de escolher os seus bispos é muito importante. Mas que, hoje em dia, alguns, poucos, escolham desta maneira os bispos que impõem à Igreja, não. Sabemos que, um pouco por todo o mundo, nos últimos anos, a escolha dos bispos tem levantado montes de problemas. Em Portugal está a atingir o ridículo. Temos os bispos que merecemos ou os que nos dão? Eu penso que o Papa Celestino I (422-432) tinha muita razão quando escreveu numa Carta aos Bispos de Vienne: “Ninguém seja dado como bispo a quem o não quer (nullus invitis detur episcopus)”».

Arlindo de Magalhães, 24 de Janeiro de 2016

Comunidades abertas

India: cristãos em vigília de oração pelo ataque à igreja de S. Francisco em Bhopal (21 de novembro de 2015)

India: cristãos em vigília de oração pelo ataque à igreja de S. Francisco em Bhopal (21 de novembro de 2015)

Com Caná se acaba o tempo epifânico do Evangelho, o tempo da grande mostração de Deus aos homens: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz” (Is 9,2). O Oriente celebrava, na Epifania, palavra grega que quer dizer manifestação, um mistério: “O mistério escondido ao longo das gerações manifestou-se então” (Cl 1,26). Nós, os cristãos ocidentais, que nunca fomos muito na cantiga do mistério, dividimo-lo em eventos: o nascimento de Jesus, os Magos a procurá-lo, o Batismo no Jordão (“Tu és o meu filho muito amado”, Mc 11,11) e o sinal de Caná. Por isso, dizia, com Caná se acaba o tempo epifânico do Evangelho. Este ano não há batismos, estão bem guardados para a Páscoa.

Na continuação do domingo passado…, dizia eu da necessidade de retocar as Bases da Comunidade. De que se trata? Que são as Bases? Quando a Comunidade nasceu, já eu tinha corrido mundo, nomeadamente França…, em tempo pós-conciliar, no qual a paróquia entrava em crise dando lugar a ideias e práticas novas. De comunidade, a paróquia tinha passado a ser apenas um território, com fronteiras e marcações; de um lado da rua, era uma paróquia, mas, do outro em frente, era já outra, ambas tinham nome próprio, quem lá vivia era aí que tinha de ser cristão.

Só que o mundo estava passar de rural a urbano. E, na urbe > cidade, há uma liberdade normal. Enquanto na aldeia só se podia ir à tasca do Olímpio, porque não havia outra, na cidade eu vou ao café de que gosto ou me dá mais jeito. E, enquanto na minha aldeia não me resta senão ir à missa à minha paróquia, na cidade, vou aonde quero, seja por que razão for. E ninguém tem nada a ver com isso, Santa Liberdade! Não vou ao Candal, vou à Serra do Pilar, por mil razões.

Dizia eu que, em França e na Alemnanha sobretudo, na década de 60, estava muita coisa a mudar: nasciam comunidades não paroquiais mas desejadas, na procura de uma igreja desenhada pelo Vaticano II, não institucional, mas Povo de Deus, etc., etc. Paulo VI diria assim, em 1975, tinha já nascido a Serra do Pilar: essas comunidades”[nascem] do desejo e da busca de uma dimensão mais humana do que aquela que as comunidades eclesiais mais amplas dificilmente poderão revestir, sobretudo nas grandes metrópoles urbanas contemporâneas, onde é mais favorecida a vida de massa e o anonimato ao mesmo tempo” (EN 58.b). Trata-se, pois, de Comunidades abertas, não homogéneas, nem inspiradas numa determinada espiritualidade nem agregadas a um qualquer movimento ou organização de inspiração religiosa. Com esta explicação, já todos percebem muita coisa.

Eu andava por França, à procura destas coisas, dizia. E quando vim aqui parar… nunca fui capelão nem nada, e sempre pensei que se conseguisse criar uma comunidade nova, preocupada com questões essenciais e não com dinheiros nem novenas (excetuada a única, do Natal), comunidade de irmãos na fé e, logo, na Caridade, não hesitaria. Claro que quem para aqui me mandou não pretendia uma coisa destas. Por isso, houve muitos problemas à nascença. Mas nasceu. E, depois, a criança teve muitos problemas…, não é para aqui, pelo menos hoje. Nasceu e cresceu, tem 41 anos, e tem hoje um bispo que, ao seu tempo, depois de mim, fez o que eu fiz em França, disse-mo aqui…

Claro que nascida e crescida a comunidade, ela não era (nem é ainda) conhecida pelo Direito (Canónico) – que o Direito chega sempre depois da Realidade – … Mas tinha que haver ordem e algumas regras. Por exemplo: aqui, quase desde o início, quisemos que a Missa não tivesse nada a ver com dinheiro; aqui não haveria peditórios, mas ofertórios e partilha de bens, nem batismos na Eucaristia de um qualquer domingo à vontade do freguês, etc… Foi então necessário escrever algumas “coisas” básicas que afirmassem a identidade de uma novidade eclesial: o Concílio tinha deixado claro que a Igreja não é uma instituição mas um Povo de Deus composto de crentes, homens e mulheres.

Nasceram assim as Bases da Comunidade, estávamos em 1976. Revistas já várias vezes e teologicamente enriquecidas, pedem agora (de novo) alguma revisão, algo que se pretendeu acontecesse no ano dos 40. Fá-lo-emos então no próximo sábado, 23 de janeiro. Somente a quem queira e possa participar na Assembleia se entregou já e entrega ainda, no fim da celebração de hoje, o texto das mesmas Bases, para que essas pessoas possam participar no debate. Este trabalho, que não ficará certamente terminado no próximo sábado, haveria de estar pronto.

Arlindo de Magalhães, 17 de Janeiro de 2016

Do Tempo para a Eternidade

Jerusalém, celebração da Páscoa da Igreja Ortodoxa Etíope (foto: A. Valdamn/The Tower)

Jerusalém, celebração da Páscoa da Igreja Ortodoxa Etíope (foto: A. Valdamn/The Tower)

“Ao contrário dos nossos maiores, que caminharam da Páscoa para o Natal, nós, que caminhamos no Tempo, seguimos viagem do princípio para o fim, do Tempo para a Eternidade, da História para o Reino, do Natal para a Páscoa. Anima, Senhor, os nossos passos”. Assim se orava no fim da celebração de há oito dias. Por isso, depois do Tempo natalício, as comunidades correm para a celebração da Páscoa.

O nosso grupo catecumenal em caminho trata, nestes dias, da organização anual da Liturgia: dois tempos festivos, um curto (o Natal), outro muito grande, 14 semanas e meia (a Páscoa), o Natal coincidente com o solstício do inverno, e a Páscoa com o equinócio da primavera; o restante tempo do ano a Liturgia di-lo “comum”.

A partir do solstício do inverno, os dias começam a crescer: por isso, no paganismo, ao deus Sol se dedicava uma grande festa; e nesse dia — ao tempo, a 25 de dezembro — o cristianismo começou também a celebrar o nascimento do Emanuel, do “deus connosco”, aquele que o profeta Malaquias (3,20) chamaria o “Sol da Justiça”. Esta festa, o Natal, só temos dela notícia tardiamente, no século IV: o curto tempo do Natal.

Da Páscoa, sim, sabemos dela muito mais cedo, em meados do século II, isto se não levarmos em conta a “páscoa semanal”, o “dia do Senhor”, que é o nosso domingo, o dia da Ressurreição. Do dies dominicalis (Dia do Senhor)> domingalis> domingo temos notícia desde os tempos cristãos mais antigos: quando ainda não tinha nome, diziam-no “o primeiro dia da semana”, para o diferençar do último dia da semana, que era o dia sagrado do judaísmo.

Em resumo deste esquema, digo assim: a mais antiga criação pastoral do cristianismo foi a do primeiro dia da semana; temos de concordar que rapidamente se terá pensado e organizado, num primeiro dia da semana, uma festa anual da Ressurreição, sem desaproveito algum da páscoa semanal. A esta festa anual da Ressurreição chamamos nós, hoje em dia, simplesmente, a Páscoa. Esta celebração pascal é um verdadeiro ponto de referência para toda a Liturgia: para ela tudo converge, e dela tudo resulta. Por isso na sua celebração se começa a queimar um círio novo — a Luz de Cristo —, que alumia a assembleia até à Páscoa do ano seguinte.

Se, liturgicamente falando, a Páscoa assumiu sempre o cúmulo de importância, liturgicamente falando, o Natal nunca perdeu a sua importância. Tempo houve, não é questão para aqui, em que se pretendeu fazer do tempo natalício uma cópia do tempo pascal. Não e não!, disse o bem senso (o que não foi nada fácil), porque, em importância, primeiro a Páscoa e só depois o Natal.

E fora do tempo de Natal e da Páscoa? Tempo Comum, claro! A vida da Igreja deveria ser sempre organizada à luz deste esquema. Assim não é, e por muitas razões; na Igreja não se sabe programar. Depois, mistura-se tudo, sempre a mesma coisa, fazem-se muitas coisas mas ninguém faz nada que interesse, missinhas, misssinhas e muitas, e está tudo feito.

Este ano, na Serra do Pilar, a programação do ano pastoral não foi possível. Na incerteza da data da vinda do Bispo António Francisco, que esperámos desde os fins de 2014 mas só aconteceu em novembro passado e praticamente já às portas do Advento, tivemos de ir adiando iniciativas já pensadas. E, quando ele veio, estávamos já às portas do Advento.…

Uma das realizações várias vezes adiada foi a Assembleia da Comunidade, prevista previamente para setembro passado, depois outubro, novembro… …e que, terminado agora o tempo de Natal, temos de realizar de imediato. Esta Assembleia tinha a ver com os 40 anos da nossa história…

Neste contexto, 1. Convoco uma Assembleia da Comunidade a realizar no sábado, dia 23 de janeiro, às 15 horas. 2. Porque a grande questão — as Bases da Comunidade — pede alguma reflexão. A quem nela queira e possa estar presente se entrega, no fim da celebração de hoje, o texto das mesmas Bases para que todos possamos participar em alguma decisão que eu próprio desejaria ter sido feita no 40º ano da nossa história, o que não foi possível, repito, pela incerteza prolongada da visita episcopal. 3. Algumas questões mais haverá a tratar, logo veremos que disponibilidade para o debate. Algo mais direi nos domingos próximos, que não são muitos até à Páscoa.

Arlindo de Magalhães, 10 de Janeiro de 2016

Dia Mundial da Paz

N3

Vence a indiferença e conquista a paz – é o desafio lançado pelo papa Francisco para este primeiro dia do ano, dedicado a refletir sobre a PAZ. Da sua mensagem para este Dia Mundial da Paz, podemos ler:

“Não há dúvida de que o comportamento do indivíduo indiferente, de quem fecha o coração, desinteressando-se dos outros, de quem fecha os olhos para não ver o que sucede ao seu redor ou se esquiva para não ser abalroado pelos problemas alheios, caracteriza uma tipologia humana bastante difundida e presente em cada época da história; mas, hoje em dia, superou decididamente o âmbito individual para assumir uma dimensão global, gerando o fenómeno da «globalização da indiferença».”

Não é que não saibamos do que se passa ao nosso lado, no nosso país e nos confins do Mundo. Sim, a informação é muita, mas ficamos indiferentes, resignados, aceitando “normalmente” as consequências daquilo que condenamos, seja a guerra que lá de longe nos envia os refugiados, seja a violência ou o abandono dos mais fracos, nossos vizinhos, ou a corrupção que permite os negócios pouco transparentes com o que é de todos em grande benefício de alguns! Poderíamos falar de desemprego, de falências fraudulentas, de pobreza, de serviços públicos essenciais passados para privados, como a água e os transportes, de escandalosas parcerias público-privadas, de intermináveis inquéritos que nunca acabam nem responsabilizam alguém, da descarada conivência entre o poder político e o poder financeiro…

“A indiferença para com o próximo assume diferentes fisionomias. Há quem esteja bem informado, ouça a rádio, leia os jornais ou veja programas de televisão, mas fá-lo de maneira entorpecida, quase numa condição de rendição: estas pessoas conhecem vagamente os dramas que afligem a humanidade, mas não se sentem envolvidas, não vivem a compaixão.”

Mais de 1 milhão de refugiados chegaram à Europa durante o ano de 2015, quatro vezes mais que em 2014. Mais de metade chegou à Grécia e a Itália, as duas grandes portas de entrada. Os Estados-membros da União Europeia concordaram acolher 160 mil destas pessoas, mas até agora apenas duas centenas foram oficialmente acolhidas. O mundo está a braços com a maior crise de refugiados desde que o ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados) existe. Em todo o Mundo, há mais de 60 milhões de pessoas deslocadas por conflitos dentro dos seus países ou refugiadas, e a esmagadora maioria está em países em desenvolvimento. Desde o início do ano já morreram 3670 refugiados ou imigrantes, afogados no mar Mediterrâneo.

Kinam Massalmeh (na foto) tem 13 anos e é refugiado. Chegou à Europa com a sua irmã e, quando foi interpelado sobre a mensagem que tinha para os europeus, não hesitou: “A minha mensagem é: ajudem a Síria. Os sírios precisam de ajuda agora”, disse. “Nós não queremos vir para a Europa. Só queremos que parem a guerra na Síria”.

“Noutros casos, a indiferença manifesta-se como falta de atenção à realidade circundante, especialmente a mais distante. Algumas pessoas preferem não indagar, não se informar, e vivem o seu bem-estar e o seu conforto, surdas ao grito de angústia da humanidade sofredora. Quase sem nos darmos conta, tornámo-nos incapazes de sentir compaixão pelos outros, pelos seus dramas; não nos interessa ocuparmo-nos deles, como se aquilo que lhes sucede fosse responsabilidade alheia, que não nos compete.”

A Unicef estima entre 6 a 10 mil o número de crianças alistadas nos grupos armados na República Centro-Africana desde o início dos confrontos e da vaga de violência, em 2013.

A crise Síria constitui a maior ameaça dos últimos anos para as crianças. No final de 2015, a violência e as deslocações forçadas terão transtornado profundamente a vida de mais de 8,6 milhões de crianças na região. As que fogem da guerra da Síria constituem cerca de um terço dos refugiados. Algumas perdem o pai ou a mãe (ou ambos) no caminho, ficando sem família, completamente desprotegidas.

Por outro lado, o trabalho infantil ainda atinge 168 milhões de crianças no mundo, na maior parte dos casos em más condições de trabalho e impedindo-as de serem crianças e de frequentar a escola. Os meninos que apanham e tratam do cacau não saborearão sequer o chocolate que todos comemos.

“Vivendo nós numa casa comum, não podemos deixar de nos interrogar sobre o seu estado de saúde. A poluição das águas e do ar, a exploração indiscriminada das florestas, a destruição do meio ambiente são, muitas vezes, resultado da indiferença do homem pelos outros, porque tudo está relacionado. “

A poluição atmosférica está a matar aproximadamente 4 mil pessoas por dia na China, sendo atualmente responsável por uma em cada seis mortes prematuras registadas no país mais populoso no mundo. Estima-se que 1,6 milhões de pessoas morrem anualmente na China devido a problemas de coração, pulmões e de acidentes vasculares cerebrais provocados pelo ar extremamente poluído. Um estudo atribui a culpa às emissões resultantes da combustão de carvão usado para a produção de energia elétrica e para aquecimento das casas.

No passado mês de novembro, em Minas Gerais, Brasil, o rompimento de duas barragens com resíduos de minério provocou o maior desastre ambiental da história do Brasil. Uma torrente de 62 milhões de litros de lama percorreu 850 km até chegar ao mar, deixando pelo caminho um rastro de destruição e morte: povoações inteiras arrasadas, rios, terras, animais e vegetação destruídos.

Na recente Cimeira do Clima (COP21) ficou claro, uma vez mais, que são os interesses financeiros que ditam as regras, perante a cegueira consentida dos decisores mundiais; dinheiro versus futuro da humanidade, o primeiro ganhou. Os países mais pobres querem ser ricos, os países ditos desenvolvidos querem ficar mais ricos ainda e todos mantêm esta “embriaguez ilusória” da riqueza a qualquer custo, num sistema económico de crescimento contínuo num mundo de recursos finitos. Ainda da mensagem do papa Francisco:

“Deus não é indiferente; importa-Lhe a humanidade! Deus não a abandona! Com esta minha profunda convicção, quero, no início do novo ano, formular votos de paz e bênçãos abundantes, sob o signo da esperança, para o futuro de cada homem e mulher, de cada família, povo e nação do mundo, e também dos chefes de Estado e de governo e dos responsáveis das religiões. Com efeito, não perdemos a esperança de que o ano de 2016 nos veja a todos firme e confiadamente empenhados, nos diferentes níveis, a realizar a justiça e a trabalhar pela paz. Na verdade, esta é dom de Deus e trabalho dos homens; a paz é dom de Deus, mas confiado a todos os homens e a todas as mulheres, que são chamados a realizá-lo.”

A Família

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Foi há 34 anos, celebrados no passado dia 20, que dissemos “sim” e se iniciou uma história em comum, da qual resultou a nossa família. Como jovens que éramos, com educação e prática católicas, não nos era possível pensar em fazê-lo sem que fosse pela Igreja, isto é, junto do altar e com a bênção do Pai. Assim foi. Começou aqui a nossa família biológica a formar-se com o desafio lançado nesse dia: «…o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher, e os dois serão uma só carne.» (Gn,2,24). Mas será que estávamos preparados para uma vida nova, a dois? As primeiras dificuldades surgiram de imediato dada a difícil adaptação ao lugar, ermo por sinal, onde tínhamos passado a viver e do qual a Fátima em situações de mais saudade se afastava, procurando a casa dos pais, em Famalicão, onde sentia o borbulhar da família que deixara para trás. Eu, pacientemente, ia buscá-la, porque a certeza de que o amor era maior nunca nos abandonou.

Durante a década de 80, os nossos três filhos nasceram, os dias mais felizes da história da família aconteceram e, saudavelmente, passaram os filhos a ser o foco das nossas atenções e preocupações. Uma entrega plena à maternidade / paternidade obrigava a recomeçar tantas vezes tudo de novo. As minhas deslocações para longe, enquanto professora, fraturaram a família algumas vezes e obrigaram a que o Zé Eduardo ficasse só, enquanto eu, com os filhos no banco de trás do automóvel, ia semanalmente para Oliveira do Hospital, onde os nossos filhos mais velhos iniciaram a escola básica e o mais novo aprendeu a andar. Nada fácil, mas tudo foi superado com amor e confiança.

Aos amigos sempre foi dado tempo e espaço na nossa família e, como tal, também os nossos filhos cresceram valorando a amizade, o ser na relação com o outro. Hoje são jovens adultos autónomos e responsáveis, apreciados e amados por quem os cerca, assumindo com dignidade o seu papel ativo no mundo: a Marta na Alemanha, o Paulo e o Miguel, há pouco tempo, aqui, no Porto. De novo fisicamente sozinhos, voltamos a centrar as atenções um no outro e a redimensionar as nossas prioridades.

Uma insolvência compulsiva, em 2012, que me deixou no desemprego, sem remuneração e com tempo livre, foi causa para a minha frequência num curso de pós-graduação na U.C. do Porto, após 30 anos de afastamento do ambiente académico. Aí tive o privilégio de ter o padre Arlindo como professor. Foi o impulso suficiente para subir à Serra do Pilar e conhecer o que ele orgulhosamente chamava de «sua comunidade de fé». E assim aconteceu, lá fomos (eu e a Fátima) um domingo ou outro à Eucaristia na Serra, intervalando com outros locais de celebração.

Eu passava por uma fase de procura de resposta à grande questão que se me punha: como celebrar a fé num Deus que tinha descido do seu trono celestial, se fizera um igual a nós, que desde criança confundia a mente dos teólogos do seu tempo e, inserido no seu povo e cultura, se preocupava sobretudo com os pobres, os doentes, os sem-abrigo, os «des-graçados», para que se realizassem como seres humanos, curados no corpo e no espírito? Foi na comunidade da Serra do Pilar que encontrei a possibilidade de resposta. Foi depois de tanta procura que, insistindo em voltar à Serra, agora para celebrar o Tríduo Pascal de 2014, nos sentimos verdadeiramente empossados de um ministério de que só aqui ouvimos falar: o ministério da presença. A Liturgia, a celebração da fração do pão e a comunhão fraterna com as pessoas que fomos conhecendo nesta comunidade dão-nos um sentido profundo à realização da celebração da nossa fé.

É a nossa história que se estende à comunidade da Serra do Pilar, a nossa família cristã. E, tal como na família biológica foi necessário compromisso para sedimentar a nossa relação matrimonial, também aqui nesta comunidade nos sentimos comprometidos e queremos assumir o espírito de serviço: o Zé Eduardo no grupo de catecumenato e eu no grupo coral. Cada domingo é para nós a celebração da Páscoa, com uma novidade permanente na forma como a Liturgia é preparada, como é feito o ensino da fé, assente na Palavra proclamada e no sabor único do pão fracionado.

Não queremos terminar sem lembrar as palavras sábias do Papa Francisco: «Não existe família perfeita. Não temos pais perfeitos, não somos perfeitos, não nos casamos com uma pessoa perfeita nem temos filhos perfeitos». Mas uma coisa percebemos: que a família foi e é o nosso melhor projeto de vida porque é com ela que contamos na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Bem haja, a vós comunidade, porque nos receberam e nos ouviram!

Fátima e Zé Eduardo, 27 de Dezembro de 2015