Catilinária

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Liturgicamente falando, faz hoje um ano que me saiu aqui uma catilinária sobre o que fizemos ou deixámos fazer ao Natal. Nem todos saberão o que é uma catilinária. Catilinária vem de Catilina — Lúcio Sérgio Catilina —, era este o nome de um militar e senador da antiga Roma (108-62 aC), célebre por ter tentado derrubar o Senado da República e com ele a República romana. Homem de crimes e vícios, já condenado à morte, morreria entretanto num encontro militar com as legiões do Poder. Pelo meio, muitas lutas, e uma delas com um célebre escritor e político também romano, Cícero (106-43 aC), que, em pleno Senado, perguntou diretamente a Catilina, numa também célebre intervenção acusadora e veemente, áspera e violenta: “Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?” (Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?). Desde então, a um sermão ou intervenção pública e direta, acusatória, dá-se o nome de catilinária.

Há um ano, dizia, saiu-me aqui uma catilinária. Disse assim, falando do Natal: Na antiga prática da Igreja, «jejum todo o dia 24, Eucaristia à meia noite, porque ele nasceu de noite, é o que Lucas diz, e quando da Missa do Galo se regressava a casa, então, sim, começava a festa: comezaina, pois claro, não havia festa sem muito e sem doce, tal como se faz aqui na Vigília Pascal. E a Ceia como que se prolongava por todo o dia 25, o almoço… Claro que isto faziam-no as famílias. Mas o Natal não era a festa “da família”: era a festa “do nascimento de Jesus”.

No entanto, com o tempo, no domingo a seguir ao Natal, e ainda na aura do mesmo, começou a fazer-se a festa da família, como manda ainda a Liturgia: «Senhor, que na Sagrada Família nos deste um modelo de vida, concede que, imitando as suas virtudes familiares e o seu espírito de caridade, possamos um dia reunir-nos na tua casa…», diz a oração do rito de entrada do Missal romano. Mas repare-se bem: de início, fazia-se jejum a pensar nos pobres.

Mas o mercado não esteve com coisas: não descansou enquanto não misturou a festa cristã da família com a do Natal (faria o mesmo com a festa da Mãe, que passou para maio porque em 8 de dezembro estragava o comércio do Natal!!!). E todos achámos muito bem! Repare-se: o que se jejuava em favor dos pobres transformou-se em prendinhas de Natal, não dadas aos pobres, mas… em família à família, em dia que liturgicamente não era o da família, mas o comércio conseguiu que passasse a ser! Não foi no nosso tempo que isto começou. Mas só acabou de vez quando os americanos inventaram o S. Nicolau — Papai Noel — a distribuir Coca-Cola!

Mesmo assim, quando começou isto das prendas, ainda com alguns laivos de mistério, sobretudo dos mais pequenos, só depois da Missa do Galo é que o Menino Jesus vinha pôr a prenda no sapatinho, de madrugada! Pois era! Mas agora, “num é”! Agora, dá um trabalhão imenso escolher as prendas, comprar as prendas, embrulhar as prendas… Quem fez isto, quem foi? Quem manda em nós, que fazemos tudo o que eles querem? E depois queixámo-nos.

Se bem que me possam continuar a dizer “Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?”, a presença da luz no nascimento de Jesus é possivelmente a ideia mais glosada em toda a liturgia do Natal. O facto de se pensar que ocorria a 25 de dezembro o solstício do Inverno (o dia do início do Inverno) — dia em que efetivamente as jornadas começam a crescer, dia celebrado já pelos romanos como um triunfo da luz sobre as trevas — fez com que os cristãos começassem a celebrar nesse dia o Sol que nasceu do alto, o Cristo que desceu à nossa terra, “Luz que brilha nas trevas”, ou, como cantamos, “Hoje uma grande Luz desceu sobre a Terra, Vinde e adorai o Senhor!”.

O ambiente da celebração da meia-noite é propício para a evocação deste mistério. No coração da noite, a comunidade cristã reúne-se num espaço de luz, que é símbolo da fé. E a Luz é Cristo, Palavra e Eucaristia, um facho de esplendor que irradia os seus raios a iluminar todos os que creem e celebram o seu santo nascimento. E é neste ambiente que se revela todo o sentido da profecia de Isaías: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz; ele habitava uma região de sombras, mas apareceu uma luz fulgurante” (9,2). O texto de Isaías e o de Lucas: “naquela região, havia uns pastores que passavam a noite ao ar livre a guardar os seus rebanhos… A glória do Senhor envolveu-os de claridade!” (Lc 2,8-9).

Por isso, Santo Agostinho dizia no séc. V: “Desperta, ó homem, que por ti Deus se fez homem. Desperta, tu que dormes, levanta-te de entre os mortos e Cristo te iluminará”. E Santo Anselmo, no séc. XI: “Olha, Senhor, para nós; ouve-nos, ilumina-nos, manifesta-te a nós. Vem morar connosco e seremos felizes; sem ti, passamos muito mal”. Porquê? explicava João naquela entrada fulgurante do seu Evangelho: “Nele é que estava a Vida. E a Vida era a Luz dos homens. A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam” (Jo 1,4-5). Continuarei a dizer que o Natal está paganizado. Porque está. Mas a todos, irmãos, de perto e de longe, estejam ou se ausentem, boas festas de Natal!

Arlindo de Magalhães, 20 de Dezembro de 2015

Profetas

Henry Ossawa Tanner -Study for The Annunciation (1898)

Henry Ossawa Tanner – Study for The Annunciation (1898)

Naquele tempo, o Povo não era fiel e os reis eram uma desgraça. Então em questões de moral…!; a Lei não salvava, os sacerdotes multiplicavam os sacrifícios mas não conseguiam a Graça, a promessa nunca mais se cumpria, adeus promessa feita a Abraão, a aliança começou a morrer de velha, e por fim o próprio Templo seria destruído (587 aC), bem como o Povo destroçado. Israel conheceria então o desastre total: o cativeiro (anos 605 e 587 aC). Restou apenas um nome, o de uma cidade, Jerusalém, mesmo depois de reduzida a escombros: Jerusalém, Jerusalém! A minha língua fique calada se eu não me recordar de Ti! (Sl 136).

Muito antes de isto acontecer, haviam aparecido os Profetas, Isaías à frente, nascido ali à volta do ano 760 aC. Como do seu presente já quase nada havia a esperar, começou a olhar para o futuro. Esperando contra toda a esperança divisou que do tronco carbonizado de Jessé postado no meio da cidade arruinada brotaria um rebento; sobre ele repousará o espírito do Senhor (Is 11,1-2). Então, o lobo habitará com o cordeiro, o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito, e um menino os conduzirá (Is 11,1-6). Dizendo doutro modo: Eis que uma Virgem conceberá a dará à luz um filho chamado Emanuel (Is 7,14). Chamar-se-á Admirável Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz! E as botas que calcam a nossa terra e a roupa manchada pelo sangue serão deitadas ao lume das fogueiras, pasto ardente do fogo e das chamas! (Is 9,6).

Estão loucos os profetas, como outrora os deuses? Sim, estão loucos. Mas foi por causa desta loucura que o povo que andava nas trevas começou a ver um grande luz: habitavam uma terra de sombras, mas uma luz começou a brilhar sobre eles (Is 9,1).

Lança gritos de alegria, filha de Sião, diz o teu contentamento, Israel! Exulta e rejubila de todo o teu coração, filha de Jerusalém! Porque o Senhor revogou a sentença que te condenava e afastou os teus inimigos. O Senhor, rei de Israel, está no meio de ti, é ele quem te vem salvar! (Sf 3,14-15).

Finalmente, gritaria o último profeta do Testamento antigo: Para vós brilhará o sol da Justiça! (Mal 3,20).

Entretanto, o rei Acaz, de Judá (entre os anos 732 e 716 aC), o reino do Sul, e casara com uma jovem moça, dizem que muito bonita, entregou-se – 5 – a uma política de infidelidade a Iavé: querendo combater os seus inimigos, Damasco e a Samaria, aliou-se a um rei pagão, o imperador da Assíria (Tiglat-Falasar), que haveria de fazer uma coisa que nunca lhe passaria pela cabeça: o assírio engoliu-lhe o próprio reino de Judá.

Mais uma vez, valeu à aflição do povo o profeta Isaías, que depositou toda a sua esperança — sair da situação que Acaz arranjara — no seu filho que haveria ainda de nascer da jovem moça muito bonita, e que receberia o nome de Emanuel (nome que quer dizer “Deus [está] connosco”). Foi deste primeiro Emanuel que os profetas saltaram para um outro Emanuel, que, esse sim, iniciaria a verdadeira salvação e iniciaria o reino definitivo.

Adivinhos, Isaías e os mais profetas? Não! Clarividentes, sim! Por isso cantaram: Eis que uma outra moça [isto é, uma mulher virgem, não casada] conceberá e dará à luz um filho chamado Emanuel! Cantaram os filhos de Judá, pondo a sua esperança no Emanuel, no Deus connosco que haveria de nascer. Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho chamado Emanuel! Cantaram os filhos de Israel à espera do Messias, e cantamos nós como eles no tempo que celebramos.

À porta dos dias cheios de mistério e de encantamento, de espanto, mas também de maravilha – começa 5ª feira a Novena do Natal -, aí estão o enlevo e o calor dum tempo que dá que pensar: que Deus é este que se fez um de nós? Cantamos, por isso, esta tão enleante e minhota melodia, que o então beneditino Celestino Borges escreveu nos inícios daquela década de 70. Que Deus é este que se fez um de nós? E quem somos nós para sermos como Deus? Cur Deus homo?, Deus homem porquê?, perguntava Sto Anselmo (1033-1109), na longínqua Idade Média.

Arlindo de Magalhães, 12 de Dezembro de 2015

A Partilha Fraterna

Irmãos e Irmãs: A nossa Comunidade comemorou, durante todo este ano, os seus 40 anos de existência. No encerramento desta comemoração, o nosso bispo, D. António Francisco dos Santos, realçou aqueles que têm sido os três grandes pilares na nossa vida comunitária. Disse ele:

“As três razões fundantes desta Comunidade – celebração e ensino da fé e os pobres -, que teve o seu início há 40 anos, em Novembro de 1974, são ainda hoje questões prioritárias no seu caminho.”  

Como os primeiros cristãos, também nós tentamos ser assíduos aos ensinamentos do Evangelho, às orações comuns, à fração do pão celebrada todos os domingos, e à comunhão fraterna concretizada na partilha da Boa Nova de Jesus e de todos os bens recebidos de Deus através d’Ele, na ajuda solidária aos mais necessitados de entre nós e aos que vamos descobrindo nas imediações da nossa Comunidade ou que a nós recorrem.

Somos conscientes de que a partilha fraterna é uma parte da comunhão fraterna. Por isso, a comunhão fraterna tem sido, para nós, um desafio constante não só para a recolha e dádiva de bens materiais a distribuir pelos mais necessitados mas, sobretudo, para conseguirmos acompanhar com amor e carinho os doentes em tratamento, os doentes acamados ou hospitalizados, os mais idosos e os mais abandonados pela injustiça dos homens. Como grupo (e, talvez, como Comunidade), atrevemo-nos a pensar que nem sempre temos conseguido responder convenientemente a estes últimos desafios, apesar de termos sempre presente o que Jesus nos disse: “cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes” (Mt 25, 40).

Tentamos ser o rosto oculto da Comunidade, que em nós deposita a sua partilha, sem nenhum de nós abdicar de também exercer a Caridade, aquela força do Amor que nos faz dar de graça muito do que temos e até, por vezes, do que nos faz falta! Mas não esquecemos que “ainda que eu distribuísse os meus bens pelos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse caridade, isso de nada me adiantaria” (1Cor 13,3).

Sim, gostaríamos de poder dizer que, frequentemente, damos do que é nosso a quem precisa: pão, auxílio monetário, ofertas várias, acompanhamento, carinho, atenção, disponibilidade, tempo para escutar quem vive só, doação dos nossos talentos para a Comunidade e para os outros. Sabemos que é difícil, pois dar é uma coisa e AMAR é outra bem diferente. Assim nos ensinou e praticou o Senhor Jesus! Um só Mandamento Ele nos deixou e um só mandamento nós queremos seguir: Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei!”

Hoje é o dia reservado, pela nossa Comunidade, para a Partilha Fraterna. Ouçamos o Senhor, o nosso Deus!

“Quando fizerdes a colheita do trigo da vossa terra, não segareis até o limite extremo do campo. Não voltareis para apanhar as espigas que tenham caído durante a colheita. Também não havereis de passar duas vezes pela vinha, nem recolhereis os frutos caídos sobre a terra do vosso pomar. Deixá-los-eis para o pobre e para o estrangeiro. Eu Sou IAVÉ, o vosso Deus” (Lv 19, 9-10)

Somos esta Comunidade a caminho levando cada qual, dentro de si, o Reino de Deus! De que adianta à nossa Comunidade dizer que tem fé se não for capaz de concretizar a Caridade? E, agora, estaremos em breve perante um novo desafio que se chama “Refugiados”. Que resposta poderemos dar como Comunidade que tem por princípios fundadores “a celebração e ensino da fé e os pobres”? “Sede hospitaleiros uns para com o outros”, admoesta-nos Pedro na sua Primeira Carta (Pd 4, 9). Hoje é o Dia da Partilha Fraterna. Tudo o que dermos na nossa coleta, a seguir, é para Partilhar com quem realmente precisa. Nunca a mão esquerda saberá o que a mão direita dá!

Grupo da Partilha Fraterna, 6 de Dezembro de 2015

Esperança

Voices of Hope - Arab Spring

Voices of Hope – Arab Spring

A fé do povo bíblico assentou, nos seus princípios, na luz que lhe vinha do passado, guardado na Lei e na Tradição. Resumia tudo numa conhecida expressão: “o Deus de nossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob” (2 Cr 20,6; Esd 7,27, etc.), esse Deus autor das maravilhas operadas na História do seu passado, tempo ao longo do qual IAVÉ — esse Deus tinha nome — se foi revelando. Isto dito de outra maneira, na história bíblica anterior aos profetas, Israel regia-se pelos parâmetros do antigamente.

Foi Isaías quem começou a mudar-lhe a perspetiva: voltou-se para o Futuro. As necessidades e as urgências do Presente começaram então a perceber-se à luz do Futuro e não do Passado, do tempo em que emergiriam os novos céus e uma nova terra. O Passado não mais seria lembrado, mas sim a alegria e a felicidade do que Deus haveria de criar (Is 65, 17/18). Começou a falar-se do Reino de um Messias que haveria de nascer. Por isso – gritava Isaías –,

“Não torneis a recordar os factos de outrora, nem volteis a pensar nas coisas do passado. Olhai! Vou fazer algo de novo: já começa a aparecer, não vedes? Eu vou abrir um caminho no deserto e fazer correr rios na estepe. Os animais selvagens, os chacais e as avestruzes hão de glorificar-me, porque eu hei de fazer brotar água no deserto e rios na terra árida, para dar de beber ao meu povo, o meu povo eleito, o povo que eu formei e que há de proclamar os meus louvores” (Is 43,19-21).

Esta nova perspetiva introduzida na História da Salvação, passados alguns milénios, continua a custar à Igreja muito sacrifício, tanta dor e tamanha renúncia. Mas, exatamente por isso é que “o cristão não pode portar-se como os que não têm esperança; porque a salvação é a esperança em ação, a paixão do Possível. E o cristão é um profeta do Sentido. A Fé que eu mais amo é a Esperança” – disse um dia o Bispo do Porto António Ferreira Gomes.

Por tudo isso, na liturgia cristã como que se redimensiona o tempo. “Já e muito” é o que hoje interessa na civilização envolvente. Não é assim para o cristão: o presente constrói-se não a pôr de lado o passado, mas a edificar e antecipar o futuro. Por isso, a Liturgia é, como repetidamente disse o Vaticano II, ponto de chegada e ponto de partida, cume e fonte de toda a vida da Igreja. É esta palavra que deixo hoje, no início deste Advento e deste ano pastoral. Não renegamos nada do nosso passado, nada esquecemos dele. Nem o melhor nem o pior.

Mas não vamos mais recordar os factos de outrora, como não vamos mais deixar-nos manietar pelas coisas do passado. Vamos fazer algo de novo, hoje como ontem, mas agora diferente, “que já começa a aparecer, não vedes?”. Vamos correr os riscos do Futuro, porque não estamos amarrados a moldes estafados. De pés assentes nesta terra, e amando-a, vamos inspirar-nos na realidade do Reino para que caminhamos. Sem perdermos de vista nenhum dos irmãos, vamos deixar “que os mortos enterrem seus mortos” pois que “quem olha para trás depois de deitar a mão ao arado não é apto para o Reino de Deus” (Lc 9,60-62). Assim Deus nos ajude e nós dêmos as mãos!

Arlindo de Magalhães, 29 de Novembro de 2015

Os Novíssimos

Rothko, nº5/nº22 (1950), Museu de Arte Moderna, Nova Iorque

Rothko, nº5/nº22 (1950), Museu de Arte Moderna, Nova Iorque

Que me lembre, fui anestesiado três vezes. E em cada uma senti como que uma morte: e se não acordo da anestesia? Ou seja: que há do lado de lá da vida? Tudo o que é devedor do tempo e da matéria, a própria vida, chega necessariamente ao fim. Isto não é uma crença religiosa, um princípio filosófico ou uma regra sociológica. Isto é uma lei da biologia, da física e da química. Mas: acaba aí tudo? ou, como oramos, com a morte, a vida não acaba, transforma-se?

Esta época do ano litúrgico aproxima-nos exatamente dos fins. A teologia medieval tentou a síntese da questão com quatro palavras a que chamou os Novíssimos: Morte, Juízo, Inferno, Paraíso. Porquê novíssimos? Voltamos à etimologia. Novíssimo é o superlativo de novo. Novo quer dizer recente, original ou não usado. Recente quer dizer coisa acabada de chegar (pode dizer-se que em 1995 o telelé era um aparelho recente, também original; quem estaria à espera de meter o telefone, até então pousado lá em casa, no bolso das calças?), ou não usada (eu tenho uns sapatos novos, novíssimos até, último modelo!). No Dicionário da Academia, novíssimo > “que é muito novo”.

Neste sentido, o superlativo novissimus, em latim, quer dizer o último. Assim, numa corrida, há o primeiro a chegar e há o novissimus, o último, o que fecha a meta; atrás dele, só o carro vassoura. Qualquer dicionário de latim, aponta novissimus > o último a chegar. É neste sentido que o Livro de Ben Sirá (7,36) diz que In omnibus operibus tuis memorare novissima tua [em todas as tuas obras, lembra-te dos teus fins] (novissima). Por isso, lembra-te hoje do teu amanhã, ou melhor, do teu fim. Nós, os cristãos, temos na mão a chave da questão, que é Cristo, e acreditamos que, com ele e como ele, ressuscitaremos da tenebrosa morte que nos perturba a existência. (aqui um silêncio diante dos mortos de Paris)

Acabámos todos por gostar mais da suave palavra novíssima, que S. Jerónimo utilizou quando, entre os anos 391 e 406, traduziu a Bíblia do grego para o latim. Com ela se passou a referir os fins do homem. Novissimæ são as coisas últimas. Às coisas novíssimas contrapõem-se as velhíssimas (Estrada Nova – Estrada Velha; Ponte Nova – Ponte Velha; Albergaria-a-Nova – Albergaria-a-Velha, etc.). No âmbito dos fins, velhíssimos eram — na escatologia pagã — o rio Letes, a barca de Caronte e a moeda que se metia na boca do cadáver para a pagar, Hermes e o Hades, o Estige e o Cerbero, etc., etc., toda essa cangada com que o paganismo tentava imaginar o Depois. A todas estas velhíssimas lendas contrapuseram os cristãos os novíssimos — morte, juízo, inferno, paraíso — referidos por uma das mais belas palavras do dicionário da fé: novo > novíssimo.

Os cristãos, no entanto, também se deixaram tomar do grande medo que tantas vezes contagiou a Europa: o muro dos Muçulmanos, que nunca se construiu porque nunca se fixou, andou sempre acima e abaixo, tal como aconteceria, mais tarde, com o de Constantinopla, derrubado em 1453 pelos mesmos árabes. Estes muros — o da China, o de Adriano, na Britânia, as cortinas de ferro ou de bambu, o muro de Berlim ou o da Palestina-sempre-a-aumentar, os muros espalhados agora pelos países do eixo Grécia/Turquia – Alemanha — geraram sempre ondas e tempos de terror e de tremor.

À luz do que testemunhava e via, a Europa cristã enchia-se sempre de perturbação e temores, abarrotando templos onde se multiplicavam penitências, a imaginar os fins dos tempos e a exemplo do tempo que vivia. Os evangelistas, por exemplo, nos chamados discursos escatológicos que puseram na boca de Jesus, imaginaram o fim do tempo, individual e planetário, como misto de um desastre natural e de perdição individual de muitos ou de quase todos: o sol se obscurecerá e a lua perderá o brilho, as estrelas começarão a cair do céu e as forças que há nos céus serão abaladas – dizia Marcos (13,24), na semana passada. Mas Lucas é muito mais assustador na linguagem que utiliza: não ficará pedra sobre pedra (19,44), haverá na terra angústia entre os povos, bramido e agitação no  mar, os homens morrerão de pavor, as forças celestes serão abaladas, etc. (21,20-28).

Contagiados pelo Grande Medo, trocámos os Novíssimos — como Leão XIII, poderíamos falar de Coisas Novas — por sustos de condenação e de morte face ao futuro do Universo e aos horizontes gloriosos da vida. Durante muitos séculos, entendemos o tempo novíssimo e quanto ele carrega à letra, como desastre e castigo, dies irae, dies illa! (dia de ira, aquele dia!) em que apareceremos diante do rex tremendae maiestatis (do Rei, tremendo, de majestade), Quantus tremor est futurus! (que tremor o desse dia futuro!). É impossível ler estes versos medievais de uma sequência poética, tão trabalhados pelos compositores do classicismo-romântico dos séculos XVIII e XIX, Mozart à frente!

Quão diferente é isto daquela palavra de Jesus: Vou preparar-vos um lugar. Quando o houver preparado, voltarei de novo a levar-vos para junto de mim, a fim de que, para onde eu vou, vades vós também. E para onde eu vou, vós sabeis o caminho (Jo 14,3).

Arlindo de Magalhães, 22 de Novembro de 2015

Episkopos

Synaxis_of_the_Twelve_Apostles_by_Constantinople_master_(early_14th_c.,_Pushkin_museum)

Apesar da afirmação apodítica (isto é, evidente e incontestável) do Concílio Vaticano II — “Este sagrado Concílio, seguindo os passos do Concílio Vaticano I, com ele ensina e declara que Jesus Cristo, pastor eterno, edificou a Igreja, tendo enviado os Apóstolos como ele fora enviado pelo Pai; e quis que os sucessores deles, os Bispos, fossem pastores na sua Igreja, até ao fim dos tempos” (LG 18) —, apesar desta afirmação apodítica do Vaticano II que acabei de ler, não se sabe hoje como tudo aconteceu. Que os diáconai (os servidores) apareceram em Jerusalém, dizem-no os Atos dos Apóstolos (At 6,1-7); os presbíteroi  (idosos) emergiram, como era costume na cultura judaica, de baixo para cima, isto é, nasceram da comunidade e na comunidade para serem a cabeça das comunidades (nas sociedades primitivas, eram os idosos que assumiam os lugares cimeiros); mas com os epíscopoi (da palavra grega epíscopos > inspetor, vigilante, que em português deu o substantivo bispo ou o adjetivo episcopal) não sabemos como foi.

Os bispos aparecem já citados por Paulo (nos At [20,28], nas Cartas aos Filipenses [1,1], a Timóteo [5,17] e a Tito [1,5], e nas de Tiago [5,14] e 1Pedro [2,25]). Alguma(s) vez(es), porém, as palavras presbítero e epíscopo tanto querem dizer uma coisa como outra. Mas não se sabe ao certo como nasceu toda esta nomenclatura.

A palavra epíscopo utilizava-se já no tempo apostólico e entendia-se em relação com os Doze apóstolos (Mt 10,1; Mc 3,13; Lc 6,12; Jo 1,40 e At 1,13) que Jesus reunira. Estes Doze (Matias entretanto substituíra Judas, At 1,15) eram servidores do cristianismo nascente, nomeadamente em três campos: ensinavam a Boa Nova de Jesus a todos, celebravam os sacramentos e cuidavam que se levassem a sério os mandamentos do Senhor. Todos eles constituíam um “todo” a que se deu o nome de Colégio Apostólico.

E quando os Doze morreram? Claro que o ministério entregue aos Apóstolos não podia terminar com a sua morte. E, embora no Novo Testamento apareça uma grande diversidade de ministérios, entre os quais o do epíscopo, sabemos que só nos finais do século II e começos do III os epíscopos, com Santo Ireneu (130-202), começaram a ser entendidos como os sucessores dos Apóstolos. E por aqui ficamos em termos de história.

O Vaticano II, resumindo toda a grande tradição teológica, reafirmaria que, assim como o colégio dos Doze tinha Pedro à cabeça, os bispos, todos os bispos, tinham de estar também diretamente ligados ao bispo de Roma, a cabeça da Igreja. Esta doutrina foi fundamentalmente a causa da maior parte das fraturas da Igreja de Jesus: por isso temos hoje a igreja romana ou católica, a ortodoxa, a luterana, a anglicana, e um etc. muito grande.

Mas não só. Mesmo na Igreja Católica entendeu-se que o Papa era o Pastor supremo, “o representante de Deus na terra”, tantas vezes ouvi isto!, de tal maneira que…, e os bispos locais eram simples mandatários do Bispo de Roma.

Esta teoria, sim, pô-la o Vaticano II de lado. O papa é a cabeça do colégio episcopal e em união com ele devem estar todos os bispos. Mas o colégio episcopal é um fator de equilíbrio entre as igrejas locais e o muitas vezes ou quase sempre excessivo centralismo romano. Não assim. O bispo local recebeu sacramentalmente graça para ser pastor de uma diocese, de uma igreja local, e por isso mesmo não é um simples delegado do bispo de Roma.

“Cada um dos Bispos que estão à frente de igrejas particulares, desempenha a ação pastoral sobre a porção do Povo de Deus a ele confiada, não sobre as outras igrejas nem sobre a Igreja universal. Porém, enquanto membros do colégio episcopal e legítimos sucessores dos Apóstolos, estão obrigados, … à solicitude sobre toda a Igreja, a qual, embora não se exerça por um ato de jurisdição, concorre, contudo, grandemente para o bem da Igreja universal” (LG 23).

Por sua vez, o bispo não é uma cabeça pura e simples, mandador e decisor exclusivo: tem de estar em ligação com a cabeça que é o bispo de Roma e, embora na sua Igreja local, em comunhão com os demais bispos. Sempre houve concílios na Igreja; e o Vaticano II criou também Sínodos universais. Em cada diocese o mesmo Concílio recomendou se criassem Conselhos, o presbiteral e o pastoral. Tudo na busca de uma igreja dialogante e sinodal.

Que vem o Bispo da Igreja local do Porto — chama-se diocese — fazer a uma das suas muitas unidades pastorais, à Serra do Pilar? Vem ver-nos, visitar-nos, conhecer-nos, conversar e estar connosco… Ele tem muito interesse em contactar com uma unidade pastoral não paroquial, a Comunidade da Serra do Pilar, na construção da unidade da Igreja local ou diocese do Porto.

Jeremias

Voltamos aos profetas: no domigo passado foi Isaías, o 2º, agora Jeremias. Gritam os leitores do futuro: “Levanta-te, Jerusalém”.

Jeremias dizia o que via: Olho a terra, é um caos informe. Olho o céu, está sem luz. Os montes tremem, as colinas estremecem. Homens não há; as aves fugiram do céu. A terra fértil é agora um deserto. As povoações foram arrasadas pelo Senhor, pelo incêndio da sua cólera! (4,23-26). Ouvem-se gritos de pavor, de terror e não de paz (30,5). De terras longínquas vem-nos o inimigo lançar gritos de terror contra as cidades de Judá. Ao ouvirem a cavalaria e a infantaria, os habitantes fogem (4,16.29). Ouço um grito, parece de uma mulher a dar à luz; é o grito angustiado de Sião (4,31).

Porquê assim?

Agora é Deus que fala. O meu povo esqueceu-me (18.15). Abandonou-me (2,13). Dia e noite, os meus olhos desfazem-se em lágrimas; o meu povo tem uma grande ferida mas é uma chaga que não tem cura (14,17). Abandonou-me, a mim que sou uma fonte de água viva, e preferiu construir cisternas rotas que não conseguem reter as águas (2,13). Quem se compadecerá de ti, Jerusalém? Quem, no seu caminho, vai agora fazer um desvio, pequeno que seja, para te vir perguntar como estás? Abandonaste-me e voltaste-me as costas! (15,5).

Aqui mesmo surge o profeta e a sua missão.

O Senhor enviou-me a profetizar contra este templo e esta sociedade (26,12). Emendai a vossa conduta e as vossas acções, e eu – o Senhor – habitarei convosco neste lugar; mas não vos iludais com razões falsas dizendo “o templo do Senhor, o templo do Senhor, o templo do Senhor”. Se emendardes conduta e acções, se julgardes os pleitos com rectidão, se não explorardes nem o imigrante, nem o órfão nem a viúva, se não derramardes sangue inocente neste lugar, se não seguirdes – para vosso mal – deuses estrangeiros, então eu habitarei para sempre no meio de vós neste lugar, na terra que dei a vossos pais, nos tempos antigos e para sempre (7,1-8).

Deste modo, o profeta extirpava falsas seguranças e ilusões, religiosa e politicamente equivocadas. Todo o seu ministério profético foi uma luta aberta e declarada contra qualquer forma de falsidade. Mas Jeremias fecundava sobretudo o seu povo anunciando-lhe um futuro de graça e de novidade.

Vou reunir-vos de todas as terras para onde, no furor da minha ira e no fundo da minha indignação, vos exilei. Conduzir-vos-ei a este lugar, para que, aqui, habiteis em segurança. Sereis o meu povo e eu o vosso Deus. Dar-vos-ei um coração puro e uma conduta íntegra. Respeitar-me-eis toda a vossa vida, para vosso bem e bem dos filhos que vos hão-de suceder. Farei convosco uma aliança eterna e não me cansarei de vos abençoar. Ajudar-vos-ei a respeitar-me, a que não vos separeis de mim. Terei alegria em fazer-vos bem. Instalar-vos-ei de verdade nesta terra, com todo o meu coração e toda a minha alma.! (32,37.44).

No fundo, o que revolvia as entranhas e o peito do Profeta (8,8) era a consciência do amor de Deus pelo seu povo. Diante do fracasso que lhe parecia ser a sua pregação e perante as ameaças de morte que lhe faziam os poderosos que o queriam calar, o profeta até tentou retirar-se. Mas não conseguiu. Pelo contrário; ele que foi um dos maiores profetas de Israel fez das fraquezas forças:

Ai daquele que constrói a sua casa sobre a injustiça e os seus aposentos com iniquidade! Ai daquele que obriga o seu próximo a trabalhar sem lhe pagar o salário! Ai daquele que diz: Vou mandar construir um grande palácio, salões espaçosos, com rasgadas janelas e tectos de cedro pintados de vermelho! Pensas que és rei só porque podes comprar cedro? Mas repara: o teu pai comia e bebia – e muito bem! – mas também praticava a justiça e o direito e partilhava do seu com os pobres e os indigentes. E isso é que é conhecer-me! Palavra do Senhor! Mas tu, pelo contrário, só tens olhos e coração para o lucro, para derramar sangue inocente, abusando e oprimindo (22,1-4.13-17).

Vamos denunciá-lo, vamos desfazê-lo e assim nos vingaremos dele (20,10) – ameaçava a multidão. Este homem merece a morte porque profetizou contra esta cidade, como ouvistes todos (26,22) – diziam os sacerdotes do templo de Jerusalém. Os que eram meus amigos espiam agora os meus passos (20.10) – lamentava-se o profeta.

Perante isto, a oração do profeta foi assim: Tu, Senhor, que sabes tudo, lembra-te de mim, ampara-me e vinga-me dos que me perseguem; que eu não seja apanhado por eles (15.15); Escuta o que dizem os meus adversários. Abriram uma cova para me tirarem a vida. Lembra-te de que me apresentei diante de ti a interceder por eles, a afastar deles a tua cólera (18,19-20); Seduziste-me, Senhor, e eu deixei. Dominaste-me e venceste. Mas agora eu sou objecto de contínua chacota, toda a gente escarnece de mim. Sempre que falo é para dizer Violência!, Opressão! A tua Palavra tornou-se para mim motivo de insultos e escárnios, dia atrás de dia … Mas eu sei, Senhor, que estás comigo como poderoso guerreiro (20,7-18).

Olho a terra, é um caos informe. Olho o céu, está sem luz. Os montes tremem, as colinas estremecem. Homens não há; as aves fugiram do céu. A terra fértil é agora um deserto. As povoações foram arrasadas pelo Senhor, pelo incêndio da sua cólera! (4,23-26). Ouvem-se gritos de pavor, de terror e não de paz

Nos tempos que vivemos, para além dos Profetas temos os Sinais dos Tempos que nos falam não apenas nem necessariamente de Deus, mas também do Homem e das suas esperanças – que “a glória de Deus é o Homem vivo” (Stº Ireneu, séc. II) -, sinais positivos e negativos do Homem e da Humanidade, sinais da presença e da ausência de Deus.

No fim do ano litúrgico, estamos quase nele, a Liturgia vai-se chegando caladamente à questão do fim ou dos fins, da escatologia (de éscaton, palavra grega que quer dizer fim): um pouco como o frio do Outono chega caladamente no fim do Verão.

A Liturgia vai-se chegando caladamente à questão do fim ou dos fins, dizia. Depois virá o Advento, o tempo litúrgico que nos espicaça a Esperança, aguça a perspectiva e ajuda a saborear a Vida, rumo ao Reino de Deus. “Per visibilia ad invisibilia” (Rm 12,20), dizia Paulo aos Romanos, é através das coisas visíveis que chegamos às invisíveis:

“Os bens da dignidade, da comunhão fraterna e da liberdade, frutos da natureza e do nosso trabalho, depois de … difundidos na terra, no Espírito do Senhor e segundo o seu mandamento, voltaremos de novo a encontrá-los, mas então purificados de toda a mancha, iluminados e transfigurados, quando Cristo entregar ao Pai o reino eterno e universal, “reino de verdade e de vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz”, Reino que está já misteriosamente presente, mas que atingirá a perfeição quando o Senhor vier” (GS, 39).

Mas, atenção: “o reino de Cristo não é deste mundo. A Igreja, ao implantar este reino, não subtrai coisa alguma ao bem temporal de nenhum povo, mas, pelo contrário, fomenta e assume as qualidades, as riquezas, os costumes e o modo de ser dos povos, na medida em que são bons” (LG 13).

Arlindo de Magalhães, 25 de Outubro de 2015

(imagem: O Profeta Jeremias, de Marc Chagall)

O Servo de Iavé

Habituamo-nos a ouvir “o Profeta Isaías” no “Livro do Profeta Isaías”. Só que, nos finais do séc. XVIIII, começou a perceber-se que o livro dito do Profeta Isaías tem 3 autores diferentes (não é preciso ser perito para distinguir um texto de Gil Vicente de um outro de Aquilino Ribeiro ou até de Saramago). Houve, portanto, três Isaías: o primeiro terá nascido pelo ano 760 aC; o segundo não sabemos, mas era vivo a quando das duas deportações do povo judaico para a Babilónia, anos 597 e 586; do 3º não se sabe nada.

O textinho hoje lido é do 2º. Viveu — disse — no tempo das deportações para a Babilónia, o monstro político e militar do Médio Oriente daquele tempo. Arrasada a cidade de Jerusalém, a cidade e o Templo, o Povo havia sido despedaçado: as mulheres violadas, os velhos e as crianças assassinados e os homens adultos desterrados para a Babilónia ou escravizados — alguns poucos — na sua própria terra. Povo e terra sem futuro, derrota política, militar e religiosa, o Templo destruído, etc.

Mas o profeta — homem que lê ou percebe o futuro que se não vê —começa a falar de um tempo em que Iavé virá libertar o seu povo; há-de mesmo regressar à sua Terra. É Iavé que domina a História e não Nabuconodosor: “Ouvi, gentes de Jacob, vós que vos orgulhais do nome Israel e invocais o Deus de Israel, … saí da Babilónia!, fugi da Caldeia! Anunciai esta notícia com gritos de alegria, espalhai-a até ao fim do mundo” (48,1-2.20). E diz depois o 2º Isaías que chegará “o servo do Senhor” a trazer esperança ao povo.

Quem é este “Servo do Senhor”?

Quis o Senhor carregar o seu servo com sofrimento, de modo que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. Aceitando essa pena, o servo, o justo, verá a luz e alegrar-se-á com a provação vivida».

Acabámos de ouvir um pouco do 4º “cântico do servo” (o 2º Isaías escreveu 4 “cânticos do servo”: cap 42-48; 49-50,3; 50,4-52,12 e 52,13-55): Quis o Senhor carregar o seu servo com sofrimento, de modo que a sua vida fosse um sacrifício de reparação. (…) ele, o justo, justificará muitos, pois que carregou os seus pecados. A Liturgia de 6ª feira Maior utiliza este texto como 1º Leitura da celebração da Paixão. O Servo de Iavé seria o Messias então já anunciado:

«Desprezado e repelido pelos homens, homem de dores, acostumado ao sofrimento, era como aquele de quem se desvia o rosto, pessoa desprezível e sem valor para nós. Ele suportou as nossas enfermidades e – 5 – tomou sobre si as nossas dores. Mas nós víamos nele um homem castigado, ferido por Deus e humilhado. Ele foi trespassado por causa das nossas culpas e esmagado por causa das nossas iniquidades. Caiu sobre ele o castigo que nos salva: pelas suas chagas fomos curados. Todos nós, como ovelhas, andávamos errantes, cada qual seguia o seu caminho. E o Senhor fez cair sobre ele as faltas de todos nós».

Até quase ao nosso tempo — dizia — pensou-se que este “Servo de Iavé” era o Messias prometido que havia de vir, servo esmagado pelo sofrimento que haveria de justificar a humanidade, tomando sobre si as suas iniquidades.

Mas não. Modernamente percebeu-se que nos poemas do Servo de Iavé se falava era do povo de Israel, destroçado pelo sofrimento causado pelo desterro para a Babilónia, um país estrangeiro, depois de perdida a independência. Os poemas do Servo de Iavé referiam-se, à comunidade do povo de Israel que, através do seu sofrimento, apesar dele e assumindo-o, se libertou do seu pecado, se converteu, e assim viu de novo abertas as portas do seu futuro. De facto, 70 anos depois do desterro para o exílio, o povo pôde voltar ao seu país, à sua terra.

Claro que, mesmo depois de retornado, o povo se viu de novo confrontado com outras situações de sofrimento, perseguido por aqueles a quem a Bíblia chama muitas vezes os ímpios, os maus, mas a quem, mesmo assim, continuava a ser prometida a salvação e a glória.

Com este domingo, começa a Liturgia a cheirar a futuro: «Exulta de alegria, estéril, tu que não tinhas filhos, entoa cantos de júbilo… É o Senhor quem o diz…!» (Is 54,1). «Levanta-te, Jerusalém! — gritará já o 3º Isaías (60,1) — Levanta-te! Eis a tua luz! A glória do Senhor se levanta sobre ti!”. Ainda não é o Natal! Esse ainda vem longe! Levanta-te e escuta o futuro, tenta avistar e descortinar o futuro. O que há-de vir é o que já-veio-e-vem-hoje, o mesmo. É o Advento que começa a desenhar-se.

O grupo catecumenal já reuniu e está de novo a caminhar.

Arlindo de Magalhães, 18 de Outubro de 2015

(imagem: Gernika, de Picasso)

Teresa de Ávila

Celebramos hoje o 5º centenário do nascimento de uma grande mulher, a “grande Santa Teresa”, que ocorreu em 1515, em Ávila, numa família de alta burguesia, com raízes judias (nascida em 28 de março de 1515, morreria em 1582, justamente no dia que as nações católicas do mundo passavam do calendário juliano para o nosso, atual, o gregoriano; para tal foi necessário eliminar, no ano de 1582, do calendário os dias 5 a 14 de outubro; assim sendo, pelo novo calendário gregoriano, o nosso, Teresa de Ávila morreu a 15 de outubro, dia em que a Liturgia lhe faz a memória. Nós celebramo-la hoje, grande mulher que foi, por ser o domingo mais próximo do 15 de outubro. Já agora, uma outra explicação: o calendário antigo dizia-se juliano pois que tinha sido implantado pelo romano Júlio César, no ano 46 aC, e o novo calendário, o gregoriano, promulgado pelo Papa Gregório XIII).

Celebramos hoje, portanto, o nascimento da “grande Santa Teresa”: “Ter pais virtuosos e que levem Deus a sério me bastaria se eu não fosse tão ruim; foi o que Deus me deu para ser boa”! Assim começa Teresa o seu Livro da Vida, uma espécie de autobiografia.

Nessa altura, já se gritava por toda a Europa a necessidade de uma reforma na Igreja a levar a cabo de cima a baixo, já Lutero, o grande reformador tinha 32 anos, ainda não se pedia um Concílio, é verdade, que metesse a Igreja nos trilhos, mas o de Trento não tardava muito, começaria em 1545, 30 anos depois do nascimento de Teresa. Em 1536, com 21 anos de idade, tinha ela entrado no convento carmelita da Encarnação, em Ávila.

Os conventos daquele tempo, não só os espanhóis, viviam tempos muito maus: para além de tudo o mais, lutas internas e intensas entre os fratres > frades > freires e freiras ditos conventuais (que, ao tempo, viviam, quase todos, no desleixo e abandono da Regra dos seus fundadores) e os observantes (que desejavam regressar à vida ascética dos inícios).

Teresa entra nesta luta: possuía uma extraordinária energia recriadora mas também uma humildade heroica. Digamos que, acabada de entrar na vida conventual, logo percebeu que seria inadiável a reforma.

Apesar da sua pequenez, viria a tornar-se uma grande contemplativa através da oração mental — “a oração é o trato amoroso com Deus” — e entregar-se-ia à tarefa da reformação primeiro do seu convento e depois dos mais da sua ordem. Com S. João da Cruz (?-1591), um místico frade carmelita espanhol, ajudaria ainda a reformar a Ordem Carmelita masculina.

“A glória maior do século XVI dentro da história da Igreja católica, o que deu lugar e consistência à transformação intra-eclesial mais profunda, o que constituiu a força e o valor religioso do movimento da Contrarreforma foi o simultâneo florescimento da santidade por todos os lados”, concordam os historiadores modernos neste parágrafo de um deles, Lortz. Chamam ao século XVI/XVII o “século dos santos”: Francisco de Borja, Pedro Canísio, Luís Gonzaga, Estanislau Kostka, Pio V, Filipe de Neri, Carlos Borromeo, Tomás Moro, João da Cruz, Pedro de Alcântara, Teresa de Ávila, etc., etc., formam como que uma magnífica cadeia em que nenhum é igual a outro mas todos se caracterizam por uma soberana liberdade e por uma surpreendente e às vezes chocante originalidade. E todos eles, apesar de tudo, em radical união com o único Jesus e a única Igreja!

Não é este o lugar para percorrer a biografia de Teresa de Ávila… Quem algum dia pôde ou puder ver a escultura de Bernini, o maior escultor do século XVII, hoje na igreja de Santa Maria da Vitória, em Roma, teve ou terá de perguntar-se a si próprio: quem foi esta mulher que viveu humilde, empreendedora, ativa, caminhante pelos conventos de Castela, dinâmica e mística ao mesmo tempo?

40 anos depois da sua morte, em 1622, foi canonizada e, em 1970, Paulo VI proclamou-a doutora da Igreja, para toda a Igreja. Doutora da Igreja tinha-a já declarado a Universidade de Salamanca aquando da sua canonização! Aqui, a palavra doutor ou doutora não tem nada a ver nem com canudos nem com Universidades. “Doutor/a da Igreja” é um membro da Igreja Católica, notável pela santidade da sua vida, ortodoxia doutrinal e ciência sagrada que, a par do consenso eclesial, é declarado pelo Papa como tal. São apenas 38 os doutores da Igreja, 4 dos quais mulheres (Teresa de Ávila, Catarina de Sena, Teresa de Lisieux e Hildegarda de Bingen).

Foi Teresa de Ávila uma grande escritora também: contemplava, organizava, corria por Castela, onde a Igreja estava moribunda…, e escrevia. Teresa é uma das maiores escritoras da Literatura espanhola: quem não conhece, lido ou cantado, o “Nada te turbe / nada te espante / … / Sólo Dios basta!”?

Vivo sem viver em mim / e tão alta vida espero, / que morro por não morrer.

Vivo já fora de mim / depois que morro de amor, / porque vivo no Senhor, / que me quis só para si. / Meu coração lhe ofereci / pondo nele este dizer: / Que morro por não morrer.

Esta divina prisão / de amor em que hoje vivo, / tornou Deus o meu cativo / e livre meu coração. / E causa em mim tal paixão, / Deus meu prisioneiro ver, / que morro por não morrer.

Ai, que longa é esta vida!, / que duros esses desterros!, / esta prisão, estes ferros / em que a alma está metida. / Só esperar a saída / causa em mim tanto sofrer, / que morro por não morrer.

Ai que vida tão amarga, / sem se gozar o Senhor!, / porque, se é doce o amor, / não é a esperança larga. / Tire-me Deus esta carga, / pesada a mais não poder, / que morro por não morrer.

Somente com a confiança / vivo de que hei-de morrer / porque, morrendo, o viver / me assegura minha esp´rança. / Oh morte que a vida alcança, / não tardes em me aparecer, / que morro por não morrer.

Olha que o amor é forte: / vida não sejas molesta; / pra ganhar-te só te resta / perder-te, sem que me importe. / Venha já a doce morte, / venha já ela a correr, / que morro por não morrer.

A vida no alto cativa, / que é vida verdadeira, / até qu’esta não nos queira, / não se goza estando viva. / Não me sejas, morte, esquiva, / só p’la morte hei-de viver, / que morro por não morrer.

Como, vida, presenteá-lo, / o meu Deus que vive em mim, / se não perdendo-te a ti, / p’ra melhor poder gozá-lo? / Quero, morrendo, alcançá-lo, / pois só dele é meu querer: / que morro por não morrer.

Arlindo de Magalhães, 11 de Outubro de 2015

Uma fé crítica

«Vós, os ricos, prestai-me atenção. […] Levastes na terra uma vida regalada e libertina, enchestes a barriga para o dia da matança! Condenastes e assassinastes o justo, que não pôde resistir!».

Antes do Fórum de Davos que todos os anos se celebra em janeiro, na Suíça, a Organização Humanitária Oxfam publicou um relatório segundo o qual o fosso entre pobres e ricos está a aumentar. Em 2016, 49,27% da riqueza mundial estará nas mãos de apenas 1% da população mundial. Mas o referido 1% mais rico tem visto a sua riqueza aumentar: era de 44% em 2009 mas subiu em 2014 para 48%. E as projeções da Oxfam preveem que, em 2016, repito, aumente para cerca de 50%; no ano 2020, andará já à volta de 54,50%.

O diretor executivo da Oxfam, Winnie Byanyima, presente na conferência de Davos, disse ali que “a explosão da desigualdade está a atrasar a luta contra a pobreza no mundo, numa altura em que uma em cada nove pessoas não tem o suficiente para comer e mais de mil milhões de pessoas ainda vivem com menos de 1,25 dólares (pouco mais de um euro) por dia”. E perguntava: “Queremos mesmo viver num mundo onde 1% da população tem mais do que todo o resto? A escala da desigualdade mundial é assombrosa”, comentou (Público, 2015.01.20).

A esta realidade contraponhamos o papa Francisco na Evangelii gaudium (191 e 192): «Os cristãos são chamados, em todo o lugar e circunstância, a ouvir o clamor dos pobres, como bem se expressaram os Bispos do Brasil: “Desejamos assumir, a cada dia, as alegrias e esperanças, as angústias e tristezas do povo brasileiro, especialmente das populações das periferias urbanas e das zonas rurais – sem terra, sem teto, sem pão, sem saúde – lesadas em seus direitos. Vendo a sua miséria, ouvindo os seus clamores e conhecendo o seu sofrimento, escandaliza-nos o fato de saber que existe alimento suficiente para todos e que a fome se deve à má repartição dos bens e da renda. O problema se agrava com a prática generalizada do desperdício”.

Mas queremos ainda mais, o nosso sonho voa mais alto. Não se fala apenas de garantir a comida ou um decoroso «sustento» para todos, mas ‘prosperidade e civilização em seus múltiplos aspetos’. Isto engloba educação, acesso aos cuidados de saúde e especialmente trabalho, porque, no trabalho livre, criativo, participativo e solidário, o ser humano exprime e engrandece a dignidade da sua vida. O salário justo permite o acesso adequado aos outros bens que estão destinados ao uso comum.»

São enormes os problemas que se deparam em todo o mundo, a nível da consciência individual e das políticas nacionais e globais. De um lado, as questões do desenvolvimento, da pobreza e da exclusão social, da educação, do aumento da criminalidade, da rutura dos laços familiares, da transformação do papel da mulher, da revolução levada a cabo pela tecnologia ao mundo do trabalho, da desafeição popular pela política a que se juntam os apelos por uma profunda reforma democrática, e ainda as múltiplas questões sobre o ambiente e a segurança que requerem ações concertadas a nível mundial.

Do outro, a necessidade de apoiar valores como a fraternidade (a que hoje se chama solidariedade) e a justiça social, e a urgência de abandonar quer a velha ideia de um Estado controlador, coletor de impostos pesados mas que defende os interesses ora dos cidadãos ora dos produtores, quer a de um Estado defensor de um individualismo egoísta na convicção de que os mercados livres são a solução para todos os problemas.

Nós, os cristãos, temos algumas coisas a ver com isto, ou isto é só com os profissionais da política e os técnicos da economia? A fé é só a aceitação de umas determinadas verdades (Creio em Deus, Pai todo poderoso…), dogmas e doutrinas, ou também uma forma de viver, a que nos ensinou Jesus de Nazaré na trajetória de toda a sua vida? A fé não está nos livros, nos papéis, nos documentos, nas doutrinas, mas nas pessoas, isto é, na vida. Somos seguidores de Jesus ou seguimos acriticamente a mentalidade única do sistema de pensamento único?

Hoje fala-se das “estruturas de pecado” de que nenhum indivíduo é responsável, embora com elas todos tenhamos a ver. Eu dou um exemplo: em Portugal, conduz-se pessimamente. Toda a gente que algum dia fez meia dúzia de quilómetros em Espanha ou em França sabe. De quem é a culpa? De tudo e sobretudo de todos, até de mim, que por vezes tenho de fazer coisas que não faço lá fora, senão não saio do sítio.

É por isso que há uma grande relação entre conversão individual e mudança de estruturas: “A originalidade da mensagem cristã não consiste diretamente em afirmar a necessidade da mudança de estruturas mas na insistência na conversão do homem que exige essa mudança. Não teremos um continente novo sem novas e renovadas estruturas; mas, sobretudo, não haverá um continente novo sem homens novos que à luz do Evangelho saibam ser livres e responsáveis” (Medellín, 1969; Justiça, 3).

Um dia, no já longínquo ano de 1654, num célebre Sermão de Santo António aos peixes, pregado na cidade de São Luís do Maranhão, o Padre António Vieira dizia assim:

«A primeira coisa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, se­não que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário era menos mal. Se os pequenos comessem os grandes, bastava um grande para muitos pequenos; mas como são os grandes que comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo Agostinho: “Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como peixes que se comem uns aos outros”. Tão alheia cousa é não só da razão, mas da mesma natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer. Santo Agostinho, que pregava aos homens, para encarecer e fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos peixes, para que ve­jais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não; não é isso que vos digo. Vós virais os olhos para o mato e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros, (mas) muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas: vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer, como se hão de comer.»

Mas a verdade é que cada um de nós tem de se perguntar em que medida é que, com ações ou omissões, contribui para estabelecer, manter ou acrescentar estas estruturas de pecado.

Arlindo de Magalhães, 27 de Setembro de 2015

(imagem: Dieter Pregizer/Fotolia/via SNPC)

Injustiça inaceitável

paraisopolis2008-700

Paraisopolis, São Paulo

O fruto da justiça semeia-se na paz, para aqueles que a praticam. De onde vêm as guerras? De onde procedem os conflitos entre vós?” (Tiago, 2ª Leitura de hoje).

Embora exista já desde 1995, tem-se afirmado ultimamente de maneira especial uma Organização Humanitária – Oxfam (Oxford Committee for Famine Relief (Comité de Oxford de Combate à Fome) – que atua em 100 países (não em Portugal), na busca de soluções para o problema da pobreza e da injustiça através de campanhas, programas de desenvolvimento e ajudas de emergência. Esteve na origem desta Organização, embora tenha morrido antes da sua fundação, um presbítero anglicano, Theodore Richard Milford (1896-1987). O objetivo inicial da Oxfam foi o de convencer o governo britânico a permitir a remessa de alimentos às populações famintas da Grécia, então ocupada pelos nazis e submetida a um bloqueio naval levado a cabo pelos aliados.

Claro que evoluiu na sua atividade a Organização, que, ultimamente, se tem preocupado com a onda de pobreza que assola a Europa: sem papas na língua, afirma que é preciso “cicatrizar as feridas” da perda de postos de trabalho e corte de salários em vários países, como Portugal.

A Europa está a registar, em 2015, níveis “inaceitáveis” de desigualdade, com um quarto da população da União Europeia a viver em risco de pobreza e de exclusão social, indica um estudo apresentado em Madrid pela Oxfam há menos de 15 dias, no passado dia 9 deste mês. O documento — Europa para a maioria, não para as elites — afirma que um total de 123 milhões de pessoas do espaço comunitário vivem atualmente em risco de pobreza, enquanto 342 cidadãos europeus são considerados bilionários.

(Faço uma paragem para explicar que um bilionário não é um milionário. Bilionário é uma pessoa com um património líquido de, pelo menos, um bilião (1.000.000.000.000), não de um milhão (1.000.000) de uma qualquer moeda, dólar, euro ou libra, por exemplo).

O estudo da Oxfam fala, e bem, numa “injustiça inaceitável”: “Este diagnóstico está correto: os níveis de pobreza e de desigualdade na Europa, agravados pela crise económica e pelas medidas de austeridade, são inaceitáveis”; “É hora de se adotarem medidas à escala europeia com o objetivo de promover a recuperação do investimento e do emprego, bem como para cicatrizar as feridas abertas pela perda em massa de postos de trabalho, pela redução dos salários reais e pelos cortes nos serviços públicos, especialmente em países como Grécia, Espanha e Portugal, mas também em toda a Europa”.

Em 2013, cerca de 50 milhões de pessoas na UE não conseguiam satisfazer as suas necessidades materiais básicas, o que representou um aumento de 7,5 milhões de pessoas em relação aos valores de 2009. Este cenário atingia então 19 dos 28 Estados-membros, incluindo Portugal, Espanha, Grécia, Irlanda e Itália.

Nesse mesmo período, o número de bilionários aumentou de 145 para 222, e continuou a crescer até hoje, para os 342.

A desigualdade económica e de concentração de receitas nas mãos de alguns ricos varia consoante o país. A Bulgária e a Grécia registam os piores resultados em quase todos os indicadores analisados para determinar o risco de pobreza. A Grécia apresenta uma das diferenças mais amplas entre as receitas das classes mais ricas e das classes mais pobres, bem como regista uma elevada taxa de desemprego. O Reino Unido tem o nível mais elevado de desigualdade salarial.

Enquanto isto, os países mais igualitários da UE são a Eslováquia, Malta, a República Checa e a Eslovénia. Os valores mais altos de pobreza verificam-se na Roménia e na Grécia, mas estão a aumentar noutros países, um deles é a Alemanha. A diferença salarial por género também continua e são as mulheres na Alemanha, Áustria e República Checa aquelas que sofrem alguns dos valores mais altos de disparidade salarial face aos homens.

O documento denuncia ainda a “excessiva influência” que exercem as grandes empresas, as grandes fortunas e alguns grupos de interesse no seio da UE.

“O fruto da justiça semeia-se na paz para aqueles que a praticam”. “De onde vêm as guerras? De onde procedem os conflitos entre vós?” (Tiago, 2ª Leitura de hoje). “Vós, os ricos, prestai-me atenção. Levastes na terra uma vida regalada e libertina, enchestes a barriga para o dia da matança! Condenastes e assassinastes o justo, que não pôde resistir!” (Tg 5,1), diz ainda a Carta de Tiago.

Para a semana voltamos.

Arlindo de Magalhães, 20 de Setembro de 2015

(Para conhecer melhor o trabalho da Oxfam, visite https://www.oxfam.org ).

A Fracção do Pão e a Comunidade

Interior da Igreja de S. Pedro, Antioquia (séc. XII)

Interior da Igreja de S. Pedro, Antioquia (séc. XII)

Fim de férias, continuamos à espera que o Bispo do Porto venha à Serra do Pilar, “logo que possa!”, está praticamente no fim o quadragésimo ano da Serra do Pilar, pensa-se numa Assembleia da Comunidade um pouco mais à frente, Assembleia em que se reverão e enriquecerão as Bases da Comunidade. De que se trata?

Quando, há 40 anos, aqui cheguei, resolvi começar o trabalho pastoral pela celebração dominical. Na Serra havia muitas missas, ao domingo e à semana: muitas missas, poucos fiéis e muito dinheiro a girar. 15 dias depois de haver começado, introduzi alguma ordem nessa questão, escrevi-o até num papel que coloquei ali em baixo, à entrada, e assim se começou a caminhar. Logo depois veio a questão da catequese das crianças…

Com o cristianismo primeiro aconteceu rigorosamente o mesmo. No início, era assim: “sempre que dois ou três se reunirem em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20) e “fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19). E depois tudo se complicou conforme os lugares e as pessoas: Jerusalém era Jerusalém, mas Antioquia era muito diferente de Jerusalém (At 11,20). De qualquer modo, rapidamente se passou a escrito não como se havia de fazer, mas o que se fazia: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para partir o pão…” (At 20,7) …

No princípio, não havia nem leis canónicas nem documentos, os cristãos reuniam-se em casa uns dos outros e não em templos, ensinavam os que chegavam, corrigiam-se uns aos outros e entoavam hinos, salmos e cânticos espirituais (Cl 3,16), não havia ainda nem lecionários nem missais… Não havia ainda bispos, só diáconos e 12 apóstolos; e, quando era necessário, um idoso (isto é, um presbítero) assumia a presidência, e pronto!, estava tudo bem, às vezes os escolhidos eram chatos, gostavam de falar – o Livro dos Atos conta que Paulo era um desses: “começou a falar, a falar, prolongou a sua pregação até à meia-noite, alongou-se no seu sermão…” (At 20,7-9).

E foi por esta porta que entraram as leis, os costumes, o Direito, etc., etc. De início, não eram necessárias essas coisas, mas, quando chegaram os segundos, tiveram de as introduzir. O pior foi que, depois, as leis e etc. passaram a ser mais importantes que o espírito que animava os primeiros.

Não só na Igreja foi assim. Na Serra do Pilar também: para introduzir o espírito dos primeiros, foi necessário apelar não só à Escritura, mas também às leis, varrer o pó e — como dizia João XXIII — abrir as janelas para entrar ar fresco.

E, algum tempo depois, em 1976, com a criação do Conselho da Comunidade, passou-se ao papel o que se lhe pedia e como devia funcionar: ao texto conseguido deu-se o nome de Bases do Conselho da Comunidade. Durante 40 anos, esse texto original foi diversas vezes aprofundado e enriquecido, tanto que, de Bases do Conselho da Comunidade passou a Bases da Comunidade: que Comunidade é esta? e que papel tem o Conselho na Comunidade? Não é uma regra de vida este documento: é a reflexão de uma Comunidade de cristãos sobre si própria, comunidade que tem riquezas e pobrezas.

Pensámos que, no 40º ano da sua vida, a Comunidade podia e precisaria de voltar ao texto — Bases da Comunidade — em que se não mexe desde 2002. Ele tem, digamos, duas partes: a primeira, de ordem teológico-pastoral; a segunda, de ordem prática. É sobretudo esta segunda que precisa de uma remodelação.

Está finalmente impresso um livro que recolhe as homilias do ano 2002/2003 — eu prometi em 2002 que assim se faria, mas o dinheiro não deixou que tivesse sido mais cedo —, e um sábado à tarde poderíamos apresentá-lo à comunidade juntamente com o novo texto das Bases. O texto refletido votar-se-á depois em Assembleia da Comunidade — “O Espírito Santo e nós resolveremos” (At 15,28) — a convocar lá para finais de novembro ou já no Advento.

Arlindo de Magalhães, 13 de Setembro de 2015

Surdos-Mudos

No Antigo Testamento, julgava-se que os males de que o homem sofria eram um castigo de Deus pelos pecados que cometia.

Tanto as desgraças individuais (doenças, ruína económica, morte violenta, etc.) como as coletivas (fome, epidemias, etc.) eram consideradas como sinal de que Deus tinha virado as costas ao seu povo. Ao contrário, quando uma desgraça se convertia em alegria, quando se superava um desastre, quando a escravidão ou a opressão conhecia a liberdade…, então os acontecimentos entendiam-se como sinais de que Deus perdoara e estava de novo de acordo com o seu povo.

Segundo esta mentalidade, quando o profeta Isaías anunciou que o povo exilado na Babilónia ia alcançar a libertação, Deus volta a aproximar-se do seu povo e proclama que “os olhos dos cegos, tal como os ouvidos dos surdos, se abrirão, o coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35, 4-7).

No Evangelho, a surdez é ainda entendida como consequência do pecado, mas não do pecado pessoal; consequência do pecado social. Isto é: as doenças que aparecem nos Evangelhos representam os males que os homens sofrem por culpa de uma sociedade injusta, organizada contra o plano de Deus. A surdez é um desses males.

Deus teria escolhido Israel para realizar um ensaio exemplar, tirando o povo da escravidão e dando-lhe normas de convivência. Se as cumprissem, não voltariam a reproduzir-se na sociedade as relações de opressão que tinham sofrido no Egito. A missão de Israel era mostrar que era possível a convivência humana pondo como base a justiça e oferecer depois esta prática, já treinada, como ideal para toda a humanidade. Mas os grandes de Israel foram-se corrompendo e, segundo o testemunho dos profetas, começaram a explorar o povo, distraindo-o dos seus verdadeiros problemas, alimentando o seu orgulho: “Somos o povo eleito por Deus, o mais importante da terra, Deus está connosco, mas só connooosco…!”.

E o povo acreditou. Surdo, verdadeiramente surdo, o povo não escutava a verdade dita pelos enviados de Iavé, os profetas.

Desta surdez sofria o povo do tempo de Jesus, representado neste texto de Mateus por um surdo-mudo. Por isso não receberam o que Jesus dizia: que todos os homens são iguais, independentemente da sua raça, das suas tradições religiosas ou de qualquer outra separação que os homens, ao longo da história, estabeleceram entre si. Não perceberam que o mais importante é que eram todos filhos de Deus. A surdez dos discípulos era, naquele tempo, provocada pelo nacionalismo excludente de Israel. Para eles, era mais importante serem israelitas que pessoas humanas. Não perceberam que o Reino de Deus que Jesus anunciava era para todos os homens, não aceitavam que Deus não era património exclusivo da sua nação, não entendiam que Deus — o verdadeiro Deus de Israel, Iavé — era o Pai de todos os homens.

Nos Evangelhos, como em Isaías, as curas e a saúde das pessoas anunciavam o começo de uma libertação mais profunda para todo o povo e para toda a humanidade. A cura do surdo-mudo significava que os discípulos de Jesus tinham ouvidos para ouvir uma Boa Notícia e língua para a anunciar a todos os homens, porque todos somos iguais diante de Deus.

Mas há surdos no nosso mundo e – o que é talvez mais doloroso – surdos que se dizem cristãos. São eles os que não compreenderam ainda que a cor da pele não divide, que levantar muralhas e cortinas de ferro ou de cimento armado não resolve problema nenhum, que dividir uma sociedade em ricos e pobres, cultos e incultos, cristãos ou muçulmanos, empregados e desempregados, etc., etc., é uma loucura total. O racismo, legalizado ou não, que existe ainda em muitos lugares do planeta, a começar pela periferia das maiores cidades do nosso país, é consequência de um mundo injusto em que a pessoa humana não é o principal valor.

Jesus abriu os ouvidos de muitos anunciando que a humanidade tem uma meta, histórica e meta-histórica, a fraternidade, e um caminho para a alcançar, a luta pela libertação.

Não só com o que se passa na Europa mediterrânica mas também no nosso meio, eu próprio sou surdo, mudo e surdo-mudo.

Arlindo de Magalhães, 6 de Setembro de 2015

(foto:  VALDRIN XHEMAJ/Lusa)

Ponto de chegada e de partida

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Lembro-me perfeitamente, não irá há muitos anos. A senhora chegou, veio falar comigo não sei de quê nem o quê. Mas passado um momento disse-me: —Eu sou católica. Mas há uma coisa que eu não aceito: dizerem que se come e bebe a carne e o sangue de Jesus. Isso não aceito! Eu não sou antropófaga! Eu fiquei a olhar para ela.

No rescaldo da multiplicação dos pães que aconteceu no “outro lado do Mar da Galileia ou de Tiberíades” há já quase um mês – não veio no jornal, mas no Evangelho de João –, chegamos agora à questão não já do pão-pão, do que mata a fome e simboliza mesmo o trabalho do homem (“comerás o pão com o suor do teu rosto”, Gn 3,19), mas do pão da Eucaristia: símbolo > realidade.

O Concílio Vaticano II falou repetidamente dele – deste pão – ou dela – da Eucaristia -, dizendo que é a fonte e o cume da vida da Igreja, o ponto de chegada e de partida de toda a vida cristã: a Eucaristia é “fonte e centro  de toda a vida cristã…” (LG 11,1) e cume de toda a evangelização» (PO 5), etc., etc. Não será preciso explicar muito mais pois que, na vida desta comunidade, o experimentamos: pouco de devoções e de missas, tudo pela Eucaristia dominical, quanto nos custa prepará-la e quanto dela decorre!

Desde o princípio que, na comemoração semanal da ressurreição que criou o dia do Senhor, as comunidades cristãs celebravam a Eucaristia no primeiro dia da semana: “No primeiro dia da semana, estando nós reunidos para partir o pão…”, conta Lucas nos Actos (20,7) que assim era em Tróade.

Os cristãos, irmãos que eram, constituíam uma igreja de “pedras vivas” (1 Pd 2,5): “vós sois o corpo de Cristo e cada um é um membro” (1 Cor 12,27). Corpo vivo precisa de comida: “Fazei isto em memória de mim!”

Esta acumulação de símbolos — pão e vinho, comer e beber, corpo e membros, corpo de Cristo e igreja de pedras vivas, partir o pão (a fracção do pão) e, “quando vos reunis para comer a ceia do Senhor… enquanto um passa fome e outro fica c’os copos” (1 Cor 11,20-21) — se, por um lado, como diz o Vaticano II, tudo isto constitui a fonte e o cume da vida da Igreja, por outro, rapidamente esta prática inicial se foi.

A celebração pascal semanal passou a ser uma devoção diária: os monges passaram a ser todos ou quase todos presbíteros e a missa multiplicou-se, sobretudo a partir do momento em que ela e dinheiro ou espórtula se juntaram. E dos mosteiros a prática passou aos conventos, daí às paróquias e capelas, havia muitos padres e todos tinham de viver; o último estádio desta evolução, vergonhosa e ainda vigente, é já do nosso tempo: foi a de juntar intenções, 20 ou 30 que seja, na mesma missa, assim rende mais e não dá tanto trabalho.

Em quase todos os lados a missa continua a ser diária e a horas várias, deixou de ser celebração para ser devoção, missas não preparadas, missas por tudo e por nada, mas quase sempre por alma de e nunca pela sua vida. Apesar da valorização que, há 50 anos, o Vaticano II deu à Eucaristia chamada missa, ela voltou a ser anónima, formalista, não exprime nem celebra qualquer tipo de emoção, tecnicamente uma vergonha…

A juntar a tudo isto, a falta de presbíteros e a enormidade de tarefas que se carregam sobre um só (já há párocos com nove paróquias!).

O resultado é paradoxal: onde há fome de Eucaristia não há possibilidade de a encontrar (cada vez mais, no interior do país, há comunidades sem Eucaristia dominical ou em que os cristãos têm de calcorrear distâncias enormes e em que o Sr. padre está sempre com pressa pois tem de acorrer à paróquia seguinte). Entretanto, nos grandes centros urbanos, apesar da maior oferta celebrativa, a situação é outra: o “fim de semana”, as saídas, o desporto, as idas à terra, as festas, os condicionalismos impostos pelo comércio liberal, nada disto rima com o antigo domingo convocado pelo campanário, a boca é de Frei Bento Domingues. E, no entanto, em Portugal, não há nenhuma instituição cívica, cultural, política ou religiosa, o Benfica ou o FCP, o Sindicato que seja, que reúna, regularmente, tanta gente como a Igreja Católica. As estatísticas, no entanto, indicam que a participação na Eucaristia dominical está em queda.

A juntar a tudo isto e em pleno mês de Agosto, a disfunção atrás referida acentua-se: com tanta gente fora dos seus lugares de habitação, os cristãos não encontram resposta de acolhimento nos lugares para onde se deslocam. É frequente ouvir: “Não fui à missa porque no lugar aonde vou a coisa é tão má que o melhor é não ir”. Este é um problema prioritário da Igreja em Portugal. A torto e a direito, ouve-se falar em evangelização, ano da fé, procissões e outras coisas mais e semelhantes, sem saberem o que se está a dizer, a alegria do Evangelhos, por exemplo, as periferias; mas a questão da Eucaristia é, no tempo que corre, prioritária. A que é preciso acudir. Sob pena de estarmos, uns, a falar sem que haja quem escute e a simbolizar sem quem leia o símbolo; e a maior parte, a não ter com quem celebre e mesmo quem presida.

Arlindo de Magalhães, 16 de Agosto de 2015

(Imagem: A Ceifa do Trigo, Évora: foto retirada daqui).

O Pão da Vida

EM JEITO DE HOMILIA – REFLEXÃO SOBRE O EVANGELHO DE S:JOÃO (Jo 6,41-51)

Sinto em mim um grande vazio,
Tão grande, do tamanho de Deus.
Nem o Amazonas que é dos rios o rio
Pode enchê-lo com os afluentes seus.

Tento, intento e de novo tento
Sanar esta chaga que me mata.
Quem pode, qual é o portento
Que estanca esta veia ou a ata ?

Pode o finito conter o Infinito
Sem ficar louco ou adoecer ?
Não pode. Por isso eu grito
Contra esse morrer sem morrer.
Implode o Infinito no finito!
O vazio é Deus no meu ser.

(Leonardo Boff)

Quando Jesus declara “Eu sou o Pão da Vida”, afirma que é o verdadeiro pão que desce do céu, da parte de Deus Pai, capaz de saciar a fome de toda a humanidade, fome essa que não é de comida mas de Deus. Como ouvimos no domingo passado, a multidão havia pedido a Jesus: “Senhor, dá-nos sempre desse pão”. Mas Jesus surpreende todos “Eu sou o Pão que desceu do Céu”. Esta afirmação escandalizou os judeus a quem se dirige. Como aceitar esta afirmação de Jesus ? Conhecem os seus pais e seus irmãos, como pode Ele afirmar que vem de Deus ? Para eles a sua origem humana é incompatível com a sua qualidade divina.

Mas Jesus é o ponto de encontro entre o humano e o divino. Jesus repete de forma cada vez mais aberta que vem de Deus para oferecer a todos um alimento que gera vida eterna. Jesus vai direto às suas dúvidas e incredulidades “Não murmureis. Ninguém pode vir a mim se o meu Pai, que me enviou, o não atrair”. A atração para Jesus é Deus quem a produz. Por isso temos de escutar a voz de Deus em nosso coração e deixarmo-nos seduzir por Jesus. “Todo aquele que acredita tem a vida eterna. Eu sou o Pão da Vida. Eu sou o Pão vivo descido do céu. Quem comer deste Pão viverá eternamente. O Pão que vos hei-de dar é a minha carne para a vida”.

Este Pão sustenta a fé e a esperança, alimenta a confiança no Pai e confere um sentido mais profundo à vida humana, porque o pão material alimenta o corpo mas não nos livra da morte, ao contrário é o pão espiritual que nos restitui a uma vida eterna. Vida eterna não significa, necessária e unicamente, uma vida de duração ilimitada ou vida para além da morte. Trata-se de uma vida vivida em profundidade e qualidade nova, uma vida plena, que vai para além de nós próprios, mas que começa aqui e agora, na nossa vida concreta e no dia a dia.

Para os cristãos, a eucaristia é o memorial da doação plena de Jesus. Comer a sua carne e beber o seu sangue estabelece uma união inseparável com Jesus, é a assimilação de Jesus na sua totalidade, aceitá-lo como dom do Pai e dar-se como dom de vida para a humanidade. Sejamos, pois, capazes de descobrir em Jesus o único pão que alimenta o nosso espírito e nos dá força para caminhar. É a fé que nos anima, que dá sentido à vida. Jesus não ensina fórmulas nem doutrinas, mas revela o modo de estar perante Deus, o modo de estar perante os outros, o modo de viver no mundo. Jesus é, assim, a resposta às esperanças e necessidades do ser humano.

Fernando Moreira, 9 de Agosto de 2014

Do Alimento

(João 6,24-35)

Irmãos:

1. Do que aqui se trata, é do nosso desejo: do desejo, do corpo, da necessidade, da saciedade… do pão e do alimento. Que haverá de mais essencial, de mais quotidiano, de mais importante para a nossa vida, do que o alimento? E, neste caso, de nada adianta afirmar que as nossas preocupações são outras, mais «superiores» ou «espirituais» do que o simples alimento… na verdade, o que determina (na maioria das vezes, inconscientemente), o nosso dia-a-dia, as nossas acções e comportamentos, as nossas relações, as nossas defesas, os nossos conflitos, é o saciar das nossas necessidades vitais: o alimento, os afectos, a necessidade de reconhecimento, de aceitação, o sentido do nosso trabalho, das nossas convicções… tudo o que nos é humano.

2. De nada adianta apontar o sentido do nosso «ser cristão» para algo que esteja de fora destas realidades vitais: podemos afirmar que ser cristão é uma questão ética, de compromisso social, de prática sacramental, de participação comunitária, de reforma da Igreja, do Concílio… a tentação de separar estes compromissos – afirmados pela nossa mente e pela nossa boca – do que realmente constitui o nosso pão, o nosso alimento, o nosso trabalho, o nosso corpo, as nossas relações, o nosso quotidiano… quando a multidão (e os discípulos!) perguntam a Jesus: «como devemos trabalhar na Obra de Deus?», Jesus não responde com uma ética, um compromisso social ou eclesial; Jesus responde: «Acreditai naquele que o Pai enviou».

3. E aqui regressamos a um encontro pessoal, com Aquele que é o Alimento. É esta a linguagem do Pai-Nosso, quando diz: «Dá-nos o nosso pão de cada dia»; ou da Eucaristia, quando o Senhor diz, partindo o pão: «Este é o meu Corpo». Trata-se de uma transformação, de uma personalização das realidades vitais de cada um de nós; o membro de um casal transforma-se, humaniza-se, dia após dia, através do amor (do amor, do perdão, da súplica, do choro, da ternura) que o seu parceiro lhe tem. A pessoa é progressivamente transformada, no sentido da humanização, quando o encontro consigo mesma e com o seu dia-a-dia se dá numa lógica de aceitação, de perdão, de silêncio, de contemplação do outro. Naturalmente, o «pão» que nos é diariamente oferecido vai noutro sentido: o consumo plastificado, o excesso de informação alarmista (com a sua espiral absurda de comentaristas), a ‘lei da selva’ no mundo do trabalho, os canais e redes de entretenimento estúpido…

4. Há o risco de ler a recente encíclica de Francisco numa chave moralista, de compromisso ético ou moral, como algo exterior a nós (risco comum à leitura do próprio Evangelho). O «Cuidado da Casa Comum» é o cuidado pela nossa vida, unida aos irmãos e à natureza como uma Videira (João 15,1-8). As perguntas são dirigidas a cada um de nós, e eu calo-me na hora de dar uma resposta:

«Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária. Quando nos interrogamos acerca do mundo que queremos deixar, referimo-nos sobretudo à sua orientação geral, ao seu sentido, aos seus valores. Se não pulsa nelas esta pergunta de fundo, não creio que as nossas preocupações ecológicas possam alcançar efeitos importantes. Mas, se esta pergunta é posta com coragem, leva-nos inexoravelmente a outras questões muito directas: com que finalidade passamos por este mundo? Para que viemos a esta vida? Para que trabalhamos e lutamos?» (n. 160)

5. Há um Pão que nos é oferecido: Ele é de Graça, Ele é Graça. Que a nossa vontade de trabalhar na Obra de Deus não nos afaste d’Ele, dos nossos irmãos, de nós próprios. Afinal, será Ele o nosso Alimento. Que o nosso desejo por Ele nunca se perca nem diminua.

Rui Pedro Vasconcelos, 2 de Agosto de 2015

(imagem: mosaico bizantino da Igreja  da Multiplicação dos Pães e dos Peixes,  Tagbha, noroeste do mar da Galileia)

A visita dos irmãos

Os primeiros cristãos viajavam muito. Veja-se só o apóstolo Paulo que correu todo o Mediterrâneo oriental e chegou depois a Roma! E de Israel a Roma é o dobro da distância do Porto a Roma! E naquele tempo não havia nem aviões, nem comboios, nem automóveis.

Paulo quis até vir à nossa Península Ibérica (Rm 15,24)! Mas não conseguiu.

Os cristãos visitavam-se naquele tempo. João, o Evangelista, diz assim na sua 3ª Carta: “Alegrei-me muito com a chegada dos irmãos…” (v. 3).

Eu faço minhas as palavras dele: “Alegro-me muito com a chegada dos irmãos …” de Fonte Arcada. Ainda tinha (tenho) nos ouvidos aquela melodia que me encantou numa manhã de um domingo cheio de sol… Já vai lá 1 ano.

Penso que os cristãos deviam visitar-se, conhecer-se, enriquecer-se até com o que os irmãos têm de bom. Na Igreja primitiva, as comunidades tinham sempre preparada a logística necessária para acolher os irmãos que passavam. Os que chegavam, munidos de “cartas de recomendação” assinadas pelos seus epíscopos, apresentavam-se nas comunidades por onde passavam e eram atendidos com o cuidado que lhes mereceria o próprio Jesus. Foi assim que “dar pousada aos peregrinos” — e esta palavra era muito alargada: tanto referia os peregrinos religiosos como os simples viandantes) — foi assim que “dar pousada aos peregrinos” entrou no rol das obras de misericórdia, ao lado, por exemplo, de “Dar de comer a quem tem fome”. “Bela coisa é a hospitalidade!”, dizia S. Gregório de Nazianzo, bispo do séc. IV.

Na primeira metade do séc. VI, S. Bento, talvez o santo de maior devoção no Minho, escreveu assim na regra dos beneditinos: “Todos os hóspedes que cheguem ao mosteiro sejam recebidos como se fossem o próprio Cristo, e de modo que ele pudesse voltar a dizer “era peregrino e acolheste-me” (Mt 25,36).

Tudo isto vinha de trás, muito de trás, dos primeiros tempos cristãos, da própria boca de Jesus e dos primeiros escritos. Didaké, palavra grega que quer dizer ensino, serviu de título a um texto certamente ainda do 1º século. Nesse livrinho, ensinava-se o viver cristão, regras importantes do viver cristão. A certa altura, diz assim: “Todo aquele que vier ao vosso encontro, seja acolhido em nome do Senhor. Se for viajante, ajudai-o quanto puderdes. Não permanecerá convosco mais que três dias. Se estiver mais que três dias, tenha um ofício, trabalhe e coma. Se não tem ofício, resolvei como vos parecer melhor; mas que não viva ocioso no meio de vós” (XII, 1-4).

Meus irmãos:

É verdade que neste nosso tempo, as comunidades cristãs parece que têm medo do diferente e não dão conta do fechado em que vivem. A riqueza do diferente e a pobreza do fechado!

Uma criança que viva fechada, sem referência aos pais, aos avós, a outras crianças, uma criança assim não cresce, não se forma. Mas não só uma criança; também um adulto, uma instituição, uma empresa, um país, mesmo uma cultura; sem criatividade, sem andar para a frente, não crescem, morrem. Uma comunidade cristã fechada, sem contacto com outras, que não se deixa interpelar nem interpela nada nem ninguém, não percebe a riqueza que existe ao lado. Como pode uma criança — palavra que quer dizer em criação, em crescimento — viver fechada num quarto? Como pode ela saltar, brincar com quem e com quê? E o idoso a mesma coisa: é um drama do nosso tempo não sabermos o que fazer a um idoso! Eu começo a perceber o que isso é!

Paulo, S. Paulo, carregou sobre si tudo isto: a pé e de barco, sozinho e acompanhado, adoeceu sem lá chegar, sofreu um naufrágio, esteve preso, trabalhava nos sítios onde passava e até na oficina da família que o recebia (At 18,3).

Que bom termos estado o ano passado naquela tão bela Igreja românica de Fonte Arcada, que foi de um mosteiro beneditino! Que bom estarmos hoje aqui nesta também bela igreja, que foi de um mosteiro agostinho ou crúzio!

Mas melhor que isso é estarmos nós, Fonte Arcada, Oliveira, Pepim e Serra do Pilar, a orar e a cantar,  a comer do mesmo pão à roda da mesma mesa. “A unidade é uma coisa deliciosa, a Fraternidade é uma beleza inefável! A Unidade entre os Irmãos é uma coisa deliciosa! Como é bom os irmãos viverem unidos e reunidos!” (Salmo 133). Melhor que o Salmista eu não sei dizer.

Arlindo de Magalhães, 19 de Julho de 2015

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[19.Julho.2015: Visita das comunidades de Fonte Arcada, Oliveira e Pepim à Serra do Pilar. Celebração da Eucaristia]

O Grupo dos 12

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia o pai, servia a ela,
e a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Duas quadras dum soneto de Camões.
Jacob, o último dos três grandes Patriarcas do Génesis: Abraão, Isaac e Jacob. Não vamos agora visitar esse texto maravilhoso…

Teve 13 filhos o Patriarca, 8 de Lia (um era Judá), com quem casaria, e 4 (entre os quais José) da serrana bela! Mas o seu preferido era José, o que foi vendido pelos irmãos para o Egito (Gn 37,12 ss), para onde iriam mais tarde seus irmãos e o próprio pai (Gn 46). Judá, um dos 13 filhos, opôs-se a esta decisão. Seja como for, a verdade é que ganhou uma certa primazia entre os irmãos; seu pai, já no leito da morte, dir-lhe-ia, na presença de todos os filhos: “o “cetro não te escapará… até que venha aquele a quem pertence o comando…” (Gn 49,10).

12 dos 13 filhos de Jacob originaram 12 tribos, cada um a sua. Uma tribo era um pequeno povo que tinha território, alguma organização e uma, digamos, tradição. Portanto, 12 dos 13 filhos de Jacob deram origem a 12 tribos, as 12 tribos de Israel (Levi não entrou nesta conta porque lhe coube o trabalho do Templo — os levitas — e respetivo serviço religioso). Aconteceu, porém, que, com a invasão assíria, as tribos desapareceram todas, menos a de Judá.

Do nome Judá nasceram os Judeus. Mas Jacob tinha outro nome. Chamar-se-ia também Israel, isto é, “lutador com Deus”. Em Penuel, ele lutaria, uma noite inteira, com algo ou alguém que começou por pensar que seria um homem mas que verificou depois ser um anjo ou mesmo o próprio Deus (Gn 32,25-33). Por isso, os seus descendentes passaram a chamar-se judeus ou israelitas.

O que pretendia Jesus quando se rodeou de um grupo de 12?
Antes de mais nada, todos viram naquele grupo um símbolo real e vivo das 12 tribos de Israel, os 12 ramos do povo que entroncava em Abraão, Isaac e Jacob. Este pequeno grupo de 12 discípulos que passou a acompanhar Jesus era o sinal do novo Israel, uma espécie de motor de arranque de um mundo novo através do qual o reino de Deus chegaria aos confins do mundo. Associados por Jesus à sua missão de anunciar a chegada de Deus ao mundo dos homens, a curar as pessoas e a atender aos mais frágeis e mais pobres, os Doze iam pôr em movimento a verdadeira restauração de Israel.

Ao verem passar 12+1 por aquelas aldeias da Galileia, levantava-se entre as gentes como que um sonho longamente acarinhado por muitos: o de verem Israel — que ao tempo tinha já sido dividido em dois reinos, o do Norte (a Samaria e a Galileia) e o do Sul (Judá) — absolutamente desfeito mas depois refeito e reunido num só reino. Os profetas tinham apontado nessa direção: Iavé levantará o seu estandarte diante das nações para juntar os exilados de Israel e reunir os dispersos de Judá dos quatro cantos da Terra (Is 11,12). Jesus, porém, apontava não uma restauração étnica ou política, mas uma presença libertadora de Deus, a começar pelos doentes, pelos marginalizados da sociedade do seu tempo e pelos pecadores.

Este procedimento – chamar discípulos – era prática corrente ao tempo. Muitos outros o faziam. Estranho era que Jesus tivesse escolhido gente tão rasca, tão do fundo da sociedade, e não gente culta e rica! E logo pescadores e camponeses pobres!

A verdadeira novidade estava no ambiente que se criava à roda de Jesus. A sua presença enchia tudo. O mais importante era ele, a sua vida, o mistério que dele decorria: ele acolhia, ele curava, ele perdoava, ele libertava de todo o mal, fosse ele qual fosse, doença ou vida escandalosa, marginalização ou pecado. O modo como falava de um Deus bom, pai de todos, amigo da vida, que devia ser feliz e não maldição ou castigo. Ouviam-no contar histórias da vida corrente, a tentar explicar como deveriam ser as relações dos homens entre si e com Deus. Já não era preciso matar bois nem pombas no templo, oferecendo-os assim, mortos, a Deus em sacrifício, o que alimentava um negócio infame dentro e fora da Casa de Deus, que enriquecia alguns ou muitos, sacerdotes, desde logo, e negociantes de gado!

Com ele, muitos iam aprendendo a entender a vida de outra maneira. Contrariamente ao que lhes ensinavam e obrigavam a fazer, ele deixava que os leprosos se aproximassem, tocava-lhes até como a gente toca um amigo ou um familiar. Iam também percebendo que, aqui e ali, se levantavam conflitos, nomeadamente com os fariseus e os conterrâneos, com as autoridades políticas ainda não; Roma o que queria era que não houvesse problemas e, enquanto isso, tudo bem. É verdade que à sua volta se ia juntando gente muito diferente e maltrapilha, mulheres de má nota, algumas. Mas ele ia dizendo a uns Vai em paz (Jo 14,27) e a outros Não temais (Mt 10,28; Jo 6,20; Jo 12,15). E tudo isto ia suscitando algo de indefinível, mas muito novo.

Para Jesus, aquele grupo era chamado a ser símbolo de uma coisa nova a que ele dava o nome – percebê-lo-iam mais tarde – de Reino de Deus (ou dos céus). Naquele grupo se começava a viver como Deus queria realmente. Tudo gente simples e pequena, grãos de mostarda (Mc 4,31), fermento (Mt 13,33) difícil de ver, mas que podia transformar aquela sociedade. E qualquer coisa, de facto, começava a acontecer.

Antes de mais nada, aquele grupo não se dobrava diante de ninguém, muito menos diante de César (Mt 22,21). Não pagavam impostos (Lc 23,2), porque não tinham nada de nada; não ligavam às leis do longínquo imperador, porque cumpriam era a vontade de Deus (Mc 3,35). Jesus não usava nem sinais nem palavras imperiais, contava era histórias da vida mais normal e corriqueira daquele tempo: a moeda perdida (Lc 15,8-19), a rede dos pescadores (Mt 13,47-50), a semente e a cizânia (Mt 13,24-30), a videira (Jo 15,1-8), etc. E falava-lhes num mandamento novo: Amai-vos uns aos outros…

Ah! E ainda outra coisa. Parece que eram uma gente alegre. Homens e mulheres tinham deixado tudo para o seguirem: falava-lhes de um “tesouro escondido” (Mt 13,44) e de uma “pérola preciosa” (Mt 13,45-46) que tinham descoberto. Mas era do Reino dos Céus que eles falavam, e do Reino dos Céus que, pouco a pouco, iam descobrindo. Com estas e com outras, não porque ele, o Senhor, lhes dissesse para fazerem assim ou assado, mas porque tinha sido assim que eles começaram a fazer, iam-se desprendendo daquelas leis malucas que há milénios oprimiam os judeus: um dia, era Sábado, estavam com fome, iam a passar ao lado de um campo, não sei se de trigo se de centeio, e toca de fazer uma coisa que era muito feia, proibidíssima, era Sábado!: apanharam umas espiguitas para comer (Mc 2,23-27). Não que fosse considerado um roubo. Não era! Não se podia era fazer aquilo ao Sábado, porque era Sábado! Imagine-se! Mas Jesus nem precisou de lhes explicar muito para eles perceberem que aquilo era uma estupidez!

Claro que tudo isto que eles iam descobrindo e vivendo era preciso sair a anunciá-lo e a contá-lo pelas aldeias em redor. Anunciar o Reino de Deus, partilhando com todos uma experiência que eles estavam a fazer e que lhes modificava as vidas por completo, ao mesmo tempo que espalhavam a paz junto de doentes e de marginalizados, gente que não podia já com o fardo da vida.

Que Deus era este que estava a surgir, a revelar-se, a dizer quem era? E quem era este homem que o anunciava e ensinava? Era um Deus contra Iavé, o Deus de Israel, ou era o próprio Deus, em pessoa e em forma humana, a dizer quem era?

Arlindo de Magalhães, 12 de Julho de 2015

Os dias de Jesus

A verdade é que só percebendo bem e até ao fundo a humanidade de Jesus se pode entender porquê e como é que ele é o salvador da Humanidade.


Logo no início do seu Evangelho, Marcos apresenta Jesus a pregar na Galileia, na sua terra, no meio de multidões: em Cafarnaúm, “todos o procuravam” (1,38), a “cidade inteira” (1,33), ”a multidão ia ao seu encontro” (2,13)! “Tanta gente” (2,2)! Resultado: “A sua fama logo se espalhou por toda a parte, em toda a região da Galileia” (1,28), e “todos se maravilhavam e glorificavam a Deus dizendo: «nunca vimos coisa assim»!” (Mc 2,12). Mas logo começaram os problemas.

Primeiro, da parte dos judeus: “os doutores da Lei que tinham descido de Jerusalém afirmavam: ele tem mas é Belzebu no corpo!” (Mc 3,22).

Eu explico. Jesus começou o seu ministério pela sua terra, pela Galileia. A Galileia era a região cimeira do Reino do Norte. Quando, depois de Salomão, o reino de Israel se dividiu em dois, o reino do Norte dividia-se em duas regiões: em cima, a Galileia; e a Sul, a Samaria. A Galileia fazia, portanto, fronteira com o mundo pagão, e foi por ele influenciada. Ao tempo de Jesus, era já um território bastante paganizado.

Fora aí, em Nazaré, terra donde não podia vir nada de jeito, que Jesus vivera com seus pais (Jo 1,46 e 7,52). Andava, pois, pela Galileia, lugar onde fez os primeiros milagres e deixou os primeiros ensinamentos compendiados naquele resumo: “Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: convertei-vos e acreditai no Evangelho” (Mc 1,15). Claro que tudo isto se soube ao longe. E, desde logo, na capital religiosa. Por isso, “os fariseus reuniram-se com os partidários de Herodes para deliberar como haviam de matar Jesus” (Mc 3,6). Mas ainda era cedo para o fazer.

Por isso, num segundo momento, resolveram enviar inspetores: a ver o que se passava! Foi então que “os doutores da lei, que haviam descido de Jerusalém, afirmaram: «Ele tem mas é Belzebu no corpo»”. Belzebu quer dizer, à letra: “Baal de m…” (Baal era o maior deus do panteão cananeu).

Estavam lançados os dados do conflito que o levariam à morte. O próprio Jesus, no fim da 1ª parte deste Evangelho de Marcos, dirá aos discípulos: “Acautelai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes” (8,15). Jesus tinha de morrer porque tudo se havia já precipitado nesse sentido.

Mas logo surgiram também dificuldades vindas de «os seus». «Os seus», isto é, «sua mãe e seus irmãos» (Mc 3,31), que andavam à procura dele porque tinham tido notícia de que ele andava pirado da cabeça. Vieram, muito naturalmente, repreendê-lo e dar-lhe bons conselhos. Aponta nesse sentido o facto de ele andar já metido com uns tipos no mínimo raros, pescadores, um deles devia ser um estoura-vergas, à letra, Filho do Trovão (é o nosso conhecido Tiago), gente com quem, ainda por cima, se sentava à mesa a comer (1,31; 2,16).

Tudo o que Jesus fazia por terras da Galileia levantou um certo burburinho, positiva e negativamente: uns maravilhavam-se (5,20), outros preocupavam-se. Entre eles, os familiares.

A certa altura, ele próprio, certamente já preocupado com o que se passava, “partiu dali e foi para a sua terra” (6,1). Pior ainda. Foi então que os conterrâneos e familiares entraram em rutura com ele. Sabemos como é a família! Os novos têm de seguir as passadas dos progenitores. Caso contrário…

E Jesus rompeu com a família. Os próprios Doze são o núcleo da uma nova comunidade reunida à sua volta. A história é velha. Já a Jeremias tinham apontado o mesmo: “Os teus próprios irmãos e a casa de teu pai, até eles te atraiçoaram. Até eles te criticam pelas costas”. Ao que o profeta acrescentara: “Deixei a minha família, abandonei a minha herança e entreguei a mãos inimigas o que de mais caro possuía no coração” (Jr 12,6/7).

Quando os velhos «filhos de Abraão» – isto é, os filhos de sangue – recusam, outros (filhos de Abraão) nascerão [até] das pedras (Lc 19,40).

É no seguimento de todo este processo que — quando Jesus foi à «sua terra» (6,1) — até os seus conterrâneos perguntaram ao vê-lo: “ «Não é ele o carpinteiro, o filho de Maria»? E ficaram perplexos a seu respeito” (6,3).

Seja como for, por isto se vai vendo como os dias de Jesus, com o que fazia e dizia, o iam conduzindo para um drama supremo, o da sua morte.

Temos hoje mais dificuldade em perceber a sua humanidade que a sua divindade? Apesar de tudo, creio que não. A sua divindade atrapalha-nos mais que a humanidade. Mas a verdade é que só percebendo bem e até ao fundo a sua humanidade se pode entender porquê e como é que ele é o salvador da Humanidade.

Arlindo de Magalhães, 5 de Julho de 2015

Memória

A Eucaristia é uma celebração de vivos: os cristãos que estão ainda vivos reúnem-se, ouvem a Palavra, professam a fé, partem o pão “em memória de mim”.


«No primeiro dia da semana, estávamos reunidos para partir o pão» (At 20,7). De facto — é Paulo que o diz — «eu recebi do Senhor o que vos transmiti: na noite em que foi entregue, o Senhor tomou o pão», pegou no cálice, e disse: «comendo este pão e bebendo este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que ele venha” (1 Cor 11,23-26)».

Aqui não há mortos nem, muito menos, dinheiro. Os primeiros cristãos reuniam-se para comerem o pão e beberem o vinho; o corpo de Jesus, a eclesía, reunia-se para celebrar a ressurreição do Senhor, cumprindo o que ele pedira: “Fazei isto — a fração do pão que se comia — em memória de mim”.

Depois…, depois veio o dinheiro, os trintários, os sétimos dias, a missa por nada e por tudo, onde é que o Sr. “bota missa”?, missa de manhã, missa à tarde, missa de noite… Os mortos entraram pela missa dentro e deram cabo dela!

A Eucaristia é uma celebração de vivos: os cristãos que estão ainda vivos reúnem-se, ouvem a Palavra, professam a fé, partem o pão “em memória de mim”, comem-no, e podem perfeitamente avivar a memória dos que partiram já e o comeram connosco, mas não a reduzirem a uma reza “pela alma” de…

É muito curioso! Sabemos todos que há três ciclos no calendário litúrgico da Igreja romana, anos A, B e C. Cada domingo tem um tema: multiplicando os 56 domingos anuais (+-) pelos 3 ciclos = 168. Nos 168 domingos (+-) dos três anos, só uma vez o tema é a morte: hoje exatamente, 13º do ciclo B.

Escolhi, portanto, este domingo para nós, os vivos desta Comunidade, na celebração dos seus 40 anos, recordarmos a memória dos nossos maiores, não de todos os que viveram entre nós mas dos que, entre nós, se tornaram maiores apesar da sua pequenez. Admito que possam ter passado alguns nomes; todo o tempo é tempo de completar esta lista.

Arlindo de Magalhães, 28 de Junho de 2015