Antecipação gratuita do Reino

Pavel Grishin, ‘A Última Ceia’, Museu Erarta, São Petersburgo (2010)

Este é o dia da intimidade cristã, o dia do que nos é mais essencial e querido. A Eucaristia é a fonte e o cume da vida da Igreja, como dizia o Vaticano II; e esta celebração é, para nós, o dia por excelência da Eucaristia. E nela carregamos o núcleo do que somos e acreditamos: o Mandamento Novo – amai-vos uns aos outros (Jo 15,12) – e o Serviço – como eu fiz, fazei vós também (Jo 13,15). Portanto, o Hino da Caridade (1 Cor 13). Todos nos reunimos à volta da mesa. Tudo isto carregamos simbolicamente nesta refeição familiar e particularmente festiva: pão, vinho e Cordeiro de Deus que tira o pecado do Mundo (Jo 1,29).

O que somos e acreditamos: nós, cada um de nós, e as comunidades que perfazemos ou integramos.

As comunidades cristãs são hoje muito cinzentas, parecem clonadas: as mesmas rezas, o mesmo caixão de costumes e hábitos, não se distinguem por nada, nem pelo melhor nem pelo pior, a não ser, quantas vezes, que estão roídas por ódios calados, mas reais! Já não dizem de nós os pagãos Vede como eles se amam (Tertuliano – Apologia, 39.7), já não merecemos, como no princípio, “a simpatia de todo o povo” (At 2,46), mas também já não nos perseguem, como a Estêvão ou a Tiago. Não incomodamos nada nem ninguém, não fazemos nada que eles também não façam: ainda vamos à missa ao domingo, onde quer que seja, mas não todos, alguns, cada vez menos.

Não era assim nos inícios: Jerusalém, quão diferente de Antioquia; Corinto, de Roma; Éfeso, de Filipos…

E é urgente que as comunidades tenham especificidades, tomem consciência delas, como coisa já adquirida e a adquirir, sejam não a multiplicação de um esquema esgotado, mas uma verdadeira resposta do Espírito de Deus a tempos e lugares irrepetíveis. É aí que cada batizado se santifica dia a dia nas condições, tarefas e circunstâncias da própria vida (LG 41).

Quando isto acontecer, quando cada comunidade tiver consciência da sua identidade, das suas capacidades e do que lhe pede o Espírito de Deus, em fidelidade às circunstâncias do tempo e do lugar em que vive, então, sim, o presbítero que a serve terá de respeitar-lhe a identidade e de a servir. Sabemos que, normalmente, não é isso que acontece.

Uma comunidade não cai do céu aos trambolhões, como a chuva. Uma comunidade é uma espécie de antecipação gratuita do Reino que há de vir. É Deus que, na sua graça, nos concede a existência temporal duma comunidade reunida à volta da sua Palavra e da Eucaristia. A existência de uma comunidade visível é uma graça (Bonhoeffer): Oh! Como é bom viverem os irmãos em unidade! (Sl 133,1).

Nem os presbíteros nem os bispos são a Igreja; muito menos a fazem. Quem faz a Igreja são os batizados, os amados de Deus (Rm 1,1), os eleitos de Deus (Tt 1,1) os santos (Rm 1,7; 1 Cor 1,2), os santificados em Cristo Jesus (1 Cor 1,2), os santos e fiéis (Ef 1,1; Cl 1,2), os irmãos em Cristo (Cl 1,1). Chamava-se-lhes também a ecclesía (reunião): a Igreja que está em Corinto… (2 Cor 1,1: 1 Ts 1,1; Ap 2 e 3) ou, genericamente, a igreja de Deus (2 Ts 1,1) e, mais concretamente ainda, a assembleia que se reúne em casa de [Áquila e Priscila] (1 Cor 16,19) ou em Casa de Cloé (1 Cor 1,11), ou simplesmente a Casa de Filémon (1) ou a Casa de César (Fp 4,22). Mai-las casas que tinham sala de cima. Só em Antioquia os discípulos passariam a ser chamados christiani (At 11,26). Estes, todos estes, são a Igreja, fazem a Igreja. O Vaticano II apenas explicitaria: “Reina igualdade entre todos [os batizados] quanto à dignidade e quanto à [capacidade de] atuação, comum a todos os fiéis, em favor da edificação do corpo de Cristo” (LG 32).

Dizem que não há padres. É verdade. Mas há batizados. E, se há batizados, pode ou tem de haver Igreja: “Sempre que dois ou três se reunirem em meu nome, estarei no meio deles” (Mt 18,20). Não há presbíteros? Mal menor! Não há batizados? …!

Arlindo de Magalhães, 18 de abril de 2019

Porquê e para quê?

Erik Ravelo, ‘Los Intocables’ (Mais informações aqui: https://artesemfronteiras.com/os-intocaveis-do-artista-erik-ravelo/)

Não há dúvida nenhuma: Jesus morreu violentamente. Assim o afirma a pregação primitiva, tanto na que se pode chamar uma versão histórica – esses judeus que mataram Jesus e os profetas (1 Ts 2,15) –, como numa outra, “mais teológica” – tendo sido entregue, segundo determinado desígnio e prévio conhecimento de Deus, vós o matastes cravando-o na cruz com mãos ímpias (At 2,23). No fim de contas, é isto que contam todos os Evangelhos: eles dão à paixão e morte de Jesus uma tal importância que cada um deles não é mais que a história da Paixão e da Ressurreição antecedida de uma introdução mais ou menos longa.

A morte violenta de Jesus obriga-nos a duas perguntas: Porque mataram Jesus? (pergunta histórica pelas causas da sua morte) e Porque morreu Jesus? (pergunta teológica pelo sentido da sua morte).

Jesus foi condenado à morte e morreu numa cruz, castigo de escravos e subversivos. Mas antes houve um processo, isto é, houve uma razão para a sua morte, não se tratou de uma pura arbitrariedade.

Há muito que Jesus entrara em conflito com os chefes religiosos. O evangelista Marcos fala nos sumos sacerdotes e todo o conselho que buscavam algum testemunho contra Jesus para o fazer morrer (14,55), e diz que eles chegaram à conclusão unânime de que devia morrer (14,64). Os membros da casta sacerdotal, irritados por ver que Jesus se erigia em reformador religioso, não hesitaram.

Mas não só isto. Nos evangelhos em geral, embora mais manifestamente em Lucas, há uma tendência clara em atribuir aos Judeus a maior fatia da responsabilidade pela morte de Jesus. No entanto, Jesus morreu crucificado como malfeitor político e com um tipo de morte que só o poder político (romano) podia sentenciar. A causa da sua condenação foi redigida em termos políticos: que se tinha feito passar por rei dos judeus!: Jesus de Nazaré, rei dos judeus (INRJ), mandou Pilatos escrever na cruz. É verdade que se tratava de uma acusação genérica – Encontrámos este homem a incitar o povo à revolta, proibindo o pagamento do imposto a César e dizendo-se Messias e Rei (Lc 23,2) – embora houvesse, por aqueles dias, um clima propício a este tipo de acusação: acontecera mesmo uma revolta em que se perpetrara um homicídio (Mc 15,7). Pilatos, não convencido da sua culpabilidade, ainda tentou negociar a sua libertação por troca com um condenado político, Barrabás, mas não conseguiu. É que os judeus tinham apresentado Jesus a Pilatos como politicamente perigoso e pregador subversivo. À volta desta acusação andavam episódios como o do tributo a César, o da ameaça da destruição do Templo e o da pretensão de ele próprio ser rei (Jo 18,37).

E quando Pilatos pôde ter começado a dar sintomas de não estar muito convencido destas argumentações, os judeus encostaram-no à parede: Se o soltas não és amigo de César; todo o que se faz rei está contra o imperador (Jo 19,12). Apertado por esta disjuntiva, foi então que Pilatos lhes entregou Jesus para ser crucificado (Mc 15,15).

Digamos que, de um ponto de vista legal, a condenação de Jesus não tem lógica nem justiça. Do ponto de vista religioso, ele era o mediador do Reino de Deus (e não do estado romano); Pilatos era o mediador do estado romano e de César (e não do reino de Deus). Afinal foi o que formularam os Judeus: ser amigo de Jesus ou de César, ser ou não rei e, portanto, enfrentar ou não a César.

Portanto, a morte de Jesus não é uma resolução de ordem estritamente política: há que escolher entre o Deus de Jesus ou o deus de Pilatos. A razão final pela qual Pilatos pôde mandar Jesus para a crucifixão, reconhecendo embora a sua inocência pessoal, é que o faz em nome de um outro deus, o imperador. Pode assim dizer-se que Jesus foi crucificado pelos romanos não só por razões táticas e por amor da tranquilidade e da ordem de Jerusalém, mas sobretudo em nome dos deuses do estado romano que asseguravam a pax romana. E se alguém se pergunta como é que um homem religioso como Jesus pode ser tão perigoso dentro de um império como o romano, a razão é que é a partir da religião que se atingem os fundamentos da sociedade da maneira mais radical. De facto – os judeus foram espertos! – Jesus era muito mais perigoso que Barrabás.

A morte de Jesus não foi, portanto, nem um erro judicial nem uma morte querida por Deus. Como podia o nosso Deus querer a morte de Jesus?

A morte de Jesus foi uma consequência da sua vida, da sua incarnação num anti-reino de morte. E se nada mais tivesse acontecido depois da sua morte, Jesus teria morrido como tantos outros que, apesar da sua luta pela causa da Vida, caíram já no esquecimento da multidão. Permaneceria sem dúvida, como em todos esses casos, a questão do porquê da morte de (mais) um justo e inocente, e, no fim de contas, do porquê, da razão, de toda a morte. E a resposta, para quem tem a ousadia de fazer perguntas destas, seria simplesmente: a História é assim.

Mas com Jesus não foi assim. Os discípulos afirmariam depois que ele estava vivo e em plenitude. E muitos poderão ter pensado que, depois da sua Ressurreição, não haveria já razão para nos perguntarmos porquê a morte de Jesus. Mas a questão é exatamente ao contrário: precisamente porque, depois da Ressurreição, o confessamos como Filho de Deus.

Mas antes disso, já um pagão, “o centurião”, o comandante de uma centúria de militares, tinha percebido que “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39)!

E era um pagão!

Arlindo de Magalhães, 7 de abril de 2019

Até à Cruz

“Crucifixion,” by Mikhail Gubin

Durante muitas gerações, deu-se à morte de Jesus uma explicação expiatória: ele morreu na cruz oferecendo-se a Deus como vítima em sacrifício. Deus exigia que lhe pagassem a ofensa que o homem lhe fizera com o seu pecado. Jesus prontificou-se a tal.

Em vez do pecador, morreu Jesus: sobre a sua cabeça se juntaram todos os pecados de toda a humanidade. Jesus entendia-se, portanto, como o preço de um resgate. Passou-se com ele o que os espanhóis encontraram os índios ocidentais a fazer: sacrifícios humanos. Portanto, Jesus morreu pelos nossos pecados.

Nesta teologia, profundamente influenciada pela mentalidade ético-jurídica do mundo romano (quem deve paga), que não levava sequer em linha de conta que os sacrifícios humanos estavam definitivamente superados desde pelo menos o episódio do filho de Abraão (Gn 22, 1-19), a vida de Jesus só tinha um sentido: ele nasceu e viveu para, morrendo na cruz, pagar a Deus uma dívida que lhe era devida pela humanidade. A uma ofensa infinita, um resgate infinito: como este não podia ser pago pelo homem, finito que é, veio a cá o filho de Deus a pagar a culpa! Nesta explicação, Jesus, enviado do Pai, restabeleceu a ordem alterada pelo pecado: a sua morte na cruz, que tem um valor de satisfação, expia e redime.

Mas esta teoria expiatória começou a ser contestada de muitos lados. A pergunta mais simples pode ter sido esta: Quem quis a morte de Jesus?, quem quis a cruz?, Deus?

A cruz, porém, é um produto da nossa história, não da cabeça de Deus. A crucifixão, é/era uma barbaridade: mas, ainda hoje se aplica. No caso de Jesus, a pena de morte aplicada por crucifixão foi, para além de tudo o mais, uma arbitrariedade do poder.

Mas o nosso Deus precisava de um crime do poder para repor a desordem instalada pelo pecado do homem? Não, sem qualquer dúvida, não: o nosso Deus salva o homem pelo seu amor que lhe tem e por mais nada.

É que a vida de Jesus não foi só a sua morte. E toda a sua vida foi redentora.

Que quer isto dizer? A morte de Jesus não é toda a sua vida; é sim o momento culminante da sua vida. Se Jesus tivesse vivido outra vida não teria tido a morte que teve. É verdade que morreu crucificado, um suplício infamante reservado especialmente a escravos e subversivos políticos, aos alteradores da ordem pública. Mas a sua morte foi o resultado da sua vida. Quem diz o que ele disse e faz o que ele fez, que pode esperar? É isto o que quer dizer que Jesus Cristo se entregou para voluntariamente sofrer a morte. Não que tivesse querido morrer: ele aceitou foi correr os riscos que a sua postura lhe acarretaria. Percebendo que, fazendo o que fez, poderia ser condenado à morte, mesmo assim, não hesitou e caminhou em frente.

A sua liberdade perante a Lei, a denúncia do formalismo da moral religiosa e do culto do Templo, a solidariedade com os pobres e pecadores, com os próprios marginais, desde o seu nascimento, os pastores, o anúncio de um Deus de rosto novo, a separação entre o que é de Deus e o que é de César, é tudo isto que explica a sua morte. Os seus principais responsáveis foram os detentores do poder religioso e político que, conluiados, o acusaram de blasfemo e subversivo. A morte de Jesus não é um sacrifício assumido por decisão inelutável de Deus. Longe disso: foi antes um acontecimento histórico que desclassificou a sua vida e a sua mensagem: Confiou em Deus, ele que o livre agora, se o ama (Mt 27,43); Salvou os outros, mas não pode salvar-se a si mesmo! …; Desça agora da cruz para nós vermos e acreditarmos (Mc 31-32).

Os próprios discípulos – que imediatamente se dispersaram e fugiram – viram a sua fé sumir-se. Mas curiosa e paradoxalmente, foi o centurião, isto é, o pagão romano, que exclamou Verdadeiramente este homem era filho de Deus (Mt 27,54 e Mc 15,39).

Um desastre absoluto, a morte na cruz? Parecia! A representação mais antiga que se conhece desta morte é um grafito romano: um burro pregado numa cruz!

Mas só com ela e por ela se entende a ressurreição, desautorização absoluta dessa morte-crime injusta e inexplicável.

Jesus não morreu para pagar os nossos pecados, tão pouco em vez dos pecadores, morreu, sim, por causa dos pecados dos homens, isto é, morreu por uma morte que os (pecados dos) homens causaram, tal como hoje se morre num ataque terrorista, como se morre na estrada, como morrem cada vez mais mulheres às mãos dos seus homens, ou no fim dos corredores da morte dos países que ainda não aboliram a pena de morte…

Mortos às mãos dos homens.

A morte de Jesus é a expressão culminante e a verificação incontestável de toda uma vida de amor solidário e entrega generosa à causa do Reino. Jesus salvou-nos não pela sua morte, mas por uma vida que culminou na cruz, vida que não era possível que ficasse sob a morte (At 2,24); por isso mesmo é que Deus o ressuscitou (At 2, 32), diz Pedro à multidão no dia de Pentecostes.

Vamos celebrar a Páscoa, esta morte e a ressurreição que se lhe seguiu?

Arlindo de Magalhães, 31 de março de 2019

Passagem

Barnett Newman, ‘black fire’ (1963)

Peço desculpa de quantas vezes repetir o mesmo: há coisas que são fundamentais e outras ridículas. Sabem porque é que o baixo clero meteu na cabeça do povo que em certas sextas-feiras não se pode comer carne? Repetirei para outra vez!

Agora. Antes de mais nada, a Igreja primitiva celebrou uma festa pascal semanal: foi o “primeiro dia da semana”, o “dia a seguir ao Sábado”, aquele em que Jesus ressuscitou, mais tarde chamado o domingo ou “dia do Senhor”, também “dia do sol” e “oitavo dia”. É clara a ressonância pascal de todas estas expressões referidas ao Senhor Jesus ressuscitado.

Como é que desta Páscoa semanal se passou à anual? Tratou-se de facto de um passo importante na Liturgia cristã, de amplas consequências para o futuro, pois a Páscoa anual viria a ser o verdadeiro gonzo de toda a Liturgia cristã e do próprio ano litúrgico.

Mas é hoje praticamente impossível determinar quando isso aconteceu. Certamente que muito cedo: é até possível que a Carta de Pedro, centrada no tema do Batismo e da Páscoa do Senhor, seja uma verdadeira “folha da celebração” de uma Vigília Pascal celebrada em Roma já pelos anos 50 do séc. I. No entanto, as primeiras notícias que nos chegaram da festa da Páscoa anual são relativamente tardias, da segunda metade do séc. II. Parece certo que ela começou por se celebrar primeiro no Oriente, em Jerusalém concretamente, só depois tendo depois passado a Roma.

A Páscoa cristã assenta numa festa anterior religiosa muito mais antiga, que primeiro foi pagã e de clara ressonância cósmica: repito mais uma vez. Quando a Natureza se renovava e renascia, com o nascimento da Primavera, os nossos antepassados pagãos louvavam as divindades oferecendo-lhes as primícias dos seus frutos: os pastores um cordeiro, os agricultores um pão novo (sem fermento) cozido com a farinha moída do primeiro trigo colhido nos campos do Médio Oriente. Sobre esta festa pagã e seus rituais – cordeiro assado, saladas, pão ázimo e depois vinho – assentou depois a festa pascal judaica que celebrava um facto histórico: a sua libertação do Egipto. É sobre esta festa judaica, que Jesus celebrou com os seus, que assenta a festa cristã da Páscoa da Ressurreição do Senhor que continuamos a celebrar ritualmente com “Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29 e 36), pão de trigo sem fermento e com vinho.

Que celebramos então na Páscoa?

Foi certamente S. João quem melhor respondeu a esta pergunta, pondo na boca de Jesus, sentado já à mesa para a “última ceia”, estas palavras: “Saí do Pai e vim ao mundo; agora deixo o mundo e retorno ao Pai” (Jo 16,28).

Nelas faz o evangelista toda uma síntese do mistério de Cristo. A vida de Jesus não é uma pura sequência de factos soltos, mas uma existência penetrada de uma dinâmica clara e consequente.

Define-a, antes de mais nada, todo um processo de humilhação e/ou abaixamento que se torna visível com o seu nascimento (“desceu dos céus e incarnou … e se fez homem”) e que acaba na morte (“Humilhou-se até à morte e morte de cruz” – Fl 2,8). Depois, um movimento inverso, um processo de glorificação e retorno ao Pai, encenado por Paulo com estas palavras: “[Deus] ressuscitou-o dos mortos e sentou-o à sua direita nos céus, muito acima de [tudo] … não só deste mundo como do que há de vir” (Ef 1,20-21).

Há, portanto, nesta leitura da vida de Jesus a ideia de passagem de uma etapa a outra, o que o próprio S. João refere com as palavras “Tendo chegado a hora de passar deste mundo ao Pai…” (13,1). E é na cruz que, de uma maneira clara, se dá esta passagem, nela convergindo, digamos que de maneira misteriosa, tanto a humilhação e a morte de uma vida, como a sua glorificação e triunfo. O Cristo da Cruz é, assim e ao mesmo tempo o homem das dores, sacrificado e morto, e o Senhor triunfador, vencedor da morte.

Paulo, como só ele sabe fazer, dirá tudo num dos seus conhecidos hinos cristológicos:

«Cristo – que era de condição divina -,
não pretendeu dizer-se igual a Deus;
antes se esvaziou de si mesmo
e tomou a condição de escravo.
Tornando-se igual aos homens
e passando por um simples homem,
rebaixou-se a si mesmo,
submetendo-se inclusive à morte,
e morte de cruz.
Por isso mesmo Deus o exaltou,
e lhe deu um nome
acima de todos os nomes.
Assim sendo, que todo o joelho se dobre
ao nome de Jesus,
no céu, na terra e nos abismos,
e que toda a língua proclame:
Jesus Cristo é Senhor
para glória de Deus Pai» (Fl 2,6-11).

Neste hino se descreve todo o trajeto do mistério de Cristo, interpretado à luz da Páscoa. Os dois aspetos que ele reúne – humilhação e glorificação – aparecem aqui claramente desenhados e ligados, formando uma unidade indissolúvel.

Não esqueçamos que, como muitas vezes tenho dito, a Páscoa foi no princípio a única festa anual da Liturgia cristã (embora, desde o princípio, ela se celebrasse semanalmente no “domingo”). Só muito mais tarde, no séc. IV, apareceu a celebração do Natal.

Isto não quer dizer que a Igreja tenha estado quatro séculos sem a celebração total, ou completa, do mistério de Cristo; pelo contrário, porque na Cruz se termina o processo da sua humanidade começado na Natividade (a Incarnação) mas começa também o da sua glorificação, na cruz acontece esta passagem.

É tudo isto que celebramos na Páscoa. Por isso, e não por acaso, a palavra Páscoa significa “passagem”: celebramos a passagem de um Deus a homem, um Deus que passou do mundo de Deus ao do homem (Incarnação), e deste voltou ao de Deus (Redenção). E nós com ele e como ele: “Ou ignorais que todos nós fomos batizados [como ele] na sua morte e caminhamos por isso mesmo para uma vida nova?” (Rm 6,3).

Mas antes disso, por interesses teológicos, a Páscoa passou a significar outra coisa! Como veremos, espero!

Arlindo de Magalhães, 24 de março de 2019

Êxodo

Lucio Fontana, ‘Concetto spaziale, Attese’, 1960

Quem não sai do sítio e da situação que o sitia, quem não levanta os olhos do chão onde morre, não percebe as dimensões do mistério de Cristo. É preciso sair dos sítios e das situações que não levam a nenhuma saída, que não realizam nenhuma vocação, que não contribuem para nenhuma obra digna desse nome.

Foi por isso que Abraão, de Ur, da Caldeia; Moisés, do Egipto do Faraó; Elias, do Israel do tempo do rei Acab, etc, todos eles fugiram dos lugares onde estavam, rompendo com o “estado de sítio” que lhes retinha as vidas. Piraram-se!

Abraão, sabemos, procedente de Ur, na Caldeia, terra onde nasceu a História e vivia o povo mais culto de então, onde funcionaram os mais antigos tribunais e parlamentos que a História conheceu, onde se elaboraram as primeiras legislações sociais, e onde a técnica nascente atingiu, ao tempo, um altíssimo grau de desenvolvimento, Abraão ouviu a voz de IAVÉ, “o Senhor”, um Deus desconhecido para ele: – “Deixa a tua terra natal e da Casa de teu Pai e vai para a terra que eu te vou mostrar. Farei de ti um grande povo” (Gn 12,1/2). E ele partiu.

Seguiu-se-lhe Moisés. Estava retido na corte do faraó, mas viu a opressão do seu povo exilado no Egipto e escutou o seu clamor” (Ex 3,7); depois de muito hesitar, fugiu também com o povo atrás de si; e se começou por matar um egípcio (Ex 2,11-14) acabou a lançar ao mar os carros de guerra do faraó e todo o seu exército (Ex 15,4). Mesmo assim, haveria de morrer às portas da terra prometida, mas não alcançada.

Depois Elias, o Profeta com letra grande, mas que não escreveu, mas que teve que enfrentar o rei e as fúrias da rainha, e teve também de se esconder e fugir para não ser morto (1Re 19,1-8).

Apesar das promessas que Iavé lhe fizera, Israel nunca conseguiu ser a “terra dos vivos” que deveria ser, e, por isso, entrou em conflito com os profetas: a uns maltratou-os, a outros matou-os, a outros ainda expulsou-os; e eles tiveram de fugir e de se defender.

Mas tudo isto foi necessário para chegarmos ao Êxodo irreversível, à Páscoa última, a de Jesus. Porque a de Jesus carrega um pouco ou um tudo das páscoas ou passagens de Abraão, de Moisés e de Elias.

(Saltando a 2ª leitura,) No texto de Lucas, mais mistérico que episódico, aparecem os três, de novo, não como fantasmas do passado mas como pessoas vivas encontradas com o único que dá sentido aos seus próprios percursos; ele é o Cristo transfigurado, isto é, o ressuscitado avant la lettre; eles são Abraão – o pai na fé de todos os crentes, Moisés – o da primeira Páscoa, Elias – o príncipe dos Profetas de Israel. O primeiro, Abraão, foi grande pela fé com que saiu de Ur à procura de uma Terra Nova, o segundo, Moisés, pela coragem em enfrentar as causas da injustiça e da opressão, Elias, o que enfrentou os esbirros do Poder. Três figuras incontornáveis do percurso histórico do antigo Israel: o homem da fé contra toda a esperança (Abraão), o homem da coragem diante da opressão (Moisés) e o homem que enfrentou o ímpio rei Acab e sua pérfida esposa Jezabel.

Quem são as testemunhas deste encontro? Os três privilegiados amigos do Jesus, Pedro, Tiago e João. Pedro, nome que se traduz melhor por calhau, duro e firme, que por pedra – foi o Cabeça; Tiago, o primeiro (dos Doze) a cair em testemunho da fé (At 12,2), assassinado por mandato de Herodes logo no ano 43 da era cristã; e João, irmão de Tiago, um dos mais próximos e sintonizados com o Mestre, o tal que na manhã da ressurreição, correu com Pedro para o túmulo quando lhes disseram que o Senhor ressuscitara. E quando chegou, esperou que arribasse o velhote (Jo 20, 3-8). Então, concordaram os dois e começaram a crer” (Jo 20,8)

Digamos que está nestas seis figuras toda a história anterior e posterior: os anteriores, que levaram até ao Cristo (Abraão, Moisés e Elias), a posteriori, Pedro, Tiago e João que viram. E no centro o ressuscitado.

Depois deste enquadramento “histórico”, digamos assim, dum lado as três grandes figuras do Antigo Testamento, do outro as outras três que num momento particular da Igreja apostólica emergiram com particular relevo, o episódio evangélico termina abruptamente. Diz o texto que,  depois, Jesus ficou sozinho. No fim de narrar este momento, João diz que malta queria fazer Jesus “rei mas ele se retirou sozinho, para o Monte (6,15)

Dizem alguns comentadores: para ele devem olhar a Igreja e os crentes.

Maria, se tem estado lá, tinha certamente repetido o que dissera em Canã da Galileia: “fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5).

Arlindo de Magalhães, 17 de março de 2019

Da Natureza à Páscoa

Peter Brüning, Nr. 136 (1962)

O homem antigo vivia numa profunda ligação com a Natureza que lhe aparecia conduzida por leis mais ou menos misteriosas de fecundidade ou de esterilidade, de renovação ou de morte. Coisa verdadeiramente sagrada!, a Natureza. Renovava-se periodicamente, tornava-se episodicamente furiosa e vingativa, alimentava o homem ou deixava-o na penúria. Mas o homem primitivo pressentia Deus na Natureza, era o seu Criador e Senhor.

Por isso, se ofereciam, ano a ano, à divindade, os primeiros frutos que, com dificuldade, o homem encontrava na terra ou da terra arrancava. O homem primitivo foi, por isso, desde muito cedo, caçador ou pescador, depois, pastor e só mais tarde lavrador.

Oferecer a Deus as primícias da Natureza era, para o homem antigo, reconhecer a sua condição de criatura e fazer um ato de fé no Deus Criador, a quem pedia que o abençoasse.

Mas, se o homem primitivo colhia da Natureza – do mundo botânico (silvestre) ou do animal (caça) – o que precisava para comer, já a seguir, não, porque ele próprio passou a dominá-la. Os animais, alguns, esses domesticou-os, os campos cultivou-os e logo aprendeu a conservar e a guardar: os cereais, a carne, alguns frutos; logo aprenderia a fazer compotas e conservas, etc., e a guardar naquelas velhas arcas dos meus avós…, vinham ainda muito longe frigoríficos e outras técnicas…

Assim nasceu a festa da Primavera, da Natureza rejuvenescida: de tempos longínquos, nela se imolava e comia ritualmente, em família, um cordeiro. Com o cordeiro, comia-se pão ázimo, pão novo, sem fermento, feito com a primeira farinha da primeira colheita possível depois de longo e rigoroso Inverno.

Era a festa dos Ázimos (Ex 23,15). O Livro do Êxodo legislava minuciosamente: “Guardarás a festa dos pães sem fermento” (Ex 23,15). Mas o Deuteronómio era mais minucioso:

tomarás as primícias de todos os frutos que colheres da terra e que o Senhor, teu Deus, te houver dado. Pô-los-ás num cesto e apresentá-los-ás no lugar que o Senhor tiver escolhido para aí habitar o seu nome [isto é, no Templo]. Apresentas-te ao sacerdote e ele receberá o cesto da tua mão e depositá-lo-á no altar de Iavé” (Dt 26,1-4).

Mas “o animal do rebanho[a comer] será sem defeito, macho, cria de um ano, cordeiro ou cabrito (Ex 12,5).

A atitude religiosa deste homem primitivo diz pouco ou mesmo praticamente nada ao moderno que somos, que nada sabemos já dos ritmos da Natureza: até à pouco havia sempre uma mercearia e, hoje, há sempre nem que seja um simples supermercado que, no nosso Primeiro Mundo, tem sempre tudo, peixe, fruta fresca e legumes com fartura, aconteça o que acontecer.

Mas, mesmo ainda no tempo antigo, tudo se complicou. “A fome era violenta em toda a terra”. Sabendo Jacob que havia trigo à venda no Egipto disse aos filhos: “Estais a olhar uns prós outros? Ouvi dizer que há trigo à venda no Egipto. Ide lá comprá-lo, para continuarmos vivos. Senão morremos! … e partiram a comprar o trigo no Egipto” (Dt 41,57 — 42,1-2).

Resumindo tudo: na memória histórica desta intervenção de Deus em favor do seu povo, entrariam depois José, filho de Jacob, Moisés e a fuga de Egipto, tudo acontecido no rebentar da Natureza (no campo e no rebanho), donde a festa do pão Ázimo (Ex 12,15ss), do pão sem fermento) e do nascimento dos “animais do rebanho” (Ex 12,3).

É aqui que assenta a festa da Páscoa judaica. Depois de uma (aparente e invernal) morte da Natureza, o Inverno, assim o povo que descende de um arameu errante (Abraão) ressurge anualmente na festa da Páscoa, que é a celebração da libertação histórica que Deus lhe inspirou e que o seu enviado – Moisés – encabeçou. “Mesmo depois de entrardes na terra que vos prometo, guardareis este rito (isto é, comereis um animal do rebanho, cordeiro ou cabrito, pães sem fermento e ervas amargas, Ex 12,8) e, quando os vossos filhos vos perguntarem ‘Que significa este rito?’, dir-lhes-eis: é a Páscoa do Senhor, que salvou as vossas casas e feriu o Egipto” (Ex 12, 26-27; Dt 16, 1-7).

O Deus de Israel não era apenas um Deus ligado aos ciclos naturais de fertilidade; era muito mais, era um Deus que estava com os sofrimentos do povo; e por isso o libertou. E esse acontecimento, verdadeira passagem de um estado de escravidão a um outro de liberdade, passou a ser celebrado com os mesmos ritos entranhados já no homem primitivo, o mesmo cordeiro, o mesmo pão sem fermento e as mesmas ervas amargas. Esta celebração fazia-se de noite, que de noite o povo fugira do Egipto: Esta é aquela noite!, Ó noite bendita!, cantaremos depois, na festa da Páscoa.

Mas não terminou ainda aqui a história da salvação. Na plenitude dos tempos, seria Jesus, enviado do Pai, a salvar o que estava perdido: quando o drama começou, era já de noite (Jo 13,30). E, quando morreu na cruz, inocentemente condenado, houve trevas em toda a parte (Lc 23,44), como se fora de noite. Esta é aquela noite!, Ó noite bendita!

Mas Deus ressuscitou-o (At 2,24; 3,15; 4,10: 5,30; 10,40; 13,30; 17,31; Rm 8,11; 10,9; 1 Cor 15,15; 2 Cor 1,9; 4,14; Hb 11,18, etc). E tudo isto juntamos na celebração da Páscoa: a morte e ressurreição de Jesus, e tudo o mais que está para trás, a Páscoa da Natureza e a gesta de Israel. E isto porque se Cristo não ressuscitou, é vazia a minha pregação e vazia a vossa fé (1 Cor 15-14). Exatamente por isso eu vos anunciei, antes de mais nada, o que eu próprio recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as mesmas Escrituras, e depois apareceu a Cefas e, a seguir, aos Doze (1 Cor 15, 3-4).

Como celebramos nós tudo isto? Com os mesmos ritos dos nossos antepassados: com cordeiro, não já do rebanho, mas cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, e com pão de trigo sem fermento, afinal a matéria de toda a celebração da Eucaristia, que, como dizemos todas as semanas na Anáfora, é memória da morte e ressurreição de Jesus.

Mas, para celebramos tudo isto, preparamo-nos. É a Quaresma.

Foi mau terem-nos metido na cabeça, no passado, uma Quaresma individualista: cada um prepara-se a si próprio, pela multiplicação de práticas mais ou menos penitenciais: jejum, abstinência (de quê?), confissão, via-sacra, conferências, etc. Cada um prepara-se, mas a Comunidade não se preparava, esperava antes que eles o fizessem. Mas é importante que a Comunidade o faça, porque a festa é da Comunidade.

Arlindo de Magalhães, 10 de março de 2019

Deserto

Nancy Eckels

Desde o século III que, claramente, toda a experiência vivida no Deserto pelo Povo hebreu, sobretudo na saída do Egipto no regresso do exílio, e por Jesus na preparação da sua missão, está presente no espírito da Quaresma cristã. A Liturgia quaresmal faz-lhe continuamente apelo, convidando a Igreja a repetir essa experiência. Porque foi no deserto que Deus falou ao homem de modo muito especial.

Como lugar geográfico, o deserto é um lugar não abençoado por Deus: nele, a água é rara, tal como acontecia no Jardim antes que Eloim fizesse chover sobre ele (Gn 2,5). Nenhuma vegetação nele sobrevive, e é escusado tentar cultivar o seu solo.  Fazer dum país um deserto, através da guerra, por exemplo, é reduzi-lo ao caos de antes da intervenção criadora de IAVÉ. Este lugar desolado é o oposto da «Terra», tal como a maldição é o contrário da bênção. No deserto só habitam demónios e animais selvagens.

No entanto, o deserto não é só terra de desolação. É também um dos lugares privilegiados da História da Salvação.  Porque, se Deus fez passar o seu Povo por esta «terra medonha» (Dt 1,19), é para o fazer entrar numa outra «onde corre o leite e o mel». Este é um dos períodos capitais da história de Israel que dará ao deserto uma significação religiosa muito profunda. De facto, se é um lugar de desolação, é também o lugar onde, durante 40 anos, o Povo se formou e IAVÉ se lhe revelou.

No deserto, o Povo caminhou, caminhou — um deserto só se pode atravessar — caminhou o povo, a esperança no coração e os olhos em frente. A sua travessia não é fácil, mas é nele que recebe a Lei e que IAVÉ faz com o Povo a Aliança (Nm 1,1s).

Durante 40 anos, o Povo atravessou-o, é verdade. Mas como era dura a travessia! O abandonado Egipto até parecia um paraíso!: a comida abundante e a segurança um realidade (Ex 14,12). Não é verdade que o Povo se pôs contra o Deus da Libertação?

Muitos morreram na sua travessia. E, no entanto, ao povo que se queixa, Deus dá uma comida e água (Ex 15,25). Só pouco a pouco ele irá percebendo a «lógica» deste Deus.

Um dia, o Povo chegou à Terra Prometida, de facto «de leite e mel», e a sua vida prosperou. Tanto que, rapidamente se esqueceu de Deus e começou a adorar ídolos.

Ao tempo de Jesus, algumas comunidades de crentes fugiam de Jerusalém e refugiavam-se no deserto (é o caso por exemplo dos Essénios de Qumrân). O próprio João Baptista se acolhe a ele para aí proclamar a sua mensagem. E logo renova os corações com a água do batismo, enviando-os para a vida normal, a trabalhar (Lc 3,10/14).

Na perspetiva dos evangelistas, Jesus revive as diversas etapas do Povo de Deus. É para isso que o Espírito de Deus o leva ao deserto, logo no início, para aí o pôr à prova (Mt 4,1/11); e, aí, ele ultrapassa e vence a prova permanecendo fiel ao seu Deus.

De algum modo ainda, a figura do deserto ajuda-nos a compreender o que é a vida cristã, um combate e um lugar de passagem até que, finalmente, entremos no repouso de Deus (Hb 4,1). Temos, entretanto, a certeza da vitória porque o Cristo, que nos precedeu, nos abriu o Caminho.

Arlindo de Magalhães, 6 de março de 2019

Quaresma

Psalm 90: Before the Heavens Were Formed” by Linda Witte Henk

A Quaresma não é um tempo litúrgico autónomo. É, perdoem-me a imagem, uma espécie de escada para chegar acima, não um banco para a gente se sentar. A Quaresma foi criada para preparar a Páscoa.

A ressurreição de Jesus é o acontecimento central de toda a História da Salvação e foi como tal percebida desde o início pelos cristãos. Por isso, ao lado da Páscoa semanal que os cristãos sempre celebraram, hoje já não — o “primeiro dia da semana” ou o Domingo —, os cristãos, dizia, desde muito cedo começaram também a celebrar uma Páscoa anual. Só temos notícia desta celebração pascal anual um pouco mais tarde que a do Domingo, ali por meados do séc. II. A partir da Eucaristia dos primeiros tempos cristãos: “no primeiro dia da semana, … reunidos para partir o pão…, a pregação prologou-se até à meia-noite…, Eutico estava sentado numa janela, adormeceu a caiu…, [e tudo isto] até de madrugada” (At 20,7-12).

Tão grande festa, no entanto, precisou de preparar-se: um dia, dois e três …, 40 dias (Quadragesima > Quaresma). Por outro lado, e por influência da igreja de Jerusalém que tinha à mão os ipsissima loca (os próprios lugares) onde tudo aconteceu, foi-se formando uma liturgia episódica que celebrava, passo a passo, os “passos” da Paixão e Morte de Jesus. Assim nasceu o Tríduo Pascal, os três dias centrais da celebração da Páscoa, que se estendeu a uma quarentena de preparação — na cultura judaica o nº 40 apontava preparação.

E assim se foi formando em Jerusalém uma liturgia episódica da morte e ressurreição de Jesus. Uma mulher do séc. IV, de quem se não sabe nada a não ser que era galega, foi, entretanto, a Jerusalém em peregrinação e escreveu e já na cidade santa escreveu como, aí, se celebrava episodicamente a liturgia pascal. O Ocidente recebeu a notícia trazida por Etéria ou Egéria e organizou depois uma liturgia pascal também episódica: a Ceia, o partir do pão, o lava-pés, a leitura dos acontecimentos, a cruz, a morte, a alegria da Ressurreição…

Estava, portanto, organizada a celebração pascal, com o Tríduo no seu auge.

Mas, se o tempo de preparação festiva cresceu até aos 40 dias, a festa foi muito mais longe. Nas culturas antigas, a festa, fosse qual fosse, nunca se fazia só num dia. Ainda hoje há por aí casamentos de ciganos celebrados durante… quantos dias?; eu ainda fui a um casamento  à minha terra natal que durou 3 grandes dias! Se a Quaresma tinha 40, o Tempo Pascal — dizia — só parou nos 50 (penta + konta > cinco dezenas) dias seguintes: é o Tempo Pascal, o tempo da plenitude.

A Quaresma que esta semana iniciaremos foi desde o princípio percebida e vivida nas Igrejas como um tempo de disciplina ou jejum. Não era procurado por si, o jejum, pois que visava a libertação do espírito, necessária para atender ao essencial, sobretudo à partilha fraterna, a pensar nos mais pobres. [Claro que, hoje em dia, já não pensamos que o jejum é uma simples privação de boca. Os cristãos encontrarão hoje, na vida moderna, mil hipóteses de jejum, a muitos níveis, em muitos sectores de vida, dos hábitos adquiridos ao claramente supérfluo. Tempo de jejum daquilo de que me posso privar, até porque o irmão pode ter necessidade do que, pelo menos, não me faz grande falta].

Mas a Quaresma assumiu também, podemos dizer, uma dimensão batismal.

De início, era na grande noite da Páscoa, e só nela, que se celebrava o Batismo. Assim, ao tempo em que se batizavam apenas adultos que eram preparados para o primeiro dos Sacramentos da Iniciação ao longo de um tempo alargado, na Quaresma dava-se um apronto final para a grande e festiva celebração. A Liturgia da Palavra dos 5 domingos da Quaresma é uma sequência de 10 grandes quadros catequéticos de resumo ou repetição, 5 do Antigo Testamento e outros tantos do Novo Testamento. No ciclo C, que este ano ocorre, do Antigo Testamento: Moisés (e os egípcios), Abraão, Moisés e a manifestação de Iavé no Horeb, José e a Páscoa judaica, e o profeta Isaías a dizer «Algo de novo está a aparecer, não vedes?» (Is 43,19); e, do Novo Testamento: as tentações de Jesus no deserto, a sua transfiguração, a conversão (“se não vos arrepender-vos…”), os episódios do filho pródigo e da adúltera. Estes grandes quadros catequéticos ajuda(va)m as Igrejas e cada um dos já batizados a uma espécie de retorno às Fontes da Salvação, às Águas Batismais, a celebrar a Páscoa (ainda hoje, na Vigília Pascal, a água passa por toda a assembleia como referência memorial do Batismo).

Finalmente, terceiro, a Quaresma adquiriu também uma grande e importante componente penitencial. Porque a fragilidade do homem o leva quantas vezes a perder a Graça Batismal, porque o espírito do mundo (Satanás) é contrário ao Evangelho e continuamente desvia o homem do Caminho, é necessária a revivificação da penitência, eventualmente sacramental.

É verdade que a Quaresma — dizia — se transformou nos últimos séculos num tempo apenas penitencial. É esse o sentido fundamental do gesto da imposição das cinzas.

É curioso! A carga penitencial carregou de tal modo a Quaresma… que, mesmo aqui na Serra, nos últimos anos, tem vindo às cinzas (penitência) mais gente que às Ceias de jejum do Tríduo pascal (jejum > partilha de bens)!

Tudo somado, a Quaresma reduziu-se a um tempo de decadência que hoje ainda aumenta.

Perdida a dinâmica batismal do início, desaparecida a ligação íntima entre o Batismo e a Penitência, caída a Igreja num formalismo perigoso e sempre redutor que fez se perdesse o sentido do autêntico jejum (e da abstinência: abster-se do supérfluo), a Quaresma resume-se a exterioridades (procissões, paramentos roxos, confissões, a festa dita dos Lázaros, etc.) — folclore é o nome —, praticamente sem sentido. Em muitos sítios, perdeu-se mesmo a ligação da Quaresma à Páscoa, deixando de ser entendida e vivida como tempo de preparação para a festa pascal.

Mas sem Quaresma não pode haver Páscoa, e sem Páscoa para que serve a Quaresma? Venha o diabo e escolha! Porque se não há Quaresma sem Páscoa para que seve Páscoa sem Quaresma.

Comecemos então a celebrar a Páscoa pela 45ª vez!

Arlindo de Magalhães, 3 de março de 2019

O amor aos inimigos

Antoni Tàpies, “A.T.”.

No princípio, por um nada se matava um homem: por um rego de água, uma sacholada; hoje, com um tiro em qualquer escola americana ou em qualquer periferia degradada de uma grande cidade europeia, em Paris, Estrasburgo ou Estados Unidos, arma-se um morticínio. É o direito da vingança ilimitada dos tempos bárbaros. Por isso, se alguém matasse um Caim, a morte seria vingada sete vezes (Gn 4,15). Pior ainda: Lamec, um descendente de Caim, poderia ser vingado “setenta vezes sete” vezes por ter assassinado um homem que o houvesse simplesmente ferido e um rapaz que simplesmente o tivesse pisado (Gn 4,23-24).

Depois, houve um grande avanço: a tua vingança será só “olho por olho, dente por dente” (Ex 21,24), isto é, preceituava-se já proporção entre o agravo e a punição. Era a justiça da Lei.

É verdade que, já ao tempo de Jesus, certas correntes do Judaísmo se perguntavam se podia ser assim. E os rabinos judeus de Corinto formularam mesmo, ao tempo de Jesus, a regra de ouro negativa (ou de ferro): não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. Mas já conhecemos o caso do samaritano, inimigo, portanto dos judeus como João informa (4,9), que socorreu um outro “que descia de Jerusalém”, portanto judeu, que havia sido assaltado, espancado e abandonado meio morto (Lc 10,29-37).

Mas só o cristianismo soltaria definitivamente as amarras da Lei. Só ele formularia “fazei aos homens o que quiserdes que eles vos façam” (Mt 7,12), a lei de ouro positiva.

Isto é, só o cristianismo englobaria o amor dos inimigos no superlativo amor do próximo: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘odiarás o teu inimigo’. Eu, porém, digo-vos: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos perseguem e maltratam” (Mt 5,43-44).

Durante os primeiros anos do cristianismo, o mandamento do amor dos inimigos fazia claramente parte da identidade cristã. O que não foi fácil. Para que não houvesse dúvidas, Lucas, por exemplo, em vez de se pôr com teorias, contava histórias. Duas só, como exemplo. Jesus na Cruz: “Pai, perdoai-lhes que não sabem o que fazem” (Lc 23,24); e Estêvão, a ser apedrejado até à morte: “Senhor, não lhes leves em conta este pecado” (At 7,60). O amor aos inimigos não era uma regra jurídica, mas uma atitude característica e distintiva dos discípulos da primeira hora.

Nem se pense que foi fácil. As primeiras dificuldades que se colocaram aos cristãos vieram mesmo dos judeus: nesta guerra, a primeira vítima foi Estêvão. Depois foi o Império. Mesmo assim, paradoxalmente, Paulo escreveu: “recomendo principalmente que se façam súplicas, orações e ações de graças por todos os homens, pelos reis e por todos aqueles que têm autoridade, para que tenhamos vida pacífica e tranquila, com toda a piedade e honestidade” (1 Ts 2,2).

Mas então? É que não se ama um amigo como um inimigo. E se o amor de um familiar ou de um amigo é questão de sentimentos e de ações, o do inimigo é uma questão de perdão, e de outras ações.

O Antigo Testamento não tinha dúvidas: “vossos inimigos cairão à espada diante de vós” (Lv 26,7). O cristão é chamado a fazer doutra maneira, como recomenda Paulo, citando aliás um dos últimos livros do Antigo Testamento (escrito apenas uns 200 anos antes de Cristo): “Não pagueis a ninguém o mal com o mal. (…) Se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer, se tem sede, dá-lhe de beber. Fazendo assim, amontoas carvões em brasa em cima da sua cabeça” (Rm 12,17-20, citando Pr 25,21-22), isto é, dás-lhe a volta. O cristão não destrói (não mata) o seu inimigo, trabalha pelo seu futuro: ele quer ganhar o adversário, qualquer que ele seja. O amor aos inimigos não é uma simples resistência passiva, embora tenha sido um moderno a apontar uma atitude correta, numa expressão hoje já consagrada: luta não violenta. Não menos dura, não menos difícil. Ele que lutou com ela morreu às mãos dela. Estou a falar de Gandhi. “Ó meu Deus!”, foi a única coisa que se lhe ouviu, já prostrado com três tiros.

Tudo isto são as teorias. Depois na vida, elas apertam e a gente não sabe muitas vezes como fazer.

Há guerras que são para ganhar doutra maneira, de uma maneira muito mais difícil. Mas que é a única maneira de ganhar. Porque será que S. Paulo disse: “façamos o bem a todos os homens, mas sobretudo aos irmãos na fé” (Gl 6,10)?

Arlindo de Magalhães, 24 de fevereiro de 2019

As Bem-aventuranças

Demolição da igreja de St. Lambertus em Immerath, Alemanha (2018)
© Daniel Chatard, Juror’s Pick, Documentary, LensCulture Visual Storytelling Awards 2019

Mais ou menos, todos conhecemos esta página do Evangelho: Jesus subiu ao monte … e ensinava (os discípulos) dizendo-lhes: Bem-aventurados … Mas isto é no Evangelho de Mateus (cap. 5). No de Lucas, em lugar paralelo, quase tudo é diferente: Jesus desceu do monte e deteve-se num sítio plano com numerosos discípulos e uma grande multidão … e disse: Bem-aventurados…

Mas há mais: Mateus tem 9 bem-aventuranças, Lucas apenas 4; às de Mateus seguem-se as ditas antíteses (Ouvistes o que foi dito aos antigos … eu porém digo-vos…), às de Lucas as apóstrofes, ie, verdadeiras descomposturas (Ai de vós os ricos, os que estais fartos, os que agora rides…).

Todas estas diferenças — estou em crer — já não nos metem confusão. Estamos diante de escritos muito antigos que nos exigem um esforço de compreensão maior e diferente do que se nos pede ao lermos, por exemplo, o jornal diário.

Digo doutra maneira: sobre o como as coisas efetivamente se passaram e o autêntico ensinamento de Jesus (porque neste capítulo de Lucas trata-se de facto de um ensinamento autêntico de Jesus) passou já muito tempo; são de resto dois escritores diferentes — Mateus e Lucas — a dar uma diferente interpretação dos acontecimentos, tanto mais que tinham atrás de si comunidades diferentes que de modo diferente interpretaram os ensinamentos de Jesus.

A bem-aventurança é um género literário muito utilizado nos diversos espaços culturais do tempo, do Egipto à Grécia. No Antigo Testamento há vários exemplos: “Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios”, diz, por exemplo, o Salmo 1. Utilizava-se fundamentalmente na literatura sapiencial e no culto: “Felizes aqueles que guardam os meus caminhos” (Pv 8,32). Mas utilizava-se também, como hoje aliás, na vida familiar, a marcar momentos felizes. É de bom tom começar ou terminar um brinde com uma bem-aventurança, a exprimir um voto ou mesmo uma prece.

As bem-aventuranças do Evangelho são, no entanto, bem mais radicais. E desde logo três delas (a dos pobres, a dos que têm fome e sede e que choram, e a das perseguições); são tão radicais que, hoje ninguém duvida, foram mesmo ditas por Jesus. Diante de muitas coisas que o Evangelho diz que Jesus disse, como é que vamos saber se ele as disse ou não? Há uma regra que nunca falha: se se trata de uma coisa que só ele pode ter efetivamente dito, não há dúvida, disse-a mesmo. Por exemplo: chamar Abbá a Deus; Jesus disse isto de certeza absoluta, mais ninguém poderia ter tido a ousadia de o fazer, era impensável que alguém o dissesse no seu tempo.

É o que acontece com as bem-aventuranças (melhor dito, com as referidas três bem-aventuranças): elas soaram de maneira tão inesperada e nova aos ouvidos dos seus contemporâneos, isto é, é tão impossível que um qualquer rabino com a cultura do seu tempo pudesse tê-las dito, que — não há dúvida — foi Jesus que as disse, de certeza. Ponham o Vasco da Gama a falar de comboios a ver se a coisa pega!

Mesmo assim, Jesus terá dito “bem-aventurados os pobres em espírito” (pobres que o são no seu coração), como anota Mateus, ou simplesmente “bem-aventurados os pobres”, como regista Lucas? Eis a questão.

Chegados aqui, a esta pergunta, vamos lá pensar.

Lucas era um médico de origem pagã. Pertencendo a uma classe social no mínimo média, não era propriamente o que possa dizer-se um pobre, sobretudo naquele tempo. No entanto, o problema da pobreza, dos pobres e da propriedade atormentava-o; tanto mais que estava mesmo convencido que a relação do homem com a propriedade era campo de verificação da fé. Não esqueçamos que no seu outro livro — Os Atos dos Apóstolos — este mesmo Lucas insiste em informar que os cristãos de Jerusalém tinham tudo em comum, vendiam as suas propriedades e bens e dividiam o produto por todos segundo a necessidade de cada um (2,45), e que não havia entre eles nenhum necessitado porque todos os que possuíam terras ou casas as vendiam, trazendo depois (para a comunidade) o preço do que tinham vendido (4,34). Para além disso, é ainda Lucas que informa pormenorizadamente que, grassando uma grande fome em toda a região … os discípulos [de Antioquia] resolveram, cada um segundo as suas posses, enviar socorro aos irmãos da Judeia (At 11,29). E não passe pela cabeça de ninguém que Lucas estava a inventar pois que Paulo também nos dá três notícias deste movimento de solidariedade para com Jerusalém espalhado às Igrejas da Grécia (1 Cor 16,1-4; 2 Cor 8, 1-15; Rm 15,25-28).

Isto é, Lucas, originário duma classe no mínimo média, confronta-se e inquieta-se com o problema da pobreza: como poderia ele não falar senão da pobreza-pobreza, dos pobres-pobres? Bem-aventurados os pobres, porque vosso é o Reino dos Céus.

Mas Mateus tem outra sensibilidade, viveu certamente noutro contexto, noutra comunidade; e, porque para ele a Palavra de Deus não é uma realidade rígida que permita apenas uma interpretação literal, ele refere-se não unicamente aos pobres-pobres mas aos que têm um coração pobre ou de pobre, numa interpretação mais universal e alargada de pobreza. Qual deles tem razão? Afinal o que disse Jesus exatamente?

Não vou agora prosseguir em grandes explicações, mas mesmo assim peço a Agustina Bessa Luís que me ajude: “A desgraça não traz o desejo das humilhações, e é preciso conhecer certo direito aos padrões da riqueza, para apetecer outros mundos. Só um deus transcende a vileza e nasce miserável, para não perturbar a condição do que é humano. Porém, um homem rodeado de abismos deseja transpô-los e pouco lhe sobra da vida para a santidade” (Santo António, 1973, p. 147). Esta afirmação toca o fundo do mistério da Incarnação do Filho de Deus: “sendo de condição divina … humilhou-se a si mesmo assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens” (Fil 2,8); e explica também – a contrario – porque é que a esperança da moderna civilização ocidental colocada bem perto, no material, na riqueza ao alcance da mão, conduz apenas à desilusão e ao desastre.

Jesus, pelo que sabemos, não conheceu durante a sua vida terrena nem a riqueza nem o aplauso nem, por seu nascimento, participou dos bens culturais e económicos da classe superior. A Igreja primitiva não viveu em melhores condições.

E se Lucas radicalizou a questão da pobreza indo até ao fim, aos pobres-pobres, aos pobres de tudo, Mateus, por sua vez, universaliza a questão, abre-a, porque há ricos-pobres e pobres-ricos. Verdade ou mentira?

E já que falamos da Igreja de Jerusalém de que Lucas nos dá notícias a este propósito, da sua experiência direta de viver em necessidade e da necessidade de receber  de outras comunidades, não posso esquecer o texto mais violento de todo o Novo Testamento contra a riqueza, escrito paradoxalmente pelo tradicionalista e conservador Tiago, o irmão do Senhor, que foi o seu segundo responsável:

“Vós, os ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que sobre vós hão de vir! As vossas riquezas apodrecerão e as vossas roupas serão comidas pela traça. O vosso ouro e a vossa prata carregar-se-ão de ferrugem e ela dará testemunho contra vós e devorará as vossas carnes, como se de um fogo se tratasse. O salário que roubastes aos ceifeiros dos vossos campos clama e grita, e os seus gritos chegaram aos ouvidos do Senhor que tudo pode. Viveis em delícias e poucas-vergonhas sobre a terra, mas apenas saciais o vosso coração para o dia da vingança. Condenastes e matastes o justo, e ele não resistiu” (Tg 5,1-6).

É muito dura esta palavra, mas no fundo é apenas outra interpretação — vivida — da afirmação de Jesus — “bem-aventurados os pobres” — que afinal não conhecemos com exatidão. Ainda bem que dela temos várias interpretações, e qual delas a mais exata! Isto é como uma obra de arte: ninguém pode pretender dela a interpretação exata, ninguém pode afirmar foi isto ou aquilo que o seu autor pretendeu dizer com ela. Nós, os cristãos, não somos fundamentalistas (isto é, não pretendemos ser interpretadores literais das Escrituras, pois que a religião se baseia fundamentalmente na fé).

Tal como a Igreja primitiva, eu estou convencido que o grande testemunho cristão da Igreja hoje em dia é junto dos pobres, é partilhar com os pobres, pobres de todos os tipos, de bens materiais, mas, cada vez mais, não só. Tive fome, tive sede, estava nu, mas também estava só, estava a chorar, não sabia, não podia, quem de vós me deu a mão, me ouviu, me ajudou, me sentou à sua mesa? Vivi só, desesperei da minha doença, não me entendia com sei lá o quê, e ninguém me deu a mão!

Os pobres – o mundo da pobreza – são hoje o maior sacramento do Cristo que “sendo de condição divina … se humilhou a si mesmo assumindo a condição de escravo e assemelhando-se assim aos homens” (Fil 2,8). E este é o maior desafio da Igreja do nosso tempo juntamente com o da evangelização da cultura. Quer queiramos quer não, um grande desafio que a Igreja primitiva resolveu como pôde, e nós…

Arlindo de Magalhães, 17 de fevereiro de 2019

O movimento de Jesus

Henri-Matisse, ‘The snail’, 1953

Quem é que Jesus escolheu por companheiros? Quem foram os primeiros que o seguiram? Gente sem influência e sem meios, sem títulos de Saber ou de Ter, gente pobre ignorante, à primeira vista incapaz de grandes voos e de arriscados planos, gente pequena e sem ambições… Assim nasceu o chamado “movimento de Jesus”.

Pedro bem o haveria de avisar, numa premonição a que a História posterior viria a dar razão: “Afasta-te de mim que sou um homem pecador!” (Lc 5,8).

De facto, entre a vocação de Isaías, o Profeta, clarificada no meio de Serafins e vozes divinas (ver cap. 6 do Livro de Isaías), e a (já referida) vocação de Pedro vai toda a distância que separa o Antigo do Novo Testamento. E, no entanto, tanto um como o outro — Isaías e Pedro — rebentaram ambos com os cânones oficiais da Lei e da Religião: nem o Profeta nem o Apóstolo receberam a vocação por descendência carnal ou por sucessão clerical. Tanto um como o outro foram chamados fora dos quadros da instituição.

Então, a Lei e a Instituição são más? Sim, se escravizarem o homem e não lhe permitirem o crescimento. Foi o que aconteceu à Antiga Aliança. Por isso, um dia Jesus recordou uma coisa que ainda hoje sabemos evidente: que “o Sábado foi feito para o Homem” (Mc 2,27). É que, no tempo de Jesus, as coisas tinham chegado a tal ponto que parecia exatamente o contrário: que o Homem tinha sido feito para o Sábado.

Nem a Lei nem a Instituição são más. Mas porque podem tornar-se más é que, do “movimento de Jesus” liderado pelos Apóstolos, nasceu e se organizou a Igreja Apostólica à qual, por contributo do Espírito, “o Senhor Jesus deu início” (LG 5).

Os últimos Concílios têm-se esforçado por melhorar a teologia e reformar os seus desenvolvimentos históricos, à luz daquele princípio sempre aceite na Tradição cristã que diz que «Ecclesia semper reformanda» (a Igreja deve estar sempre em a reformar-se).

Todos sabemos que coadunar a prática do dia-a-dia com os princípios (temporais ou doutrinais) é coisa sempre muito difícil. Que o digam as famílias, os casais, os namorados, os amigos, as empresas, os partidos, as nações, os clubes, a sociedade em geral, tudo. No princípio, parece tudo fácil e um mar de rosas. Mas o dia-a-dia faz-se sempre – no melhor dos casos – com duros debates e rupturas, com confrontações e afrontamentos, e – no pior dos casos – com guerras e destruições, tribunais, divórcios, corte de relações, “é mesmo necessário”!, dizia Paulo.

Assim é na Igreja ou assim é a Igreja. Entre os Apóstolos houve dificuldades imensas, resistências impensadas, eles que possuíam carismas e dons únicos e originais. E como poderia tudo isto não ter existido ao longo da sua história, como poderá isto não existir no nosso tempo?

Em situação de divergência de opinião, de debate aberto ou mesmo de procura séria e esforçada da verdade, é preciso apenas que se respeite aquela regra com que Agostinho, Bispo de Hipona, esclareceu tudo, numa das suas célebres «bocas»: No certo, Unidade; no incerto, Liberdade; em tudo, Caridade.

Não se pense que na Igreja está tudo bem: por isso mesmo, «Ecclesia semper reformanda». Se assim não fosse, arriscar-nos-íamos a canonizar o pecado como os Judeus canonizaram o Sábado. É que o homem, seja ele qual for, não existe para a Igreja; a Igreja é que existe para o Homem.

Os debates na Igreja. A importância do debate na Igreja. A necessidade do debate na Igreja. Não era muito mais simples que a Igreja não tivesse de seguir a Lei da Humanidade?

Mas “a Igreja peregrina, enquanto instituição humana e terrena, reconhece com humildade os erros e pecados que obscurecem nos seus filhos o rosto de Deus e está decidida a continuar a sua acção evangelizadora, para ser fiel à sua missão, com a confiança posta no seu Fundador e no poder do Espírito” (Puebla 209, 3ª Conferência dos Bispos sul-americanos, 1979).

O Papa Francisco, que era um bispo sul-americano, escreveu já assim: “Sonho com uma opção missionária — refere-se à Igreja — capaz de transformar tudo, costumes, estilos, horários, linguagem e toda a estrutura eclesial…, pequenas comunidades [até, que] são uma riqueza da Igreja que o Espírito suscita para evangelizar todos os ambientes e sectores. Frequentemente trazem um novo ardor evangelizador e uma capacidade de dialogo com o mundo” (EG 27.29).

Não poderei esquecer aquele dia, tarde ou manhã, já não sei, estava eu a ler pela primeira vez, um documento — Evangelização — acabado de sair das mãos do Papa (hoje já São) Paulo VI que dizia assim, era Dezembro de 1975: “(pequenas comunidades) Nascem da necessidade de viver mais intensamente a vida da Igreja, ou do desejo e da busca de uma dimensão mais humana do que aquela que as comunidades eclesiais mais amplas dificilmente poderão revestir, sobretudo nas grandes metrópoles urbanas contemporâneas, onde é mais favorecida a vida de massa e o anonimato ao mesmo tempo”(58).

São Paulo VI, ora pro nobis

Muita coisa, já vinda e a vir, acontecida depois de eu ser ordenado presbítero, há 51 anos! Coisas com que sonhei ou ia sonhando.

E quanto mais e com que facilidade acontecerá que muito mais ocorrerá na Igreja de Jesus no próximo cinquentenário!

Arlindo de Magalhães, 10 de fevereiro de 2019

Cafarnaum

Joan Miro

Quando Jesus chegou à Sinagoga de Nazaré, não se pôs logo a arengar às massas. Pelo contrário, seguiu o caminho da sua Humanidade. A Sinagoga era o lugar de culto da religião judaica, onde qualquer israelita podia falar e co­municar à assembleia um pensamento e uma palavra de edificação, estava aberta todos os dias, como as igrejas paroquiais e capelas cristãs do tempo antigo, embora nos Sábados se juntasse mais gente pois que o Sábado judaico era o que era para nós o “primeiro dia da semana”, o domingo. Qualquer judeu podia levantar-se e falar à assembleia. Jesus “percorreu então toda a Galileia, ensinando nas sinagogas e pregando as boas novas do reino.” (Mt 4, 23): “Sempre ensinei numa sinagoga e no templo, onde todos os judeus se reúnem.” (Jo 18,20).

Já no Jordão não foi ele que se apresentou a si mesmo: “Do céu veio uma voz: Tu és o meu Filho muito amado” (Mc 1,13); e que João, o batista, o apresentasse aos primeiros discípulos: “Esse é aquele que vem depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias” (Jo 1,27)

Depois, em Caná da Galileia, ninguém, a não ser os discípulos, perce­beu o que se passou com o vinho (já aqui falei disso).

Mas, em Cafarnaum, como os pobres não têm muros nem vivem isola­dos, a sogra de Pedro levantada da cama onde estivera retida com febre (Lc 4,38) chamou a atenção das primeiras multidões que, logo de seguida, não cabendo já nos luga­res do dia a dia, só encontraram como lugar possível de reunião a orla do mar (Lc 5,1): aí sim, podiam ouvir a Boa Nova e abrir os olhos à nova «luz que veio ao mundo para iluminar os que andavam nas trevas».

Antes disso, porém, já ele havia sido pro­curado pela família que achava que ele não andava bom da cabeça. Foi então que, quando lhe disseram que sua mãe e “irmãos” o procuravam, ele disse para quem quis ouvir que, mãe e irmãos, eram para ele os que faziam a vontade do Pai (Lc 3,31-35).

Regressado depois a Nazaré, Jesus, o filho do carpinteiro José, bem conhecido desde pequeno pelos vizinhos e por toda a gente da terrinha, de­pois da leitura do Livro de Isaías, espantou tudo e todos com a mensagem e “as palavras cheias de sabedoria” que lhe saíam da boca. Apesar disso, foi espanto de pouca dura: a realidade da sua baixa condição social veio logo ao de cima: “Não é ele o filho do carpinteiro?”.

No rio Jordão, em Cafarnaum como em Nazaré, Jesus seguiu sempre o caminho da sua humanidade, com todas as suas implicações pessoais, familiares e sociais: «Não tenho dúvidas que, qualquer dia, haveis de me lembrar o ditado “Médico, cura-te a ti mesmo!”» (Lc 4,23), ou ainda “Em verdade vo-lo digo: nenhum profeta é bem aceite na sua terra!” (Lc 4,24).

Jesus não era um milagreiro, e os milagres (traduzamos por alguma coisa inexplicável pelas leis conhecidas da Natureza), quando os fez, eram sinais inequívocos metidos no coração da própria fraqueza para levantar os pobres, os caídos e os desanimados, e nunca para provar coisa nenhuma. O único milagre que ele fez para provar foi quando as pessoas começaram a duvidar que um pecador pudesse, pela Graça, tornar-se santo, pudesse levantar-se e transformar-se. Então curou o paralítico (Lc 5,17/26). Fora este caso, Jesus nunca fez milagres para provar coisa nenhuma, e mesmo quando lhe pediram um sinal para poderem acreditar nele, ele apenas apontou o sinal de Jonas no ventre da baleia (Mt 12,40), sinal da sua própria morte e sepultura.

Jesus seguiu sempre o caminho da sua humanidade, como vemos neste domingo a partir do que aconteceu em Nazaré. “A estas palavras, todos na Sinagoga, ficaram furiosos. Ergueram-se então e expulsaram Jesus da cidade. Depois, levaram-no até ao cimo de um despenhadeiro que havia na colina em que a cidade estava construída, a fim de o precipitarem dali abaixo. Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho” (Evangelho hoje lido).

O evangelista Lucas não diz porque é que eles acabaram por não o atirar para o esterqueiro, diz apenas que Jesus, “passando pelo meio deles, seguiu o seu cami­nho”. Isto é que a sua humanidade escandalizou os Judeus. Eles es­peravam um super-homem e apareceu-lhes um “filho do carpinteiro”, às tantas, na altura, ainda só aprendiz…

É a partir do mais simples, dum lugar como os outros, dos dias que se confundem com todos os mais, das noites mais escuras entre as noites escuras de todos os que vivem à nossa volta, pessoas que em nada se distinguem de todos os mais, é a partir disto – disse – que a Novidade salta e desconcerta o Mundo: HOJE realizou-se a Palavra que ouvistes.

Mas…, parece que nada aconteceu, e tudo segue o seu curso, sem mais! Mas, na verdade, é aí que a Novidade acontece… ou não acontece?

Arlindo de Magalhães, 3 de fevereiro de 2019

A Novidade de Jesus

Mark-Tobey, ‘Edge of August’

Como diz esta página de Lucas acabada de ser lida, Jesus começou a sua “vida pública” na sinagoga de Nazaré, onde leu e comentou um texto de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim; ele mandou-me a anunciar a Boa Nova aos pobres” (61,1-2). Resumindo, Lucas – que escrevia depois e à luz da Ressurreição – põe na boca de Jesus um programa de vida. Nós hoje compreendemos a perspetiva do evangelista.

Diante disto, duas reações típicas. Primeira: “todos davam testemunho em seu favor e se admiravam das palavras cheias de graça que saíam da sua boca” (4,22); segunda: “Ao ouvirem estas palavras na sinagoga, ficaram furiosos, expulsaram-no da cidade subiram ao cimo do monte e queriam precipitá-lo dali abaixo” (4,29).

Ainda hoje acontece isto muitas vezes: eu quase diria “ai daquele a quem isto não acontece!”: é uma normalidade na vida pastoral das Igrejas. Com Eliseu foi assim, com Paulo foi assim, com a Igreja sempre foi assim, com Jesus não poderia não ter sido assim. Sempre que há missão, pode naturalmente haver dificuldades e mesmo recusa. Nisto os evangelistas informam rigorosamente, historicamente. A posição de Jesus era fatalmente desconfortável: o mundo – aqui leia-se: a sua terra – não o entendeu, a família também não, como se diz noutros lugares (Mt 12, 46-50, Mc 3,31-35). Os problemas com o Judaísmo começaram também de imediato. O estilo da vida de Jesus, o que ele dizia e fazia, dava para perceber: punha em causa o que parecia ser a tradição.

Daí a oposição. Os conterrâneos, chocados e escandalizados, a gente está mesmo a ver: naquele tempo, quiseram deitá-lo pela escarpa abaixo, era por ali que se despejavam lixos e outras coisas. Então, este tipo, que não passa de filho do Zé carpinteiro, vem pr’àqui…! (Mt 13,55).

“Mas Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”, isto é, eles acabaram por não lhe fazer nada e ele “seguiu o seu caminho”, da Galileia a Jerusalém, onde, então sim, acabou por consumar-se o que já se esboçava desde Nazaré. Não esqueçamos que Lucas escreve depois da ressurreição. Jesus prosseguiu um caminho que só no fim e à luz da sua morte e ressurreição se entendeu verdadeiramente.

A Sinagoga era um lugar onde qualquer israelita podia falar e comunicar à assembleia um pensamento e uma palavra de edificação. Todos os Sábados isso se fazia nas Sinagogas de Israel: o Povo de Israel era, pelo menos em teoria, um «povo de Profetas» (Num 11,29); não como na Igreja cristã, onde fala só um e (quase) sempre o mesmo. Jesus não procedeu assim.

Já no Jordão, não foi ele que se apresentou a João, esperou que, isso, o Pai o fizesse e, depois, que João o apresentasse aos primeiros discípulos: «… mais forte do que eu, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias!» (Mc 1,7); “Ao ver que Jesus se dirigia para ele, exclamou: Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!” (Jo 1,29). Depois disto, em Caná da Galileia, não foi ele que entrou em cena, foi a mãe: “Não têm vinho!” (Jo 2,1-11).

Foi então para Cafarnaúm, ao lado (do lago) de Genesaré. E como os pobres não têm muros nem vivem isola­dos, inteirou-se logo da doença da sogra de Pedro e apresentou-se imediatamente, em sua casa (Lc 4,38). A notícia espalhou-se logo. Apareceu imediatamente gente vinda de todos os lados, tanta que não cabia nem no terreiro da aldeia…, só à borda do mar (Lc 5,1): aí, sim, na praia, havia lugar para todos poderem ouvir a Boa Nova e abrirem os olhos à nova «luz que veio ao mundo para iluminar os que andavam nas trevas» (Lc 1,79).

Por esta altura, foi pro­curado pela família, que achava que ele não andava bom da cabeça. Foi então que, quando lhe disseram que sua mãe e “irmãos” o procuravam, ele disse, para quem quis ouvir, que mãe e irmãos eram para ele os que faziam a vontade do Pai (Mc 3,31-35 ou Lc 8,19-21).

No rio Jordão e em Cafarnaum, como em Nazaré, Jesus seguiu sempre o caminho da sua humanidade, com todas as suas implicações pessoais, familiares e sociais: «Não tenho dúvidas que, qualquer dia, haveis de me atirar com o ditado: “Médico, cura-te a ti mesmo!”» (Lc 4,23), ou ainda: “Em verdade vo-lo digo: nenhum profeta é bem aceite na sua terra!”» (Lc 4,24).

Mas Jesus não era um milagreiro. Aquilo que eles queriam era ajuda, tratamentos e conhecimentos, que eles, coitados, não percebiam nada de nada: expliquei aqui há pouco tempo dos moucos que não lavavam os ouvidos e, por isso, não ouviam e que começaram logo a cantar, milagre! Àquela pobre gente que pensavam ser endemoninhados (Mc 9,14-23) não lhe passava pela cabeça que se tratasse de epilepsias ou coisas semelhantes. O que se diria hoje de um alzheimer…!

Isto é, o que escandalizou os Judeus foi a humanidade de Jesus, porque eles esperavam um super-homem e apareceu-lhes foi o “filho do carpinteiro” (Mt 13,55 e Mc 6,3), às tantas, na altura, ainda só carpinteiro como o pai, tão homem que até os fintou e desarmou: “passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho”.

Tal como Jesus, foi a partir do que há de mais simples numa terra tão anónima como todas as mais, duns dias que se confundem com todos os dias, dumas noites tão escuras como todas as noites escuras, que a Novidade saltou e desconcertou todo o Mundo: também HOJE se realiza a Palavra que, naquele dia, se ouviu na Sinagoga de Nazaré.

Arlindo de Magalhães, 27 de janeiro de 2019

Sinais

Marko I. Rupnik

O menino já nasceu. Já recebeu as suas visitas reais, já foi a Jerusalém e apresentado no Templo onde discutiu com os doutores, já foi tentado no deserto, já andou por Nazaré e Cafarnaúm, …

Chegou, entretanto, o tempo em que João o apresentou também: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo! (Jo 1, 29).

Este João é o batista, mas quem o narra é o evangelista. O João evangelista, era filho de Zebedeu e irmão de Tiago, tudo pescadores. Pescador pobre, nem sardinhas nem carapaus se apanhavam por ali, era uma pobreza muito pobre, nomeadamente no mundo da cultura.

Nesse tempo, por exemplo, quando algo acontecia que não se entendia, logo se dizia, milagre! Falámos aqui, há pouco tempo, da cura de leprosos, paralíticos, surdos, possessos, etc; uma vez curados, diziam ter sido milagrados e não curados. No evangelho que escreveu, João, filho de Zebedeu, chamava a estes acontecimentos um “sinal”. Por isso, à primeira parte do seu escrito evangélico — capítulos 2-12 — chamou-se “Livro dos Sinais”. Havia ainda outro Livro de Sinais a seguir (capítulos 5 a 13).

Neste primeiro Livro dos Sinais, João logo falou de algumas ações portentosas que mostravam a glória de Jesus, isto é, provavam que ele era o Messias, o Filho de Deus.

Eu vou tentar explicar.

João não narrava; registava momentos ou acontecimentos, uma coisa muito simples. Explico ainda. A gente vai às compras e leva num papel as coisas que quer comprar. Mas na lista só se indica apenas muito simplesmente o quê; o como não é preciso (quero uma camisa, ponho na lista apenas camisa; mas não é preciso apontar que a camisa tem de ser azul, sem manga, de verão, etc).

É isso que faz João no início do seu Evangelho: refere uma lista de acontecimentos, mas não gasta muito tempo a contar. No mundo antigo era tudo muito simples; de resto ainda nem papel havia!, havia apenas papiro (mas era muito caro) e pergaminho (caríssimo) ou …

Retomemos. Anota João uma série de acontecimentos — hoje se diriam eventos — a que chamava SINAIS. As ações portentosas de Jesus mostravam a sua glória, isto é, mostravam que ele era o Messias, o Filho de Deus. João escreveu assim: “Eu não sou o Messias, hein!, sou apenas o enviado à frente do Messias!” (3,28). E continua: “Esta é a minha alegria! Ele é que deve crescer e eu diminuir!” (3,29b.30)

Aí vão, pois, sete sinais (os algarismos, indicam o capítulo e, depois da vírgula, os versículos):

1 — O casamento e a boda de Caná (2.1-12). As talhas de pedra destinavam-se no Judaísmo para as obrigatórias abluções religiosas (lavar-se para poder entrar na Sinagoga e, sobretudo, no Templo) e o vinho cultivado por aquela região desértica era fraquíssimo embora eles o julgassem muito bom. E aparece Jesus a pôr em questão as velhas obrigações do Judaísmo (o Templo e a Lei)! Numa palavra, que grande milagre aconteceu?: ele disse que das abluções se passe ao vinho de um banquete messiânico, vinho “velho e bem tratado (26,6 e Jo 2,1-12). Como pode ser?

2 — (Os evangelhos sinópticos colocam esta cena [2,13-22] na última semana de vida de Jesus, embora João a coloque logo aqui, no princípio, querendo mostrar que) Desde o princípio se inaugura um tempo novo: mostra a sua autoridade na Casa de meu Pai (2,16). Por isso Jesus varre o velho com um látego de cordas: “Não façais da Casa de meu Pai uma feira” (Jo 2,13-22). Numa palavra, do Templo e da Lei passamos a um banquete novo (Jo 2,1-12). Nele último não haverá nem bois, nem ovelhas, nem pombas à venda!

3 — O evangelista faz uma espécie de resumo da atividade e do ensinamento de Jesus (2, 23-25): “estava em Jerusalém durante as férias [ie: dias semanais] da Páscoa” (2,13) e “sabia das pessoas o que há dentro delas” (2,25).

4 — Nicodemos (3, 1-21) era um fariseu e membro do Conselho Supremo (Sinédrio), aparece em cena de noite, caladinho!, foi ter com Jesus que lhe diz: “ninguém pode ver o Reino de Deus se não nascer de novo!”. “E como pode um homem nascer, sendo velho? Vai entrar no ventre da mãe e nascer outra vez?”. Aqui, sim, “quem não nascer do alto e da água,…!” (3,3.5).

5 — O evangelista sublinha a superioridade de Jesus sobre João Baptista (3,22-30): “Eu não sou o Messias, sou apenas o enviado à frente” (3,27). “Aquele que vem do alto está acima de tudo”, dizia o Baptista (3, 31-36).

6 — A samaritana não sabia que todo o Antigo Testamento encontrava a sua plenitude em Jesus (4,1-26). Sentados no poço, conversa! Pediu-lhe água (cá está ela outra vez”!). Muito espantada, “Como é que Tu, um judeu, me pede de beber a mim que sou samaritana?» É que os judeus não se dão bem com os samaritanos! 

7 — A cura do filho do funcionário real (4,43-54). Contei aqui a semana passada a apuro de um pároco da freguesia da Teixeira (Baião) chamado a correr em dia de invernia infernal para ir sacramentar o Manel que está a morrer; passada meia noite, “não venha que já está bem!”. Aqui a mesma coisa: depressa que o filho está a morrer!; mas logo voltaram dizendo o filho já está bem!

Estes sete “sinais” reuniu-os João, o Evangelista, na primeira parte da sua obra. Literariamente é uma escrita muito diferente da nossa. Digo eu que nesta página de João é, quase sempre, com dificuldade que percebemos quando acaba a narrativa da realidade e começa a elaboração teológica.

Todos e cada um dos sete sinais apontam que o acontecimento é sempre mais profundo que o simples facto narrado. Meditação precisa-se!

A Unção dos Doentes

O sacramento da Unção dos Doentes tinha-se tornado, de facto, um sacramento «maldito». E tão maldito que a expressão popular o taxou de «Extrema-Unção», unção extrema, isto é, unção quando a vida estava por um fio ou tinha mesmo já acabada.

Para ser claro, um pequeno texto de 1941 de um padre desta diocese do Porto:

“Por volta das duas horas da noite, batem à porta. Fui abrir. Era o Zé, de Sacões, que vinha, muito aflito, pedir-me fosse sacramentar o Manel, que estava a morrer. Estranhei um pouco, pois ainda há dias o encontrei, fero e forte, com uma grande borracheira. Mas, tudo é possível e a morte não espera e, às vezes, vem antes do tempo previsto…

‘Que eu fosse depressa, que ele estava-se a passar”. Mal falava, muito aflito, enfim, estava-se a pagar o pavio da vida… Desci à corte, aparelhei o burro. Depois dirigi-me à igreja a buscar o Santíssimo, os Santos Óleos, o Ritual. E lá fui, serra adiante.

Felizmente, nesta madrugada, a Lua foi amiga e solícita companheira. A claridade era tal que se divisava nitidamente o caminho e os lugarejos da aldeia.

Um silêncio enorme cobria a serra, cortado, aqui e além, pelo ladrar de um cão ou pelo pio agoirento de algum mocho noctívago e boémio.

Ao entrar no lugar …, vem a meu encontro um homem aflito, numa corrida doida. Era o Zé… A avisar-me de que, afinal, o Manel estava livre de perigo, melhorara, já não era preciso sacramentá-lo”.

(SANTOS, António dos — Itinerário de um Padre, 3º Vol, Porto, 1987, pp. 49-41)

Foi o Vaticano II a resolver e pôr as coisas no seu lugar. Ora ouçam:

“A Extrema-unção, que também pode, e melhor, ser chamada Unção dos Enfermos, não é Sacramento só dos que estão no fim da vida. É já certamente tempo oportuno para a receber quando o fiel começa, por doença ou por velhice, a estar em perigo de morte”. Tudo bem dito, até com delicadeza.

Para entendermos o que é a Unção dos Doentes, há que ter presente, antes de mais, que se trata de um sacramento da Fé: isto é, pressupõe e alimenta a Fé; todos os sacramentos pressupõem a Fé. É por isso que eu digo que muitos dos casamentos religiosos ou canónicos são inválidos.

Um sacramento é um sinal de fé ou da fé, pessoal e/ou comunitária. Até por isso a celebração litúrgica dos sacramentos “deve sempre preferir a celebração comunitária à individual e privada” (SC 27).

O sentido da Unção dos doentes e idosos tinha-se perdido antes do Vaticano II. Esperava-se pela hora da morte.

Ao fim do dia, batem-me à porta…, que viesse sacramentar a mãe que “está a morrer!”. Fiquei siderado. Ter de arrostar com a tempestade na serra é demasiado para mim. Não nasci para herói. De imediato comecei a procurar no meu subconsciente uma possibilidade de fuga, de adiamento, pode ser que a doente não esteja assim tão mal! Até pode esperar, quem sabe? Às vezes as pessoas parece que estão a morrer e não morrem, dão tempo ao doutor e ao padre, que diabo!, logo num dia de tempestade, um risco meter-me à serra; Ó Manuel, veja lá, então a mãe está assim a morrer?

Manuel, ali à porta, estacado, a escorrer água por todo o corpo, como se tivesse vindo a nado por aí abaixo…

Decido-me, tem de ser. Herói à força. A consciência a roer cá por dentro… Montei o cavalo, levei da igreja o Santíssimo, Santos Óleos, o Livro, e iniciei a perigosa aventura, enfrentando e chuva e o vento.

Subi à serra e quando alcancei o planalto da Conchada, senti-me, por momentos, um homem perdido. Pressenti a morte próxima na imensidade da serra, só, em luta com a tempestade.

O vento levou-me o guarda-chuva, como se dele precisasse, quando era a mim que fazia falta… Nunca mais o vi.

O cavalo, frente à chuva diluviana e ao vento impetuoso, estacou. E não havia maneira de arrancar. O animal também estava aterrado. Era o fim, pensei eu.

Depois avançou. A chuva e o vento, impiedosos e terríveis, continuavam a fustigar-me de todos os lados.

Por fim cheguei… Exausto, meio inconsciente, dominado pelo pavor daquelas hores dramáticas na travessia da serra. Entrei na casa… a mulher, em coma, não dava acordo de si, ungi-a, rezei as orações dos moribundos… e regressei… Cavalo e cavaleiro, encharcados, tristes e abatidos, mil vezes pior que o Cavaleiro da Triste Figura!”. (Id, pp. 69-70)

De há muito que o homem moderno virou as costas à morte e à doença. Só quando surge uma ou outra … Por isso, o sacramento da Unção é uma coisa lá muito para depois, no extremo da vida — a “extrema unção”, se dizia — às portas da morte.

A doença é sempre um desequilíbrio – físico, anímico, espiritual e relacional – e a perda dolorosa das rotinas quotidianas; quando é grave, coloca-nos necessariamente diante da questão dos fins: a vida e a morte, o Cá e o Lá.

É aqui que entra o Sacramento da Unção dos Doentes: um sinal de esperança diante da debilidade corporal e da desarmonia psíquico-espiritual que a doença e a inevitabilidade da morte provocam necessariamente no indivíduo. Quem se não lembra do «Pai, se é possível, afasta de mim este cálice!» (Lc 22,42) do próprio Jesus, angustiado diante da morte, nas palavras registadas por todos os evangelistas? Daí que a atenção de todos, e particularmente da Igreja, aos doentes, seja muito importante. Por ela, de resto, seremos perguntados: «estava doente e fostes visitar-me» (Mt 25, 6).

É diferente o caso dos idosos-não-doentes que, tão simplesmente como isso, pedem o sacramento à Comunidade. Explica assim o Ritual revisto após o Concílio Vaticano II: “A unção dos doentes não é sacramento apenas dos que se encontram no último transe da vida. Por isso, considera-se tempo oportuno aquele em que o fiel começa, por doença ou velhice, a estar em perigo de vida. Este sacramento, que faz parte da solicitude de toda a Igreja, mostra-se nestas palavras: Com a santa unção e a oração dos presbíteros, toda a Igreja encomenda os doentes ao Senhor padecente e glorificado, para que ele os alivie e salve, como diz Tiago na sua Carta (5,14-16)”.

Noutra palavra, a Unção dos Doentes é o sacramento específico da enfermidade ou da idade, e não da morte: unge-se sacramentalmente, portanto, não um moribundo ou um acidentado inconsciente, mas um doente consciente e crente. A Unção dos Doentes é, se posso assim dizer, uma prece (dum crente e de uma comunidade) que o doente, o idoso e os que lhe são próximos consigam, na fraternidade eclesial, passar do «Pai, se é possível, afasta de mim este cálice» à serenidade do «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23,46), isto é, que o doente possa passar da Morte à Vida: vida com letra pequena porque ainda terrena, se for possível e for o caso, ou Vida com letra grande em que a terrena se transforma, como diz a Liturgia.

Arlindo de Magalhães, 13 de janeiro de 2019

A Comunidade

A tradição litúrgica cristã-oriental reuniu, num mesmo quadro, quatro eventos: o nascimento de Jesus, a adoração dos magos, o batismo [penitencial] no Jordão e as bodas de Caná. Um quadro mistérico da manifestação de Jesus, que é o que quer dizer a palavra epifania. Quando chegou a plenitude do tempo, nascido de uma mulher, enviou o seu filho…” Gl 4,4).

Nós, os ocidentais, entretanto, partiríamos o mistério em quatro fatias episódicas (a festa do nascimento, a dos reis, a do batismo no Jordão e a do sinal de Caná).

Seja como for, a Igreja celebra hoje ou no dia 6 de janeiro (nos países onde se conserva o feriado) a manifestação do filho de Deus.

Hoje, somos nós a epifania de Cristo, “luz do mundo que não se esconde para se meter debaixo da mesa, antes se coloca em cima dela para alumiar a todos os que estão em casa” (Mt 5,14). É toda a questão da visibilidade da Igreja, Sacramento do Reino para o Mundo, de cuja natureza faz parte o ser visível e eficaz. Sem visibilidade e eficácia não há Igreja. Mas muito cuidado com o triunfalismo!

A Igreja de Jesus concretiza-se em comunidades. Feitas de lugar e tempo, é a comunhão das comunidades de Jesus que realiza a Igreja católica. O que as une é o que faz a Igreja.

“A Igreja é uma só, embora abranja uma multidão, pelo contínuo aumento da sua fecundidade. Assim como há uma só luz nos muitos raios do sol, uma só árvore em muitos ramos, um só tronco de muitas raízes tenazes, muitos rios de uma só fonte, assim também esta multidão guarda a unidade de origem, se bem que apareça dividida por causa da inumerável profusão dos que nascem. A unidade da luz não comporta que se separe um raio do centro solar; um ramo quebrado da árvore não cresce; cortado da fonte, o rio seca imediatamente. Do mesmo modo a Igreja do Senhor, como luz derramada, estende os seus raios a todo o mundo, e é uma única luz que se difunde sem perder a própria unidade. Ela desdobra os ramos por toda a terra com grande fecundidade; estende-se ao longo dos rios com toda a liberalidade e, no entanto, é uma na cabeça, uma pela origem, uma só mãe imensamente fecunda. Nascemos todos do seu ventre, somos todos nutridos com o seu leite e todos animados pelo seu espírito” (São Cipriano, séc. III, Sobre a Unidade da Igreja).

Mas fique muito claro – nunca será por demais repeti-lo – que a comunidade cristã não depende nunca do humano: a comunidade tem a sua razão de ser originária em Deus. É Ele quem a chama e convoca. Ele quer, por decisão livre e generosa, reunir os homens dispersos (LG 9), fazer-nos seus filhos (Ef 1,5; Rm 8,29) e irmãos uns dos outros (Mt 23,8-9); foi Ele o primeiro a demonstrar que nos ama (1 Jo 4,19). A iniciativa é sempre de Deus: ele quis, quer e continuará a querer, ou não, que a comunidade simplesmente seja.

A comunidade não é, pois, uma realidade material, manipulável e governável por simples intervenção humana, esquecendo que se trata de uma realidade mistérica e sacramental. Ou seja, ainda: a pertença à comunidade não resulta sem mais de uma simples e descomprometida decisão, porque a comunidade cristã (como outra qualquer, aliás) tem referências que lhe são essenciais (sobretudo a Jesus e seu Evangelho). Para pertencer à comunidade exige-se o mesmo que se pedia aos antigos para serem filhos de Abraão, a fé; e, por isso, quando os filhos de Abraão se calavam gritavam as pedras (Lc 19,40) porque até de uma pedra pode nascer um filho de Abraão (Lc 3.8).

Para pertencer à comunidade é necessário valorizar devidamente e sempre as suas referências “constitucionais”, afirmadas de maneira muito clara nas comunidades cristãs primitivas: “eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à partilha fraterna, à fração do pão e à oração” (At 2,42).

Ao longo da História da Igreja, dos lugares e dos tempos, vários foram os estilos e modelos da comunidade dos seguidores de Jesus: de vida ativa e contemplativa, missionárias, de inserção, masculinas, femininas, etc. Seja como for, para lá das notas acidentais que são sempre históricas, há dimensões essenciais que exigem essencialmente da comunidade.  A “Igreja de Jesus Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis, que, aderindo aos seus pastores, são elas mesmas chamadas Igrejas no Novo Testamento. (…) Nestas comunidades, embora muitas vezes pequenas e pobres, ou dispersas, está presente Cristo, por cujo poder se unifica a Igreja una, santa, católica e apostólica” (LG 26).

Desde logo, as relações de fraternidade: na comunidade, a vinculação de todos e cada um a Deus exige a vinculação horizontal a todos os mais que o Pai elevou à categoria de filhos, mas a quem exige que vivam como irmãos. Depois a celebração da fé, momento culminante e fonte da vida cristã. À celebração, junte-se oração, a respiração e alimento da fé. Finalmente, a importância do compromisso com a própria comunidade e para com o Mundo envolvente (disponibilidade, serviço, co-responsabilidade, especial atenção ao outros e compaixão, etc).

“A comunidade para mim” ou “eu para a comunidade”? Há muito sabemos – e por vezes esquecemos – que à Comunidade ninguém tem direito a exigir seja o que for, mas à Comunidade todos têm obrigação de dar tudo o que possam.

A comunidade edifica-se com a participação de todos. Deus enriquece-a com dons e carismas que o Espírito confere a todos e cada um dos seus membros (1 Cor 12,11), “para bem comum” (1 Cor 12,7). E nenhum membro pode ser privado do seu próprio dom e, portanto, nenhum pode ser impedido de o exercitar para o bem da comunidade.

Daqui a importância vital do “ministério da presença” como dizia a Didascália dos Apóstolos (séc. III): “Ordena e persuade o povo a ser fiel em reunir-se, a fim de que ninguém diminua a Igreja por deixar de frequentá-la e assim o Corpo de Cristo não fique privado de nenhum dos seus membros”.

Meus irmãos. A vida não se faz da letra de uma doutrina pura e dura. Mas quando há vida já se pode fixar em linguagem doutrinal a beleza e a verdade do que Deus nos manifesta e a que nós respondemos por uma fé vivida.

Arlindo de Magalhães, 6 de janeiro de 2019

52º Dia Mundial da Paz

Jacobleu, ‘Peace Bearer’

Celebra-se hoje o quinquagésimo segundo “Dia Mundial da Paz”. Instituído pelo Papa Paulo VI para o primeiro dia do ano de 1968, visava proclamar a PAZ como princípio fundamental de convivência dos povos e do respeito dos valores e direitos fundamentais de todo o ser humano, afirmando que

«a Paz funda-se subjetivamente num espírito novo que há de animar a convivência dos povos, num novo modo de pensar o homem os seus deveres e o seu destino, tanto mais porque não se pode falar de Paz legitimamente quando não são reconhecidos e respeitados os seus sólidos fundamentos: a sinceridade, ou seja, a justiça e o amor, tanto nas relações entre os estados, como no âmbito de cada nação; entre os cidadãos e entre estes e os governantes. É, pois, à paz verdadeira, à Paz justa e equilibrada, assente no reconhecimento sincero dos direitos da pessoa humana e da independência de cada nação, que nós convidamos os homens prudentes e corajosos, a dedicar este “Dia”».

Apesar do tempo decorrido, a atualidade da sua mensagem é clara e manifesta. Os ventos da intolerância, da xenofobia, da exclusão, do racismo e de todas as formas de violência que sopram atualmente sobre este mundo, particularmente sobre esta velha Europa, são cada vez mais preocupantes e, por isso, exigem da sociedade – governantes e governados – e particularmente de todos os cristãos uma reflexão profunda sobre as suas causas.

O Papa Francisco lançou para reflexão neste “Dia Mundial da Paz” de 2019 o tema “A Boa Política está ao serviço da Paz”. Chama a atenção de que

«a missão do político consiste em salvaguardar a lei e incentivar o diálogo entre os atores da sociedade, entre gerações e entre culturas. A função e a responsabilidade política constituem um desafio permanente para todos aqueles que recebem o mandato de servir o seu país, proteger as pessoas que habitam nele e trabalhar para criar as condições dum futuro digno e justo. Se for implementada no respeito fundamental pela vida, a liberdade e a dignidade das pessoas, a política pode tornar-se verdadeiramente uma forma eminente de caridade. Duma coisa temos a certeza: a boa política está ao serviço da paz; respeita e promove os direitos humanos fundamentais, que são igualmente deveres recíprocos, para que se teça um vínculo de confiança e gratidão entre as gerações do presente e as futuras, já que não há paz sem confiança mútua».

Todavia, não esquece que

«A par das virtudes, não faltam infelizmente os vícios, mesmo na política, devidos quer à inépcia pessoal quer às distorções no meio ambiente e nas instituições. Estes vícios, que enfraquecem o ideal duma vida democrática autêntica, são a vergonha da vida pública e colocam em perigo a paz social: a corrupção – nas suas múltiplas formas de apropriação indevida dos bens públicos ou de instrumentalização das pessoas –, a negação do direito, a falta de respeito pelas regras comunitárias, o enriquecimento ilegal, a justificação do poder pela força ou com o pretexto arbitrário da «razão de Estado», a tendência a perpetuar-se no poder, a xenofobia e o racismo, a recusa a cuidar da Terra, a exploração ilimitada dos recursos naturais em razão do lucro imediato, o desprezo daqueles que foram forçados ao exílio».

Refere ainda que

«Nestes tempos, em particular, vivemos num clima de desconfiança que está enraizada no medo do outro ou do forasteiro, na ansiedade pela perda das próprias vantagens, e manifesta-se também, infelizmente, a nível político mediante atitudes de fechamento ou nacionalismos que colocam em questão aquela fraternidade de que o nosso mundo globalizado tanto precisa. Hoje, mais do que nunca, as nossas sociedades necessitam de «artesãos da paz» que possam ser autênticos mensageiros e testemunhas de Deus Pai, que quer o bem e a felicidade da família humana».

«Cada um pode contribuir com a própria pedra para a construção da casa comum. A vida política autêntica, que se funda no direito e num diálogo leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada mulher, cada homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode irradiar novas energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais. Uma tal confiança nunca é fácil de viver, porque as relações humanas são complexas. Com efeito, a paz é fruto dum grande projeto político, que se baseia na responsabilidade mútua e na interdependência dos seres humanos».

A este respeito, recordemos a observação do Papa João XXIII:

«Quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade; nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos. Somos, assim, chamados a levar e a anunciar a paz como boa nova de um futuro no qual cada ser vivo seja considerado na sua dignidade e nos seus direitos».

«Paz é mais do que a ausência de guerra: paz é a prática da tolerância e do perdão» (Maria da Aparecida Doró). Por isso, todos os cristãos são convocados a participar neste projeto de PAZ, a darmos o nosso contributo empenhado na construção da Paz no interior dos nossos núcleos familiares, no nosso local de trabalho, nos locais de lazer, no apaziguamento das tensões que vivemos diariamente, estendendo a mão da tolerância e do perdão, acolhendo e cuidando do outro, o pobre, o estrangeiro, como irmãos.

«Deste modo, refletir sobre as causas primeiras e estruturais da violência e suas consequências e promover atitudes e posturas de paz implica, necessariamente, numa verdadeira busca pela justiça, esta, que na Sagrada Escritura, diz respeito ao cuidado dos pequenos e pobres, dos sem voz e sem poder, dos excluídos e esquecidos».

«Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus». (Mt 5, 9). Todos nós somos convocados a construir o Reino de Deus. Ao cristão compete agir, estar atento e desperto às realidades sociais em que se movimenta. Um conhecido poema (Sophia de Mello Breiner) diz-nos que «vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar». Todavia, na turbulência do tempo atual, na massificação da informação, tantas vezes descontextualizada, com a imensidade de “luzes” que nos encandeiam e o “barulho” que nos entorpece o entendimento, tornamo-nos insensíveis e indiferentes ao sofrimento do outro, tudo é banalizado, isto é: olhamos, mas não vemos; ouvimos, mas não escutamos; lemos, mas não entendemos.

«A Paz e a Justiça se abraçam», proclama o salmista (Sl 85,11). Por isso urge estar atento aos sinais dos tempos, rejeitar o ódio, a intransigência e a indiferença, promover a tolerância e o perdão, acolher o outro como irmão, pois ao cristão cumpre “construir pontes” e “derrubar muros” porque o Reino de Deus, reino de paz e amor, constrói-se hoje, aqui e agora.

Permitam-me que vos leia um poema da mesma autora que é verdadeiramente uma oração e um profundo apelo de paz:

Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos

(Sophia de Mello Breiner)

Um Bom Ano para todos.

Fernando Moreira, 1 de janeiro de 2019

Família

Egon Schiele, The Holy Family, 1913

Irmãos e irmãs na fé em Jesus Cristo, Aquele que incarnou e se fez humano no Natal. No entanto, apesar de ser o autor de tudo e possuir todo o conhecimento, seu Pai quis que nascesse de uma mulher e que numa família crescesse, aprendesse e se fizesse verdadeiramente homem. Porquê?

É com imensa gratidão que Vos falo. A Liturgia fala-nos e pede-nos uma reflexão sobre a família. Com poucos méritos e fraca palavra procurarei motivar essa reflexão, assim o Espírito Santo me ajude.

Sou uma coisa estranha, como são estranhos os híbridos de qualquer espécie. Porquê híbrido? Tenho 54 anos. Quase 40 de vida em serviço à Igreja. Sou casado. Feliz na maior parte dos dias. Tenho a graça de ter por esposa uma mulher que está sempre à minha frente no serviço, na dedicação e no entusiasmo. Tenho dois filhos, um casal. Ambos, em diferentes serviços estão comprometidos na Igreja, por vontade própria.

No meu B.I. poderia acrescentar ao nome o título de Leigo. Com verdade e propriedade. Não há padrões estabelecidos para definir uma família cristã, mas se os houvesse, acho que os cumpríamos todos.

Ao mesmo tempo, sou clérigo. Sou diácono há cinco anos. Em título, porque se os frutos identificam a árvore, diácono, do grego servidor, é todo aquele que serve. Terei por isso diante de mim vários e várias que na prática do dia a dia servem a humanidade construindo o Reino de Deus nas mais diversas tarefas.

Clérigo casado. Na Igreja Católica Romana é uma figura estranha, um híbrido, uma mistura, que por isso ainda não é bem aceite e devidamente considerada na Igreja instituição.

A vocação do presbítero nasce normalmente na família. O panorama atual das vocações consagradas permite-nos avaliar a fecundidade da família cristã num dos seus papéis, o de gerar e dar à luz pastores para o Povo de Deus.

A vocação diaconal nasce na comunidade. Permite avaliar a saúde da comunidade, o seu grau de comunhão e espaço de fraternidade, a capacidade de motivar alguns dos seus membros a dedicarem uma parte importante das suas forças e do seu tempo ao seu serviço.

Mas o que é um diácono? Quando aparecem, porque desapareceram, porque foram de novo enxertados no Concílio Vaticano II e que sentido fazem hoje? É conversa para outra ocasião.

A família. Clérigo casado? O diácono empenha toda a família no seu serviço, e por simpatia, por empatia, no melhor dos casos por telepatia e algumas vezes com apatia, esposa e filhos são expostos e julgados por atos e palavras para os quais não concorreram. O diácono tem uma palavra a dizer, se o quisessem ouvir, sobre o celibato e o padre casado. Porque está sempre confrontado com a exigência da disponibilidade, o exercício da vocação e o confronto com a realidade de ser um dos pilares da sua família. Com o facto de ser ministro ordenado, mas necessitar absolutamente da estabilidade profissional que lhe garanta o ordenado. Os padres e os bispos discorrem muito sobre a família, mas a partir do que observam e ouvem. Quem tem esposa e filhos e lhes sente à vez a doçura ou a acidez, e no tempo atual cada vez com mais veemência, não são eles. Outra conversa que não é para hoje.

É por isto que me sinto um “traçadinho”, uma mistura de clérigo e leigo. E nesse sentimento também tendes responsabilidade e daí a minha gratidão. Aceitastes-me no vosso Catecumenato e por isso posso dizer que fui leigo, fui clérigo e a seguir aprofundei a minha condição de leigo refletindo sobre ela na companhia de onze de vós num caminho que todos deveríamos fazer urgentemente.

Obrigado.

A Palavra de Deus que escutamos hoje é contraditória. Provoca-nos como quase sempre. Na primeira leitura, Ben Sirá, um dos poucos autores conhecidos dos livros sagrados, dois séculos antes do Natal e sem nunca utilizar a palavra família, exorta-nos a cultivar relações humanas de amizade e respeito mútuos com aqueles que o acaso do sangue nos fez relativos: pai, mãe, filhos.

  1. Paulo prossegue nessa linha. Com conselhos práticos, sem nunca usar a palavra família, alarga as relações aos outros e chama as esposas. A tríade inicial pai mãe e filhos abre-se em árvore e forma novos pais a partir dos filhos que assim prolongam a criação e o ciclo da vida renova-se. Apresenta-nos Jesus como exemplo e alerta que a oração e a gratidão a Deus deve guiar a nossa ação humana.

No Evangelho, Jesus estraga tudo.

Imaginem por um instante a cena no tempo atual: Jesus, dono de uma sabedoria que desafia os doutores, não hesita em desprezar o Ben Sirá. Em vez de amparar o pai e confortar a mãe, deixa-os partir e fica para trás. José e Maria passam um dia sem O verem, mas não estranham. Só depois começam a procura-Lo. Podemos imaginar que à imagem da maior parte dos nossos casais, a busca não terá sido cordata:

– Maria, a culpa é tua. Como pudeste estar desatenta ao menino?

– José, se não fosses na conversa com os teus amigos, terias dado pela falta dele.

E os amigos:

– Que ricos pais, que assim perdem os filhos…

E ao fim de três dias à procura, (não havia telemóveis) finalmente vão encontra-Lo no local por onde deviam ter começado a busca.

E o final está-se mesmo a ver: por denúncia anónima, a Comissão de Proteção de Menores, sempre lesta e atenta, retira-lhes o menino e coloca-o num Centro de Inserção e declara-os incapazes de exercerem o papel de progenitores.

Alguém tem dúvidas?

Em que ficamos?

A família está em crise? Não. Em crise estão as relações humanas.

Jesus alarga as relações ao mundo, ao conhecimento do outro, à troca de ideias, ao diálogo. O seu projeto é criar uma grande família. O diálogo com a mãe é um choque de realidade:

Ainda não chegou a minha hora. Se quero construir uma grande família, tenho de começar por colaborar na construção da minha. E assim foi crescendo. Até Canaã.

Não podemos escolher a família. Mas podemos escolher os amigos. Ah, mas se o parentesco obrigatório assentasse na amizade livre não haveria crise na família. E a amizade constrói-se com relações humanas sólidas. De respeito, de fidelidade, de tolerância, de delicadeza, de bondade.

Acho que já falei demais.

Vou continuar, mas nem sempre é fácil, a procurar ser o melhor amigo dos meus filhos e da minha esposa e peço-vos que façais o mesmo.

Obrigado.

José Luís, Diácono, 30 de dezembro de 2018

O Natal

Federico Solmi, 2014

No princípio, era o mistério da Incarnação: Cur Deus homo? Para quê, porque é que ele se fez homem? Celebrava-se o mistério de Deus feito homem. Mas ”os homens preferiram as trevas à luz. Porque as suas obras eram más” (Jo 3,19).

Quando a festa, originalmente oriental, chegou ao Ocidente, deixou de ser a celebração de um mistério para ser a celebração de um facto (agora diz-se evento) de um nascimento. Nós, os ocidentais, que ligamos pouco ao mistério — ou não tivéssemos sido nós que inventámos os relógios, os automóveis, os computadores, a bomba atómica e agora os robots, etc; (nós) somos mais dados a realidades, a eventos e acontecimentos. Passámos, portanto, a celebrar um evento, algo que aconteceu, nada de mistério!

Os nossos pais, como se tratava de um evento muito importante — e como era costume quando havia uma festa importante — ainda se preparavam para a celebração do evento: guardavam a Vigília do Natal no dia 24 de dezembro; ainda assim se faz aqui ao lado, em Santa Maria da Feira.

(A liturgia romana, que é a nossa, ainda guarda resquícios da sua antiguidade. Sabemos que, nos princípios, os cristãos celebravam de noite, desde o cair do sol até de madrugada, na alvorada do “primeiro dia da semana” (At 20,9). Há ainda um resquício dessa prática que é a Vigília Pascal).

Mas voltemos ao jejum. Naquele tempo, na vésperas das duas grandes celebrações, fazia-se jejum, a celebração litúrgica era à meia noite, e quando se chegava a casa no fim da missa do galo, então sim, começava a festa: comezaina, pois claro, não havia festa sem muito e sem doce… E a Ceia como que se prolongava por todo o dia 25, …

No que se refere à Páscoa, ainda se faz, aqui por exemplo, na Serra.

Vamos à Missa do galo. Era de jejum o dia 24, ia-se à Missa da meia noite (At 20,7), e regressados a casa, então começava a festa “do nascimento de Jesus”.

Sabemos todos que no antigo as festas eram longas: os casamentos ciganos passa(va)m a semana.

No nosso assunto, a festa do Natal durava pelo menos oito dias, uma semana. Continuava e atingia um segundo momento de intensidade: na semana da festa natalícia, nasceu a festa da família: «Senhor que na Sagrada Família nos deste um modelo de vida, concede que, imitando as suas virtudes familiares e o seu espírito de caridade, possamos um dia reunir-nos na tua casa…», diz a oração do rito de entrada do Missal romano.

Claro que nestes dias, os pobres não se esqueciam. Eu era rapaz e nos dias anteriores ao Natal corria-se a freguesia a juntar dinheiro e bens para os mais pobres…

O jejum, para ajudar os pobres, e o domingo natalício festa familiar.

Mas o mercado não esteve com coisas: não descansou enquanto não misturou a festa cristã da família com a do Natal, jejum e pobreza são coisas que não têm nada com tudo isto. E todos achámos muito bem! Repare-se: o que se jejuava em favor dos pobres transformou-se em prendinhas de Natal não dadas aos pobres, mas… em família e à família, em dia que liturgicamente não era o da família, mas o comércio conseguiu que passasse a ser!

Não foi no nosso tempo que isto começou. Isso aconteceu quando os americanos inventaram o S. Nicolau — logo, Papai Noel — a distribuir a Coca-Cola!

De início, é verdade que, com alguns laivos de mistério, sobretudo dos mais pequenos, o Menino Jesus só vinha pôr a prenda no sapatinho de madrugada, muito depois da Missa do galo!

Pois era! Mas agora não é! Agora o barulho é antes, muito antes, dá um trabalhão imenso escolher as prendas, comprar as prendas, embrulhar as prendas… Quem fez isto, quem foi? Quem manda em nós, que fazemos tudo o que eles querem? E depois queixámo-nos.

Qualquer coisa não está bem! Ou melhor, quase está tudo mal! Quem deitou abaixo a festa do Natal adaptando-a a outros interesses foi o mesmo que rebentou com o domingo. Não sabem, os cristãos portugueses, e não só eles, não sabem porque é que se vai à missa ao domingo. Não sabem. Porque é que não é ao sábado?

E o tempo encarrega-se de nos esconder a riqueza que as festas tinham e continham. Hoje, perdemos o sentido das coisas. Desconhecemos o porquê e para quê.

Sophia de Mello dizia que todas as coisas mostram, uma por uma, a sua Beleza e a sua Serenidade.

Mas nós, umas vezes, passamos pelas coisas sem as ver; e outras, já não temos coisas para ver, pois que, de facto, perdemos foi o seu valor!

Arlindo de Magalhães, 23 de dezembro de 2018

A História de um Povo

Yulia Luchkina, ‘Christmas’, 2007

A um Homem foi feito um convite: Deixa a tua terra e a casa de teus Pais e vem para a terra que eu te vou mostrar (Gn 12,1). E Abraão partiu como o Senhor lhe tinha dito (Gn 12,4). Em consequência, foi-lhe feita uma grande promessa: Farei de ti um grande povo (Gn 12,2); Abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar. E todas as nações da terra serão nela abençoadas porque obedeceste à minha voz (Gn 22.17-18). Levanta os olhos para o céu e conta as estrelas! Se fores capaz de as contar!… Assim será a tua descendência (Gn 15,5).

E a descendência de Abraão cresceu de geração em geração. Conhecemos os nomes de muitos, de tantos: Isaac e Jacob, Sara, Rebeca e Raquel, as 12 tribos do Senhor, de Rúben a Benjamim, o mais novo. Nesta altura, Deus era ainda El Shadai, o Maior, fixe!, entre outros menores. Mas foi ele o da promessa, e foi de certeza ele quem falou a Abraão lá longe na Caldeia, nessa terra que ele haveria de deixar para sempre a fim de se lançar na mais interessante aventura de todos os tempos da História.

Só mais tarde, com Moisés, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob seria único, Eu sou > Iavé. E com ele começaria o cumprimento da promessa: uma terra, Terra Nova, onde correria o leite e o mel (Ex 3,8).

Esta foi outra que tal! Os descendentes de Abraão estavam no Egipto, tinham ido à procura de trigo em tempo de fome, haviam chegado mesmo aos corredores do poder, primeiro com José, depois com Moisés, mas acabariam numa dura servidão e coisas do género (Ex 1,14). Mas Deus viu a opressão da sua gente e desceu a libertá-la das mãos dos egípcios. Quando chegou à terra, atravessado o Mar Vermelho e depois o deserto, a mesma sua gente teve ainda de conquistá-la: foi a primeira Intifada. Já Moisés tinha morrido.

Mas então, já Israel era um Povo, caldeado na dureza do deserto, o Povo de Iavé, o Deus único, um Deus diferente dos deuses pagãos, que têm boca, mas não falam, olhos mas não veem, ouvidos e não ouvem. Por isso o Salmista diria: Ele nos ajuda e protege! (Sl 115,5).

Depois… esta história não pode ser contada toda duma vez, hein! Depois, esta terra tornou-se um reino. Com reis e tudo! Como podiam ter um rei os que adoravam Iavé que tinha o seu trono no céu e cujo reino se estendia a tudo quanto existe (Sl 103,19)? Claro que tudo isto levantou uma grande celeuma: porque o rei era Iavé, não o podia ser um homem! Mas lá tiveram um rei: chamou-se Saúl, o orgulhoso, depois David, o poeta pecador, a seguir Salomão, o Sábio.

Mas o Povo não era fiel, e os reis uma desgraça, então em questões de moral venha o diabo e escolha!; a Lei não salvava, a promessa nunca mais se cumpria, os sacerdotes multiplicavam os sacrifícios mas não conseguiam a graça, o próprio Templo foi destruído quantas vezes, a aliança começou a morrer de velha, e por fim o Povo foi destroçado, adeus promessa feita a Abraão. Israel conheceu o desastre total: o cativeiro. Restou apenas um nome, o de uma cidade, Jerusalém; mesmo assim a cidade ficou reduzida a escombros. Jerusalém, Jerusalém! A minha língua fique calada se eu não me recordar de Ti! (Sl 136).

Chegaram então os Profetas. Como do presente nada havia a esperar, o que restava do Povo começou a olhar para o futuro: e o presente serviu para purificar a esperança. E os Profetas, esperando contra toda a esperança divisaram que do tronco carbonizado de Jessé postado no meio da cidade arruinada brotará um rebento, um botão; sobre ele repousará o espírito do Senhor. Então, o lobo habitará com o cordeiro, o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito, e um menino os conduzirá (Is 11,1-6). Dizendo doutro modo: Eis que uma Virgem conceberá a dará à luz um filho chamado Emanuel (Is 7,14). Chamar-se-á Admirável Conselheiro, Deus Forte, Pai Eterno, Príncipe da Paz! E a bota que calcava a nossa terra e a roupa manchada pelo sangue serão deitadas ao lume das fogueiras, pasto ardente do fogo e das chamas! (Is 9,6).

Estão loucos os profetas, como outrora os deuses? Sim, estão loucos. Mas foi por causa desta loucura que o povo que andava nas trevas começou a ver uma grande luz: habitavam uma terra de sombras, mas uma luz começou a brilhar sobre eles (Is 9,1).

Lança gritos de alegria, filha de Sião, diz o teu contentamento, Israel! Exulta e rejubila de todo o teu coração, filha de Jerusalém! Porque o Senhor revogou a sentença que te condenava e afastou os teus inimigos. O Senhor, rei de Israel, está no meio de ti, é ele quem te vem salvar (Sf 3,14-18)!

Finalmente, gritaria o último profeta do Testamento antigo: Para vós brilhará o sol da Justiça! (Ml 3,20).

Foi exatamente um rebento – Jesus, menino enfaixado em panos e reclinado numa manjedoura (Lc 2,12), como no-lo descreve a linguagem evangélica e a tão saborosa iconografia natalícia no-lo representa – que nos veio explicar um novo projeto de Deus: que, na casa em que os homens consigam viver – que não é fácil! – como irmãos, Deus habita como Pai. Já não se trata de um homem, nem de um Povo, nem de um Reino de reis. Agora é do Reino de Deus que se trata.

Arlindo de Magalhães, 16 de dezembro de 2018